Entrevista. Mura: “Fui evoluindo enquanto pessoa à medida que criava o artista”

por Inês Bom,    13 Dezembro, 2021
Entrevista. Mura: “Fui evoluindo enquanto pessoa à medida que criava o artista”
Fotografia de Inês Bom / CCA
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Tiago Moreira, mais conhecido por Mura, é um promissor artista do hip hop nacional. Com 26 anos, natural do Laranjeiro, divulgou o seu primeiro ep em 2019, intitulado “v1.0”, tendo recentemente lançado “O Álbum do Desassossego”, que conta com a participação de 9 artistas e amigos. Presença assídua em diversas rádios familiares do público, como Oxigénio, Antena 3 e Super Bock Super Rock, tem presença marcada no próximo dia 18 no auditório CCOP no Porto, para o Natal do Marginal, festival organizado por Keso. Fomos conhecer um pouco o que está por trás de um álbum e trabalho que não passaram despercebidos aos amantes da música hip hop portuguesa.

Quem pretendes dar a conhecer: o Tiago ou o artista Mura? Ou são indissociáveis?
Boa pergunta. No fundo um misto dos dois. Cheguei a fazer uma faixa que se chama “O Homem Duas Caras” que puxa um bocado por aí. O meu nome é o lado mais poético, a poesia é um gosto que eu vim a ganhar e o Mura acaba por ser a minha persona enquanto rapper, o alter ego do Tiago Moreira. E puxaram os dois um pelo outro, porque se não fosse o rap (o Mura) eu não teria descoberto nem ganho tanta curiosidade pela poesia. Fui evoluindo enquanto pessoa à medida que criava o artista. Até porque há vários rappers hoje em dia que já utilizam as palavras de uma maneira mais poética.

A minha escrita é muito introspetiva exatamente por causa disso. É um turbilhão de pensamentos e desabafos e vivências, tudo ali envolvido.

Mura

Quando é que começaste a escrever?
Na altura havia muito aquela moda de teres um blog, um hotstop, acho que inconscientemente foi por aí que comecei a escrever algo. Mas era um escrever só para mim. Depois, lá está, por causa da música e dos amigos que tinha na rua relacionados com a música, comecei a andar muito na rua sempre a absorver, a absorver. Na rua quero dizer um pouco por todo o lado, seja Laranjeiro, seja Lisboa. Fui sempre meio nómada. Este estar na rua é o estar com os amigos, em rodinha, cada um com o seu freestyle. Começas a participar, a soar cada vez melhor e a ganhar uma confiança, principalmente no estar ao vivo. Fico contente por ter chegado aí. Demorei uns 14, 15 anos. Andava muito por aí tipo peregrino à procura de alguma coisa que eu achava que existia. E ainda hoje ando à procura. Acho que é da inspiração. E assim percebi que tinha de andar muito, viver muita coisa para incluir na minha escrita. E incluir-me a mim próprio. Quando começas a alcançar uma certa exposição, começas a ter de ganhar mais noção sobre aquilo que falas, sobre o que escreves. E durante este tempo comecei a ter mais noção disso, não foi só evoluir na minha escrita, mas também sobre aquilo que escrevia. As minhas prioridades mudaram, o que eu sinto mudou. E o que eu sinto é o que eu escrevo. A minha escrita é muito introspetiva exatamente por causa disso. É um turbilhão de pensamentos e desabafos e vivências, tudo ali envolvido.

Fotografia de Inês Bom / CCA

Quais as maiores dificuldades que encontraste no teu crescimento enquanto artista? 
Manteres o teu nome. Ganhares o respeito, seja entre páginas, seja entre pessoal do meio. Quando me afastei mais desses pensamentos, dessas dinâmicas e me foquei na música, foi quando as coisas começaram mais a acontecer. Eu antigamente não tinha o foco nem a disciplina que tenho hoje em dia. Faço as coisas de uma maneira mais consciente. E antes faltava-me o chamado “fazer as coisas como deve ser”.  Hoje em dia tens imensos meios, é impossível não saberes nada. Eu aprendi tudo e fiz tudo a partir do Youtube. O que falta é realmente querer e ir à procura e saber como se faz da melhor maneira. E eu acho que era isso que me faltava e foi o que me bloqueou mais. Depois o resto, não digo que é uma questão de sorte porque a sorte faz-se e tens de ir à procura dela também, mas passa por teres ali aquela luzinha que te ajuda. Desde muito novo que eu sempre estive num seio muito ligado ao rap, envolvido com pessoal ligado a esse meio. Inconscientemente sempre fui puxado para aí. E isso também me ajudou de alguma forma. E o foco. Tem que se ter foco. E a minha dificuldade era exatamente não ter foco ao inicio, achar que era tudo uma brincadeira, não levar aquilo como um trabalho. E não ter os planeamentos certos. E hoje vejo porque é que a minha música chega a mais gente, esforcei-me para que isso acontecesse, antes não pensava nisso. tinha uma cabeça mais fechada. Hoje vejo que não são só pessoas da minha idade que ouvem a minha música. E eu não posso restringir pessoas de ouvirem música, não sou ditador musical, não posso pensar quem deve ou não ouvir a minha música. Se as pessoas se identificarem com a minha música quem sou eu para dizer alguma coisa. Eu antes sentia que estava a escrever música para determinadas pessoas e na verdade isso condicionava-me como artista. Eu queria muito agradar a um público alvo e a determinada altura percebi que tinha de me agradar era a mim, tinha de gostar daquilo que estava a fazer.

