Entrevista. Miguel Valverde: “Os eventos culturais são fundamentais no desenvolvimento da cidadania de qualquer país”
Já não é novidade que a pandemia que nos assola obrigou a profundas alterações no panorama cultural, levando sobretudo remarcações (ou, em alguns casos, até mesmo cancelamentos) de muitos festivais que iam preencher o nosso calendário de 2020. A 17.ª edição do IndieLisboa deveria ter ocorrido entre abril e maio, mas a resiliência de todos os que o ajudam a compor, fez com que resistisse a este ano fatídico e possa decorrer entre 25 de agosto e 05 de setembro,
Negando o apelo facilitista do digital mantendo as sessões em sala e abrindo um diálogo essencial sobre os passos dados no passado que se fazem sentir até às lutas de hoje (ainda), a programação deste IndieLisboa promete ser urgente, actual e de dedo em permanente na ferida que a nossa sociedade teima em não curar.
Estivemos à conversa com Miguel Valverde, programador e director do festival sobre as alterações que foram feitas para que o mesmo fosse possível, sobre esta programação que olha às veias abertas que permanecem de tempos idos e qual é o papel da Arte e da Cultura na humanização.
Primeiro que tudo deixem-nos saudar a coragem em prosseguir com o IndieLisboa no seu formato normal, o físico. Que alterações serão feitas à normal decorrência do festival para garante da segurança de todos os presentes dado o contexto actual?
Miguel Valverde: Muito obrigado. Da nossa parte levámos estes meses (desde Março) a (re)preparar o festival para esta edição tão atípica. Com a colaboração de todas as salas parceiras, acrescentando uma sala nova ao ar livre – o terraço do Cine-Teatro Capitólio e utilizando pela primeira vez a Esplanada da Cinemateca como sala (em substituição da Sala Luís de Pina) vamos permitir ao nosso público uma nova experiência de festival. Os filmes das diferentes secções são apresentados ao ar livre e dentro das salas habituais temos a lotação reduzida a metade, utilização de máscara durante as sessões e higienização das salas entre sessões. Os materiais físicos de promoção do festival foi reduzido ao mínimo (com a produção de uma revista/catálogo) e desenvolvemos ferramentas digitais que permitirão ao espectador estar permanentemente informado de tudo o que se passa.
A resistência ao formato físico é ainda mais urgente depois de conhecermos a quebra de 95,6% no número de espectadores em salas de cinema quando comparado ao período homólogo de 2019. Em algum momento houve a dúvida ou tentação em optar pelo formato digital do festival ou isso esteve sempre fora de hipótese?
Os espectadores do IndieLisboa são um público que gosta de ver filmes em sala e gosta de assistir a sessões em que pode conhecer os realizadores, falar com eles no final da sessão e participar em debates. Esta edição terá menos convidados, mas ainda assim há muitos realizadores que vêm de todo o mundo, alguns tiveram que fazer longos itinerários para ter tempo de fazer as quarentenas necessárias, só para poderem vir apresentar o filme ao festival. Isto sensibiliza-nos muito e mostra o carinho que no mundo inteiro os cineastas têm pelo IndieLisboa. O nosso público, que virá às salas, vai sentir o mesmo comprometimento e uma ainda maior aposta que esta relação se faz em três eixos: festival + cineastas + público, todos igualmente importantes.
Em relação aos filmes em exibição no festival, que linhas orientadoras definiram para a curadoria e escolha dos mesmos (e respectivos realizadores ou protagonistas)? E porquê?
Os filmes que vamos apresentar já estavam escolhidos, na sua grande maioria, quando foi decretado o confinamento obrigatório que levou ao adiamento do festival. O festival trabalha com uma equipa de programadores (com uma grande base na sua estrutura) que ao longo do ano vão ver os filmes que vão sendo inscritos e viajam para os festivais internacionais de cinema mais importantes para poder seleccionar o que considera ser o melhor que viu ao longo desse ano. Há muitos critérios, como se pode prever, mas eu diria que para nós o mais importante são as obras que são feitas com grande comprometimento por parte dos seus autores, aqueles filmes que têm mesmo que ser feitos, e, consequentemente, exibidos. O facto de sermos muitos a escolher os filmes (e muito diferentes entre si) permite criar uma diversidade importante na programação, com uma grande coerência final. Há sempre retrospectivas de grande cineastas, filmes de jovens autores, uma grande escolha dos melhores filmes internacionais que estrearam ao longo do ano, a melhor selecção de filmes portugueses em estreia.
Na organização e planeamento do festival partem sempre dessas linhas orientadoras para os filmes, ou são muitas das vezes os filmes também a defini-las?
Este ano é um caso paradigmático: o facto de termos decidido fazer uma retrospectiva do cineasta senegalês Ousmane Sembène, um dos pioneiros do cinema africano e de termos escolhido fazer um foco na secção Silvestre sobre a cineasta franco-senegalesa Mati Diop, abriu múltiplas possibilidade de programação que foram complementadas depois com a retrospectiva dos 50 Anos do Fórum Berlinale, onde filmes que falam sobre questões de género, raciais e sociais foram o mote dessa escolha. A partir daqui a contaminação das restantes secções foi óbvia e surgiram escolhas que à partida poderiam não ter entrado noutra edição. A isso chama-se estar atento ao que nos rodeia e pensar nos filmes que temos, gostamos e fazem sentido e a seguir, decidir programá-los. Embora este ano tenha sido assim, nem sempre isto acontece e há secções como o IndieMusic, o IndieJúnior ou a Boca do Inferno que tematicamente já têm os seus eixos muito bem definidos.
Que papel acham que pode e deve um festival de Cinema desempenhar em relação ao contexto social que o rodeia? E que diferença pode a Arte fazer nesse necessário activismo cívico que dele possa resultar?
Os eventos culturais são fundamentais no desenvolvimento da cidadania de qualquer país. Os seus cidadãos, informados, conhecedores da realidade que os rodeia, permitem-se mais facilmente não ir atrás de fake news e procurar filtrar a informação recebida. A arte em geral, e o cinema em particular, têm capacidades única de falar sobre o seu mundo e o cinema contemporâneo, mais indie, olha mais para o presente e para o futuro do que para o passado. Daí que muitas obras mais antigas vista à luz dos dias de hoje continuam a manter uma clareza de pensamento e uma contemporaneidade espantosas. Os filmes de Ousmane Sembène e a retrospectiva dos 50 Anos do Forum de Berlim trazem dos filmes mais visíveis do que estou a dizer. O filme Angela – Portrait of a Revolutionary sobre a activista Angela Davis é um desses exemplos. No final dos anos 60 foi filmada como uma das principais pensadoras mundiais naqueles anos e ainda recentemente lemos uma entrevista sua onde tudo o que diz sobre a actual pandemia, faz todo o sentido com as suas preocupações nos anos 60.
Que pontos gostariam de salientar na programação deste IndieLisboa?
Gostaríamos de convidar os espectadores para virem ao festival (25 de Agosto a 5 de Setembro), sobretudo quem nunca veio e apenas ouviu falar, porque aqui no IndieLisboa trabalhamos para o diálogo, trabalhamos para vos ouvir. E o que nos dá maior satisfação é sentir que o público reage positivamente a tudo o que propomos. E que os filmes que escolhemos, são os melhores do mundo.