Entrevista. Nuno Artur Silva: “Precisamos, definitivamente, de um Instituto para a Comunicação Social”

por Ana Monteiro Fernandes,    9 Agosto, 2023
Entrevista. Nuno Artur Silva: “Precisamos, definitivamente, de um Instituto para a Comunicação Social”
Nuno Artur Silva / Fotografia via República Portuguesa – DR
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Num país dividido entre o cinema de autor, de um lado, e a indústria da telenovela, nas televisões, do outro, Nuno Artur Silva acha que falta espaço para o desenvolvimento de uma indústria audiovisual mais diversificada, que incentive filmes, séries, docudramas e documentários, entre outras mais experimentações. Em entrevista à Comunidade Cultura e Arte (CCA), por ocasião dos 30 anos da Produções Fictícias, revelou que “em 2015, quando fui para a administração da RTP, tínhamos telenovelas em horário nobre, nos três canais portugueses, das nove da noite até à meia-noite”, o que fazia de Portugal um caso único no panorama europeu, revelou. Essa escassez de indústria é o que dificulta, a seu ver, por exemplo, aumentar a quota de investimento do youtube e das plataformas de streaming, que se situa nos 5% dos rendimentos relevantes, dos quais 4% vão para investimento directo e, 1%, para o ICA, uma vez que, segundo a directiva europeia, as plataformas não podem “fazer mais do que os locais já fazem”.

A solução encontrada é, a seu ver, a solução conveniente, que irá beneficiar toda a indústria. Quanto à RTP, é de lei que a contribuição do audiovisual, a denominada CAV, acompanhe a inflação, o que não tem vindo a acontecer. O problema encontra-se no facto de a CAV estar anexa à factura da electricidade, o que acarretaria um custo ainda maior aos portugueses, caso a factura subisse ainda mais em tempos de crise. É necessário, porém, que se aumente o orçamento para a RTP, que “tem um orçamento cinco vezes inferior à média do orçamento das estações públicas europeias.” As plataformas RTP PLAY e RTP Arquivos seriam pontos chave de aposta, fomentando, ainda mais, projectos como RTP LAB, em colaboração com universidades e estudantes do audiovisual e cinema, abrindo portas à experimentação. Parcerias com mais plataformas e televisões públicas europeias seria, também, o caminho. Quanto aos média, é a favor da criação de um Instituto para a Comunicação Social, como já existiu outrora, o que seria bem vindo.

Nuno Artur Silva não é humorista, considera-se autor, mas acha engraçado, depois dos textos humorísticos que escreveu, depois de ter permitido programas como o Contra Informação, passar para o lado do governo como Secretário de Estado do Cinema, do Audiovisual e dos Média (SECAM), secretaria, no entanto, já extinta. Quando saiu do governo, foi altura de rever, mais uma vez, o espectáculo “Onde é que eu ia” que, em Janeiro deste ano pôde ver, após sucessivos adiamentos entre a administração da RTP e a Secretaria de Estado, a luz do dia. Após todos os espectáculos esgotados na estreia, Nuno Artur Silva vai apostar numa sala maior, em mais dois espetáculos especiais do “Onde é que eu ia”, no Tivoli, a 28 de Outubro, e no Porto, no Teatro Sá da Bandeira, a 1 de Dezembro. Quanto à relação entre políticos e humor, avisa que lidar com os humoristas com fair play é uma etapa sobre ser-se político. Pode acontecer o político, algumas vezes, não ter fair play, mas, no geral, torna-se mais complicado para o político, por isso, “o político sabe que é melhor, sempre, fingir que achou muita graça”, conclui.

Como foi passar de professor de português para argumentista e escrever para o Herman José?

Quase que diria que foi ao contrário, como foi passar de potencial argumentista para professor. Na verdade, desde que me lembro, já estava a escrever, a inventar projectos, a ter ideias e, portanto, é curioso que eu não sabia, ao certo, qual era o curso que queria tirar e, até quase por piada, acabei por ir para um curso de ciências antes de ir para um curso de letras. Mas o curso foi mais um percurso, na verdade, do que já fazia nessa altura, no liceu, ou até antes do liceu, que era juntar amigos e desenvolver projectos, desenvolver ideias, em que era eu, quase sempre, quem dava o pontapé de saída, quem escrevia as primeiras coisas. O ser professor, portanto, foi consequência do meu curso de literatura e foi o primeiro emprego possível, a minha primeira fonte de rendimento e a minha primeira independência.