Foste muito autocritico, não equacionaste na resposta fatores externos como “os outros”, porquê?
Ao focar-me nos outros estou a destruir-me mais a mim. Por exemplo, lembro-me de dar um scroll no Instagram, ver um concerto e ter aqueles pensamentos do “eish porque é que eu não estou ali”. E depois comecei a aperceber-me da minha forma de pensar “Porque é que estás a ser assim? Deixa os gajos serem felizes pá”. É que depois a tua música vai roçar aí, nessa linha de pensamento. Isso nem ajuda para a Cultura e é para isso que faço projetos. Nem a mim próprio, acabava por ser uma pessoa cheia de amarguras. Comecei a pensar que se eu lutar um dia há-de ser a minha vez. Prefiro lutar e ficar contente pelo que eu fiz, do que ficar chateado pelo que os outros fizeram. 

Esses contratempos que sentiste no teu percurso enquanto artista contribuíram para a tua não conformidade com o estado de coisas? 
Sim claro, fez-me lutar mais e aprimorar a minha arte. Se tivesse sido mais fácil eu era mais preguiçoso porque ia tomar as coisas como garantidas. E como eu não tenho nada como garantido e porque há milhares de pessoas tão boas ou melhores como eu, prefiro este tipo de competitividade saudável que faz com que nunca pare de evoluir. Tanta gente que me inspira e eu todos os dias evoluo, a cada som evoluo, a cada álbum e projeto evoluo. Lá está, se não forem as “coisas más” tu não ganhas tanta força para alcançares aquele goal. E depois sabe-te melhor até. Sabe-me melhor eu ter batalhado tanto e agora estar a ser recompensado. Porque acabou por ser tudo fruto do meu suor e por eu ter acreditado. 

Há uma componente bastante crítica nas tuas letras. Este álbum é um manifesto pessoal?
Este álbum é um manifesto pessoal sim. Assim como foi o Livro do Desassossego. Por isso é que me inspirei tanto nele, que acabou por compilar os desabafos do Pessoa, assim como estas faixas foram os meus desabafos, os meus pensamentos. Andava a ver muitos documentários estrangeiros e a dada altura questionei-me sobre o facto de não estar a ver mais coisas do meu país. A partir daí comecei a pesquisar e a minha namorada Catarina também me mostrou alguns autores e deparei-me com o Agostinho da Silva que me viciou tanto como o Fernando Pessoa. Foquei-me e revi-me muito nestes dois autores. Lembro-me de pensar como escreviam tão bem e de forma tão atual. Revi-me especialmente em Álvaro de Campos e foi a partir deste heterónimo que me deu o clique. Percebi que fazia álbuns para pensadores. Os Orfeu, para mim, foi o grande grupo de pensadores reais. Eram geniais. Quis fazer-lhes uma homenagem. Cada frase dava para fazer um som, tinha epifanias de inspiração. O Sensei, o ilustrador da capa, ajudou-me muito a criar um caminho que me aproximasse ainda mais deste universo, através da criação da parte visual do álbum. Deu muita vida às faixas. Aproximou-as do áudio, por isso digo que ele foi o meu arquiteto. Fomos uma boa dupla, ninguém constrói nada sozinho. Tal como os Orfeu não eram os Orfeu se não formassem aquele grupo. Tentei recriar algo assim com quem trabalhei. E acaba por ser isto que quero alcançar, mais pensadores. Mais pensadores e menos rappers. Ou rappers poetas. Cheguei ao ponto de andar pelas ruas de Lisboa a tentar sentir o que lia sobre estes pensadores. Como se estivesse a interpretar uma personagem, enquanto tentava recriar aquele universo. Tenho muitas referencias ao longo do álbum sobre isto, os chamados easter eggs. Como os meus heterónimos, que fui criando à medida que lia e escrevia, à medida da minha inspiração.

Fotografia de Inês Bom / CCA

Portanto ao longo do álbum criaste várias personas. Esses heterónimos remontam a que?
São personalidades. É um bocado creepy até. Mas chegou ao ponto em que lhes atribuía altura, peso, nacionalidade, profissão, qualidades boas e más. Sou demasiado fã de Westworld, influenciou aqui o criar e moldar personalidades. E isso é bom para mim porque acabo por praticar maneiras diferentes de escrever, não estou sempre na minha praia. Ajuda-me a mudar o registo, a ser um artista mais completo. Por exemplo, eu sou uma pessoa bastante introvertida, sou muito bicho de mato. Mas quando estou em palco não posso mesmo ser essa pessoa. Eu também enquanto ouvinte não gosto de ir a um concerto e ver um artista morto em palco. Eu tenho uma variação muito grande de instrumentais, seja de jazz, jazz japonês, hip hop… eu rimo em cima de qualquer coisa. E uso os heterónimos nos vários sons, é inerente ao processo criativo. Embora no Álbum do Desassossego tenha sido mais o Mura.