Foi quando saí de casa dos meus pais e pude alugar uma casa com o meu ordenado de professor. Isso foi aos 23, 24 anos, quando fui colocado na Escola Veiga-Beirão, na secção do Ateneu, e fui dar aulas de português para o ensino secundário — aí começou a experiência de professor que foi incrível. Dei aulas durante sete anos em escolas de Lisboa ou na periferia, estive no Cacém, em Oeiras, estive depois, sobretudo, nas Olaias e adorei todo o tempo que dei aulas, gostei muito. Adorei a experiência de ser professor, professor de português, no ensino secundário.

Dei aulas à noite também, dei aulas a adultos, trabalhadores estudantes, e foi uma experiência muito enriquecedora e muito dura. Enquanto dava aulas escrevia para aqui e para ali e, depois, houve um momento em que percebi que tinha uma oportunidade de viver da escrita. Foi aí que deixei de dar aulas — estava no processo de estágio, estava quase a tornar-me professor efectivo — quando recebi o convite do Herman para escrever para ele e foi esse convite que me fez pensar que era o momento de fundar uma empresa de escrita.

“Dei aulas à noite também, dei aulas a adultos, trabalhadores estudantes, e foi uma experiência muito enriquecedora e muito dura. Enquanto dava aulas escrevia para aqui e para ali e, depois, houve um momento em que percebi que tinha uma oportunidade de viver da escrita.”

Referiu que foi duro também. Porquê?

Foi duro neste sentido — ser professor, sobretudo com turmas muito grandes. Lembro-me, principalmente, daquele período em que dava aulas no Cacém à noite, aquela experiência de ter turmas de 30 e tal alunos. Era difícil compatibilizar a matéria que tínhamos no currículo com o tempo, as condições que tínhamos para dar as aulas, mas a verdade é que todos nós, professores, fazemos o possível para cruzar essas duas realidades: aquilo que achava que devia ser uma aula e que, às vezes, não era completamente coincidente com o programa que tínhamos de dar. Mas foi muito interessante essa aprendizagem como professor, não era fácil. A intensidade que se põe na aula e o esforço que é necessário para se ter 30 pessoas diferentes, mas atentas, é um desafio enorme.

Nem sempre é fácil levar todos no mesmo barco.

E as pessoas ainda não são adultas, adolescentes, sobretudo e, muitas vezes, dispersos. E a experiência que tive com trabalhadores, também, foi marcante: pessoas que trabalhavam o dia inteiro e, à noite, ainda iam ter aulas. Era a dificuldade, o desafio intenso de tentar, todos os dias, ter a capacidade de interessar um conjunto tão diversificado de pessoas.

“A intensidade que se põe na aula e o esforço que é necessário para se ter 30 pessoas diferentes, mas atentas, é um desafio enorme.”

Como é que categorizaria as Produções Fictícias? Um projecto de experimentação, de humoristas ou de guionistas?

Tudo junto e, na altura, não tínhamos a noção exacta do que é que podia ser. Aliás, a minha cabeça, naquela altura, não estava, sequer, virada para esse lado: tinha tido um convite para fazer o mestrado de Literatura Portuguesa Contemporânea, na Universidade Nova na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, e tinha tido um contacto, até, para ir trabalhar na arca do Fernando Pessoa. Estávamos nos anos 80 e o Pessoa tinha caído no domínio público, estávamos na descoberta do Pessoa. O Livro do Desassossego tinha sido editado há relativamente pouco tempo e, portanto, estava virado para ir para uma carreira de pessoano e de universitário. Entretanto, ia dando aulas de português, no liceu, e ia escrevendo os meus textos para aqui e para ali e, na altura, não havia internet nem, sequer, canais cabo.

O que fazia, portanto, era com os meus amigos da faculdade, de liceu e de bairro — fazíamos uns sketchs, umas peças de teatro ao vivo com sketches e, finalmente, consegui uma oportunidade, na RTP, quando estreou um programa do Joaquim Letria e desafiaram-me. Quem me desafiou foi o José Nuno Martins e, depois, o Zé Pedro Gomes e o Miguel Guilherme, que tinham uma dupla, e fariam sketches todas as semanas. Eles não me conheciam e eu não os conhecia, mas tinha deixado textos meus na RTP e o José Nuno Martins tinha gostado: resumindo, convidaram-me para escrever para eles.

Começámos a fazer um sketch por semana para o programa do Letria, correu muito bem, e depois aquilo foi visto pelo Herman. O Herman disse ao Zé Pedro Gomes que gostava de me conhecer e, então, conheci o Herman e ele desafiou-me para escrever para ele. Aí percebo que tenho a oportunidade de fazer uma coisa com que sonhava há muito tempo, que era juntar os meus amigos parceiros da faculdade, os que faziam teatro comigo, os que faziam os sketches humorísticos que nós fazíamos, e fazermos uma empresa de escrita.

No início, a ideia era escrever para, ou seja, iam abrir os canais de televisão privados, a SIC tinha começado há relativamente pouco tempo, vinha aí a TVI depois e, portanto, a percepção é que ia haver mercado para escrever para televisão. Aquilo que nós queríamos, realmente, era escrever filmes e séries, mas o cinema português não era, propriamente, um cinema muito dado a argumento. Era um cinema em que o papel do argumentista era claramente subalterno, muitíssimo subalternizado, em que quem tinha o domínio total era o realizador, o realizador/autor. Achámos, portanto, que a televisão talvez fosse a possibilidade, se a televisão começasse a fazer séries, mas a porta de entrada foi o humor.

Começámos a escrever sketches de humor e, depois, quando começámos a escrever para o Herman, o Herman era a grande vedeta do humor, e não só, era a grande vedeta da televisão portuguesa na altura e, basicamente, começava a haver muito trabalho para o Herman. Aconteceu, depois, aquela coisa que é muito comum: estávamos não sei quantos anos a mandar propostas e nada acontecia, de repente, começámos a trabalhar para o programa do Letria, para o Herman e o telefone, depois, não parava de tocar, portanto, começámos a ter cada vez mais trabalho. Quando digo nós, era eu, o Rui Cardoso Martins, o José Pina e o Miguel Viterbo. Fomos os quatro fundadores do projecto das Produções Fictícias, em 1993, faz agora, precisamente, 30 anos.

“Da mesma maneira que temos um Instituto do Cinema e do Audiovisual, o ICA, que executa as políticas do cinema e do audiovisual e tem autonomia para criar programas, concursos e para dar apoios numa lógica de concurso, acho que recuperar ou abrir qualquer coisa como o Instituto da Comunicação Social seria uma boa ideia. Um Instituto que servisse para dar apoio a projectos de comunicação social, ou mais exactamente a projectos de jornalismo.

Mas se o objectivo passava pelas séries, o argumento e o audiovisual, talvez a porta de entrada do humor tenha sido casual ou não?

Foi acidental, completamente. Quer dizer, nós fazíamos sketches de humor ao vivo. Fizemos teatro no café-teatro, no Teatro da Comuna, por exemplo, fizemos no teatro da nova, no teatro da Faculdade de Letras, também. Escrevi duas peças humorísticas, duas peças cómicas, nessa altura, portanto, o humor já lá estava — os Monty Python eram uma grande influência para nós. O que sentimos foi que nos queríamos profissionalizar na área da escrita, o nosso entendimento da escrita era escrever para. Queríamos, portanto, formar uma empresa que escrevesse para cinema, televisão e teatro, que escrevesse para os vários meios e que escrevesse os diferentes géneros. A oportunidade surgiu para escrever humor e nós escrevemos humor, pronto, depois as coisas desenrolaram-se de uma forma muito rápida e muito virada para o humor.

Começaram a surgir cada vez mais propostas e trabalhámos com a Ana Bola, com o Herman José depois do que foi, talvez, o programa mais emblemática dessa época, que foi o Herman Enciclopédia e, entretanto, surgiu a oportunidade de fazermos outra coisa com o Contra Informação. Ficámos, então, com duas áreas muito populares e com muito sucesso: o trabalho com o Herman e o trabalho com o Contra Informação.  A partir daí, depois, a empresa desenvolveu-se e percebemos que para os textos serem mais respeitados, para podermos fazer os projectos que queríamos, tínhamos de ter um controlo editorial que fosse além da escrita. É aí que, de certa maneira, tomo as funções de director criativo, o que, na cultura anglo-saxónica, se designa o showrunner — passo a exercer essa função.

Portanto, as Produções Fictícias começam a ter mais gente. Lembro-me que, depois, apareceu a Patrícia Castanheira, que foi sugerida por um professor da Nova que detectou que ela tinha talento e foi desafiada para escrever connosco; depois apareceu o Nuno Markl — tinha-o ouvido a fazer uma rádio novela, achei graça e desafiei-o — depois apareceu o João Quadros, a Maria João Cruz e o Eduardo Madeira. Quando entrou o Eduardo Madeira entrou, igualmente, o Henrique Dias e, um pouco antes, entrou também o Filipe Homem Fonseca. Surgiu, de repente, muito trabalho e fui recrutando pessoas para se juntarem a nós. Começámos a perceber, posteriormente, que para conseguirmos que os nossos textos fossem realizados conforme os imaginávamos, teríamos de ter o tal estatuto, em que eu era uma espécie de showrunner, director criativo.