Como foi o processo de composição e, posteriormente, de gravação das canções do álbum?
O processo de gravação foi todo feito em casa, apanhei a altura da pandemia e tive mais tempo livro para me dedicar a isso e escrever mais. Foi tudo muito natural. Estava com amigos que também estavam a sair de uns projetos, eu inspirava-os, eles inspiravam-me a mim. Alguns deles tinham instrumentais, o que foi bom pois davam-me instrumentais, como o Catalão, o Wugori que acabou por ser dj numa das faixas, o Sensei, Youngstud…foi tudo muito orgânico, estávamos muito juntos. Outra parte do processo remonta a algumas noites no bar 36 no Bairro Alto. Lá está, deixei de ser bicho do mato e passei a residente assíduo no bar. Isso ajudou-me tanto a nível pessoal como profissional. Criei muitas amizades e algumas delas depois participaram no álbum, como é o caso do Darksunn, do Saraiva. Posso-me orgulhar disto, porque acabou por ser um grupo de amigos que se entreajudava. E a cena bonita é que ninguém pediu nada a ninguém e todos lutaram por um projeto, mesmo não sendo deles. Nunca esperei ter uma equipa assim. Foi super fácil para mim trabalhar assim, com eles. Se calhar com outras pessoas, que me colocassem muitos entraves, eu ia ficar mais retraído e as coisas não tinham saído da mesma maneira. O facto de gravar em casa também ajudou, não tinha tantos olhos a verem-me, tantas pessoas ali a ouvirem-me, podia experimentar tudo o que eu quisesse sem ninguém me julgar.

Fotografia de Inês Bom / CCA

Além de compositor e performer trabalhas igualmente para a editora Godsize certo? 
Sim agora trabalho para a Godsize Records que é fundada pelo Sensei D e é algo de que me orgulho muito. Ele acaba por ser o meu mentor lá está. Tudo o que me faltava ele acabou por providenciar, a tal sabedoria, os planeamentos. Foi alguém quem me deu oportunidade. É designer e está muito ligado ao cinema e à musica então a ideia foi juntar tudo numa editora. E é nesse projeto que estou a trabalhar com ele. Queremos também ser colecionadores de artigos exclusivos de música, como foi o meu álbum e vamos faze-lo ao longo dos próximos lançamentos todos. Os álbuns vao levar um Obi, para quem não conhece é uma fita à volta do vinil que se utiliza muito no Japão e que hoje em dia tem muito valor para colecionadores. Então decidimos implementar essa estética na editora. Vamos criar também séries e podcasts (música em formato de série). É algo que queremos fazer para alem da musica, incluindo os nossos gostos pessoais ligados também ao cinema e à parte visual. A ideia também é apostar em várias pessoas, não é só um label de hip hop, e criar o nosso nicho artístico. Esta ideia também está muito interligada com a poesia. O último projeto que lançamos, o Francis Pierre (que também é um heterónimo e tem o Fernando Pessoa como referência). Esta muito ligado ao spokenword. É um rap consciente, para refletir. Eu vejo mais poesia do que rap na verdade.

Achas que o hip hop ao longo destes últimos 50 anos, em que passou de um estilo marginal e de caráter maioritariamente interventivo para um estilo comercial dos mais rentáveis, perdeu a sua identidade?
Não, acho que há espaço para tudo. Identidade há, tens é que saber procura-la. Cada vez há mais artistas e hoje em dia tens muita variedade e muito por onde escolher. O que falta é haver um mercado aqui em Portugal mais abrangente. Já nem falo de festivais, falo mesmo de casas, de produtoras. Eu sei que somos um país pequeno, mas tem de haver mais produtoras a trabalhar com os mais pequenos/desconhecidos. Que é o que acontece lá fora. Lá fora eu consigo ver um rapper que me diz muito e que só tem umas dez mil views. E se for preciso faz uma digressão. Cá o espaço está muito ocupado pelo tal “comercial rentável”. Claro que esses artistas não desmerecem o respeito que têm. Mas falta haver um circuito maior e mais abrangente. Porque há espaço e público para todos, não há é promoção e as casas não aceitam toda a gente. Também percebo, é uma forma de fazer dinheiro. Mas também não esquecer que aquele rapper que te dá dinheiro hoje, há um ano não dava. É tudo uma questão de tempo.

O que pode o público esperar do artista Mura no futuro? O que ainda está para vir?
Vou continuar com o projeto da Godsize, ajudar o máximo que puder o Sensei e os novos artistas que venham. Depois a solo será para muito breve, mas para já vou entrar em projetos associados a outros rappers, a outros artistas. Algumas coisas a acontecer que não posso revelar, mas que sairá no início do novo ano. Podem contar com muitos projetos, que eu não sou uma pessoa que se encoste muito. 

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