Depois, a consequência, a lógica disto, era nós próprios tornarmo-nos produtores das Produções Fictícias que, a partir de dada altura, passaram a funcionar como produtora. Depois, começámos a fazer outras coisas além do humor e começámos a perceber que dentro das Produções havia autores que tinham projectos próprios e individuais, então, as Produções Fictícias tornaram-se numa agência, uma agência criativa, que foi a formação que depois perdurou. Posteriormente, começámos a ter o nosso próprio canal, o Canal Q.

“Aquilo que nós queríamos, realmente, era escrever filmes e séries, mas o cinema português não era, propriamente, um cinema muito dado a argumento. Era um cinema em que o papel do argumentista era claramente subalterno, muitíssimo subalternizado, em que quem tinha o domínio total era o realizador, o realizador/autor.”

Para quem está a começar, os tempos recentes são mais fáceis ou mais difíceis do que quando começou? Quais os desafios?

É sempre divertido fazer a história alternativa, ou transportar coisas de uma década para outra. Não teria sido, certamente, da mesma maneira. Se tivesse começado a trabalhar dez anos mais tarde, a realidade mediática era completamente diferente, já havia canais cabo, e era natural que tivéssemos tido um outro tipo de desenvolvimento. Se tivéssemos aparecido anos mais tarde, então, com a internet, seria completamente diferente. Portanto, as Produções nasceram naquela época e foram um fruto dessa época, também. Nesse aspecto, não me lembro de uma outra empresa que tivesse as características das Produções Fictícias. Fomos evoluindo, de facto, e fomos mudando de formato.

Nascemos como empresa de escrita e, depois, passámos a uma empresa de escrita em que os escritores ganhavam um estatuto de quase produtores. Começámos a fazer produção e, finalmente, tornamo-nos numa agência, passamos a representar marcas e, depois, tivemos o nosso próprio canal. Esta evolução toda fez com que tivéssemos um papel, ali entre 1993, 94, 95, que foi quando começámos. O ano de 96 foi um ano de grande impacto porque tínhamos o Herman Enciclopédia e o Contra Informação a acontecer em grande.

Depois, fomos sempre evoluindo, até a Produções Fictícias crescer em sub-marcas como, por exemplo, o Inimigo Público, ou quando começámos, por exemplo, a fazer teatro e desenvolvemos o projecto das Urgências, com o Tiago Rodrigues, que também passou por lá, ou quando fizemos uma coisa radicalmente diferente que foi fazer um programa de poesia para a RTP, chamado Voz, com a produtora Até ao fim do mundo, ou quando começámos a fazer tertúlias culturais no Teatro São Luiz, que era o “É a Cultura, Estúpido!”, onde se estrearam pela primeira vez, nesses formatos, pessoas como o Daniel Oliveira, o Pedro Mexia, a Anabela Mota Ribeiro, o João Miguel Tavares, o Nuno Costa Santos e o José Mário Silva: entraram nisso na altura em que eram todos bloggers e não eram conhecidos.

Foram projectos que fomos fazendo e, depois, mais tarde, veio o Canal Q, apareceu o Eixo do Mal, ou seja, fomos diversificando, também, e aparecendo cada vez mais nesse formato de Agência Criativa. Tanto poderia estar, como no início, a escrever textos para o Herman mas, entretanto, o projecto desenvolveu. Tanto estávamos a agenciar o Homem que Mordeu o Cão, como os Gato Fedorento e, até, a fazer o tal projecto das peças de teatro para o Maria de Matos, com o Tiago Rodrigues, e a fazer o programa de poesia para a RTP com a Até ao fim do mundo, ou seja, coisas já bastante diferentes.

O Canal Q também tinha uma componente bastante plural, que ia desde o humor até à literatura e tinha um pendor de experimentação muito grande. Quando as Produções Fictícias começaram, penso que notou, na altura, um vazio na indústria dos documentários ou numa maior diversidade de conteúdos. Como é que olha para esse panorama actualmente?

Acho que todas as empresas de conteúdos audiovisuais precisam de ter as suas áreas de pesquisa e desenvolvimento. As empresas tecnológicas têm o research and development: são áreas, nas indústrias tecnológicas isso existe muito, que têm pessoas a fazer umas experiências para ver o que é que sai dali. Na área dos conteúdos isso não existe muito, mas deveria existir. A SIC Radical, durante alguns tempos, fez isso na SIC, e revelou alguns apresentadores novos e alguns formatos novos. Depois, a SIC Radical desinvestiu no conteúdo português e deixou bastante esse território.

Fizemos muito isso no Canal Q, um laboratório de experiências onde acabaram por aparecer pessoas como, por exemplo, a Joana Marques e o Daniel Leitão, que fizeram lá o Altos e Baixos e que foi, digamos, um laboratório para o que a Joana está a fazer hoje; o Vasco Palmeirim, que se estreou em televisão no Canal Q; a Ana Markl e a Inês Lopes Gonçalves, todos estrearam em televisão no Canal Q. Portanto, esse lado experimental é decisivo porque é ali que se arrisca mais.

Acho que, hoje em dia, esse deveria ser o papel, já não digo de canais, mas das plataformas: a RTP tem isso através do RTP Play, principalmente através da RTP LAB. Tive, inclusivamente, a ocasião de dar força a esse projecto e de o desenvolvermos, o RTP LAB, que acho que deveria ter muito mais investimento do que aquele que tem. Mas qualquer estação deveria ter, naturalmente, no online, essa possibilidade de ter uma área de investimento onde se faz a experiência, onde se faz o tal research and development. Infelizmente, não é isso que acontece, ou não é isso que acontece com a intensidade com que deveria.

“Onde é que eu ia?” / Fotografia de Estelle Valente

O SECAM, a secretaria na qual esteve, deixou de existir. O que acha disso? Não continuaria a fazer falta?

No momento em que fui para lá, em que foi criada essa secretaria, havia um projecto, uma ideia para desenvolver, precisamente, essa área. E é importante lembrarmo-nos que, quando fui convidado para o governo, estávamos em Outubro de 2019 e havia um contexto económico favorável: estávamos a sair das restrições da Troika, a economia estava a crescer e isto foi antes da pandemia. O que acontece é que quando fui convidado, o convite era para desenvolver todo o sector do cinema, do audiovisual, e o governo até via isso com uma abertura muito grande.

A existência da Secretaria de Estado era uma coisa até simbólica, no sentido de importância que o governo estava a dar a esse sector. Havia, portanto, um plano que tínhamos de colocar em prática até porque, por graça, o plano foi entregue por mim e pela ministra no gabinete do Primeiro-Ministro, para ele ser avaliado e, em Fevereiro de 2020, o plano tinha sido entregue. Era um plano ambicioso que envolvia o governo todo, em particular a área da economia, a área da cultura e a área dos negócios estrangeiros — era um plano ambicioso.

Em Março, com a pandemia, mudou tudo, ou seja, a situação mudou radicalmente, e não foi mais possível pensar, sequer, em implantar aquela estratégia, porque estávamos numa situação de emergência em que o sector precisava de dinheiro enviado para acudir aquela paragem, que obrigou os agentes culturais e toda a gente a ir para casa. Mudou tudo, portanto, e estivemos assim dois anos e meio.

Quando nos preparávamos para voltar ao plano, o governo caiu, não houve mais condições. O governo, tendo caído, a ministra não continuou, não continuei e optou-se por não continuar com a Secretaria de Estado do Cinema. Aliás, o governo diminuiu bastante as secretarias e o contexto económico era diferente, o contexto mundial era diferente. Exigiu-se um governo mais pequeno e a secretaria deixou de existir. Digamos que foi uma oportunidade que se perdeu, uma janela de oportunidade.

“Neste momento, há uma crise enorme em todo o sector dos média, em todos eles, os que estão afectos e os que não estão afectos, por causa da questão das grandes plataformas e como a publicidade, o modelo de negócio mudou completamente.”

Uma vez que esta era uma secretaria que também englobava os média, como olha para a questão da sustentabilidade do jornalismo e, em especial, dos novos órgãos de comunicação social que não estão afectos a grandes grupos de média?

Neste momento, há uma crise enorme em todo o sector dos média, em todos eles, os que estão afectos e os que não estão afectos, por causa da questão das grandes plataformas e como a publicidade, o modelo de negócio mudou completamente. A publicidade está a ser levada para as plataformas e a sair dos órgãos de comunicação propriamente ditos. Há, depois, um outro desafio grande que tem a ver com as notícias falsas, com a história toda da desinformação, e com a proliferação de sistemas alternativos de consumo de informação que premeiam a desinformação, de facto.

Se houve um momento, não há muito tempo, em que a relação do governo com os média era de distância para garantir a independência dos média, há outro momento, em que eu era Secretário de Estado, em que se colocava esta grande questão a um nível mundial, em Portugal, e a nível europeu: o que fazer para garantir a existência de meios de informação independentes, para combater as fake news, a desinformação e, ao mesmo tempo, não fazer desses apoios aos média uma forma de controlo sobre os mesmos média. É uma equação muito difícil e para a qual ainda não tínhamos encontrado uma solução.

Não é uma solução fácil, investiu-se bastante em dar apoio ao nível de mecanismos e instrumentos para se combater a desinformação, mas é um trabalho, uma situação que levanta muitas perguntas: no fundo, como é que se pode sobreviver na sociedade contemporânea com estes desafios todos, uma imprensa livre, independente e forte? Este é que é o problema, de facto. Pequenos projectos podem aparecer aqui e ali, mas quanto a uma imprensa capaz de ser economicamente independente, esse é um desafio mais complicado. A imprensa tem dependido, muitas vezes, do lado do entretenimento da televisão.

Os canais de televisão, muitas vezes — a maior parte dos casos os canais informativos — vivem das receitas que o lado do entretenimento consegue. Muitas vezes, o problema é que esse lado do entretenimento contamina o lado informativo, também, e os próprios jornais transformam-se, às vezes, em momentos de entretenimento, assim como a própria escolha editorial que vai no sentido da informação espectáculo, da informação sensacionalista, da informação especulativa, da informação que parece de reality show, e não de um bom rigor do jornalismo. O clickbait, no caso da imprensa escrita, ou as audiências, no caso da televisão, falam mais forte e obrigam, muitas vezes, os jornalistas a fazerem papéis de entertainers, e esse é o problema.

“Onde é que eu ia?” / Fotografia de Estelle Valente

Mas já existiu um Instituto da Comunicação Social, acha que a reactivação deste instituto seria uma boa ideia?

Era uma excelente ideia. Repare, da mesma maneira que temos um Instituto do Cinema e do Audiovisual, o ICA, que executa as políticas do cinema e do audiovisual e tem autonomia para criar programas, concursos e para dar apoios numa lógica de concurso, acho que recuperar ou abrir qualquer coisa como o Instituto da Comunicação Social seria uma boa ideia. Um Instituto que servisse para dar apoio a projectos de comunicação social, ou mais exactamente a projectos de jornalismo, que sejam de facto projectos de jornalismo, mas que poderiam ser apoiados, encontrando uma maneira desse apoio ser pago independentemente dos conteúdos que depois venham a ser desenvolvidos de âmbito jornalístico. Há muito caminho a fazer, desde apoio tecnológico, apoio para bolsas de jornalismo, há muita possibilidade aí. Portanto, definitivamente, precisávamos, sim, de um Instituto para a Comunicação Social.

“Como é que se pode sobreviver na sociedade contemporânea com estes desafios todos, uma imprensa livre, independente e forte? Este é que é o problema, de facto. Pequenos projectos podem aparecer aqui e ali, mas quanto a uma imprensa capaz de ser economicamente independente, esse é um desafio mais complicado. A imprensa tem dependido, muitas vezes, do lado do entretenimento da televisão.”

A questão dos 15 milhões de euros, como adiantamento da publicidade aos média, foi muito abordada. Mas considera que a solução para os média ainda passa pela publicidade?

Acho que o melhor modelo para os média é um modelo que estimule uma relação directa entre o leitor/ espectador e jornalista. Ou seja, o modelo melhor é a assinatura, é o pagamento. As pessoas pagarem, as pessoas perceberem que se querem ter informação fidedigna pagam a informação e esse contrato directo parece ser o melhor. Deveria haver uma educação que fizesse ver às pessoas que os conteúdos jornalísticos não são gratuitos e, para obter conteúdos jornalísticos, como para se poder ir ao cinema ou para ler um livro, há um investimento financeiro que se deve fazer e um contrato, que é isto: eu pago para ter bom jornalismo. Acho que essa seria a melhor relação. A publicidade é um meio mais instável porque a publicidade tenderá a ir, sempre, para onde há mais audiência, e a audiência tenderá sempre a obrigar os conteúdos a sacrificarem muitas vezes o que está certo, face àquilo que dá mais clickbait ou audiência. Isso não é, obviamente, jornalismo.

Há outras possibilidades, como as fundações criarem situações de retorno à sociedade, através do patrocínio ou de mecenato, por exemplo. Pensamos muitas vezes em projectos como o Público, mas só é possível porque tem atrás dele um grupo, que é como se fosse a Fundação Sonae, ou a Fundação Belmiro de Azevedo, que suporta um jornal como aquele. Em certo sentido, esse é outro caminho. Também podemos pensar que a nível de intervenção do Estado poderia haver benefícios fiscais, por exemplo, para quem assinasse jornais ou revistas de informação: isso seria uma forma de incentivar o consumo do jornalismo. Há muitos caminhos que podem ser assinalados, respondendo à sua pergunta, de qual é a forma dos jornais subsistirem. Acho que esta era uma maneira, mesmo através da assinatura ou da compra directa: a relação directa do leitor com o jornalista através da compra.

“A nível de intervenção do Estado poderia haver benefícios fiscais, por exemplo, para quem assinasse jornais ou revistas de informação: isso seria uma forma de incentivar o consumo do jornalismo.”

É a favor de se aumentar a taxa às plataformas de streaming e YouTube, como acontece em alguns países europeus, ou concorda com a solução encontrada?

Essa história tem sido muito mal contada. As plataformas de streaming têm um investimento de 5% em relação aos seus ganhos relevantes em Portugal. Desses 5%, 4% são orçamento directo e, assim, 1% vai para o ICA. Mas o investimento que as plataformas são obrigadas a fazer é de 5% dos rendimentos relevantes. Isto está em linha com o que os outros países da Europa estão a fazer, só não está em linha com os países da Europa onde há mais investimento na área audiovisual. O problema em Portugal é que não há uma indústria do audiovisual.

O que nós temos em Portugal é uma situação em que há um investimento no cinema, que é totalmente subsidiário, e do outro lado, a única área da ficção, ou da produção do audiovisual onde há uma indústria, é a telenovela. Não há, como nos outros países europeus — e não falo da França, que não comparo com Portugal, desde logo, por questões de escala e questões históricas — mas por exemplo, como a Dinamarca, onde há uma indústria audiovisual e onde há, não só, uma indústria, como uma produção regular de filmes, séries, “docudramas” e todo o tipo de documentários que não só são diversos, como são muito mais internacionais do que nós, infelizmente.

O que nos parece que é um problema em Portugal, é que temos um cinema de autor onde há liberdade e criatividade e, depois, do outro lado, temos a televisão em que não temos nada a não ser telenovelas. Este problema começou em 1977, quer dizer, este problema começou com a ditadura, a ditadura é a grande responsável disto. Quando acabou, em 1974, demorou muito tempo até virem os canais privados, que só começam 20 anos depois, em 93. Em 1977, a estreia da primeira telenovela brasileira, “Gabriela Cravo e Canela”, foi um êxito tão grande, tão grande, que a partir daí, o horário nobre ficou dominado por telenovelas brasileiras. Quando os canais privados surgiram, reproduziram o modelo da televisão pública. Em 2015, quando fui para a administração da RTP, tínhamos telenovelas em horário nobre, nos três canais portugueses, das nove da noite até à meia-noite.

Tínhamos esta realidade: de um lado tínhamos os filmes de autor, cujo realizador fazia o circuito dos festivais, mas com poucas pessoas a ver — eram filmes com o circuito festivaleiro, mas não tinham muito público —, e do outro lado, tínhamos novelas. Éramos, portanto, um caso completamente atípico, porque não tínhamos produção significativa de séries, de documentários e, sobretudo, não tínhamos, no audiovisual, nenhuma circulação internacional. Quando as plataformas vêm, há aqui uma oportunidade de obrigarmos a investir. Através da directiva europeia, elas são obrigadas a investir nos territórios onde negoceiam, mas não podem vir fazer mais do que aquilo que os locais já fazem porque isso, ao abrigo da directiva, podia ser considerado discriminatório.

Em países como a França, onde se investe muito em séries e em filmes, os canais franceses fazem um grande investimento na ficção, é possível exigir às plataformas uma quota maior. Os dois canais privados que existem, SIC e TVI, não têm muito a obrigação de investir em ficção, não podemos exigir às plataformas que venham investir mais do que os locais porque, ao abrigo da lei europeia, seriam imediatamente acusados de serem discriminados.

Aquilo que se conseguiu, e acho que é um bom princípio, foi o seguinte: 5% dos rendimentos relevantes, dos quais 4% são para investimento directo. O que quer dizer investimento directo? Quer dizer que os produtores, os realizadores, os autores levam as suas propostas directamente às plataformas e há uma relação directa entre os portugueses e as plataformas internacionais. Isto, para um produtor português, é mais interessante, do que estar à espera do júri do ICA. Mas o que se tem dito é que a contribuição para as plataformas portuguesas é 1%, isso é uma falácia. São 5%, dos quais 4% são investimento directo, e 1% vai para o ICA.

“A publicidade é um meio mais instável porque a publicidade tenderá a ir, sempre, para onde há mais audiência, e a audiência tenderá sempre a obrigar os conteúdos a sacrificarem muitas vezes o que está certo, face àquilo que dá mais clickbait ou audiência. Isso não é, obviamente, jornalismo.”

No caso do cinema, plataformas de streaming poderão ser um auxílio ou poderão, pelo contrário, acentuar diferenças ou comprometer mais, acabar por engolir a aposta ou a visibilidade de pequenos projectos nacionais.

A indústria cinematográfica portuguesa continua como sempre continuou, com mais dinheiro do que já mais teve. Entretanto, há novos mecanismos de financiamento da indústria cinematográfica, desde logo o ICA, com o fundo de turismo que passou a funcionar e a apoiar, também, a indústria cinematográfica. A indústria cinematográfica ganhou mais dinheiro, não perdeu e, também, tem a oportunidade de poder vender com as plataformas, que vende, porque há filmes portugueses nas plataformas internacionais. Não há investimento à cabeça, mas eles compraram os conteúdos, portanto, nada foi retirado ao cinema português, foi acrescentado, o que se criou foi novas possibilidades.

Aquilo que nós acreditámos e continuo a acreditar é que, quando se criou a indústria, a indústria não vai ocupar o lugar de tudo o resto. Vai aumentar ainda mais, inclusivamente, a possibilidade de se fazer filmes de autor. Nos anos 80, o Rui Reininho andava, sempre, com uma t-shirt do Marco Paulo e, uma vez, perguntaram-lhe porque é que andava com uma t-shirt do Marco Paulo. Ele respondeu que os discos que o Marco Paulo vendia permitiam à editora investir em projectos alternativos como os GNR. Temos de olhar muito para a indústria musical, porque acho que a indústria musical foi abrindo caminho para a indústria que o audiovisual tem de seguir.

Só teremos uma situação cinematográfica, no audiovisual, rica se os criadores tiverem muitas portas onde bater. Se só tiverem o ICA, com os júris, e a RTP, há muita pouca diversidade. Assim, sem comprometer os júris do ICA e sem comprometer as linhas editoriais da RTP, acrescentámos outras coisas como o fundo de turismo, as plataformas e as obrigações das plataformas. Assim, se formos buscar outros fundos, outros financiamentos possíveis, se convocarmos a economia para dar incentivos às empresas de produção, ou seja, se desenvolvermos as bases para criar uma indústria, há mais portas onde se bater, e não menos.

É claro que há riscos e, esses riscos, não os podemos correr, de ficarmos todos a trabalhar numa uniformização de formatos. Não é isso, mas aquilo que nós estamos a falar é de manter a produção que existe, reforçar o que existe, simplesmente abrir outras possibilidades. É isto que acho que tem acontecido.

Apesar de tudo, apesar da pandemia, no tempo em que estivemos no governo, naqueles dois anos e meio, conseguimos uma coisa que foi inscrever verbas do PRR para a digitalização de todo o cinema português, por exemplo. Comprámos, também, 150 projectores para colocar em 150 cineteatros do país inteiro. Isto vai trazer, obviamente, um reforço para os vários cineteatros onde passa a haver a possibilidade de exibir digitalmente cinema. Dá uma possibilidade para que surjam, naturalmente, os cineclubes, os festivais de cinema e, portanto, para que isto dinamize, que é a missão principal do Ministério da Cultura, que é trabalhar para os cidadãos, ou seja, abrir o acesso da cultura aos cidadãos.

“Temos de olhar muito para a indústria musical, porque acho que a indústria musical foi abrindo caminho para a indústria que o audiovisual tem de seguir.”

Mas a rede de distribuição do cinema de autor português não poderia ser mais equitativa, para haver um maior acesso da população a esse cinema? Parece-me ainda que, a não ser em shoppings, torna-se difícil encontrar locais com uma boa curadoria cinematográfica, fora de Lisboa e Porto.

Como acabei de dizer, acho que a medida de colocar 150 projectores digitais em 150 cineteatros foi uma medida muito importante para dar a possibilidade, às estruturas locais, de organizarem festivais e cineclubes. Nesse aspecto, acho que é uma boa e clara contribuição. Também houve a contribuição de digitalizar o cinema português: até 2024, todos os filmes portugueses estão em formato digital. Isto é um passo muito significativo para a circulação do cinema português, para a sua divulgação. Agora, há desafios que não são nacionais, são mundiais, e são pessoas como o Spielberg e o Coppola que falam disso; qual o futuro do cinema em salas? Isso é outra questão.

Neste momento, há uma crise de cinema, sobretudo de cinema de autor, em salas. Mas isso tem a ver com os desafios tecnológicos. A partir do momento em que as pessoas têm condições excepcionais para verem em casa, em ecrãs enormes, tudo, filmes, séries e documentários, é claro que vai diminuir o número de pessoas que vão às salas. Temos, por um lado, nas salas, o cinema adolescente e infantil, o que, provavelmente, à imagem e ao som vai acrescentar uma espécie de feira de diversões, com movimento de cadeiras que balançam, cheiros, para além das pipocas e tudo o resto. Ir ao cinema, em família, com as crianças, ou com adolescentes para ver os filmes de super-heróis, vai ser qualquer coisa mais parecida com uma espécie de feira, de efeitos especiais. Isso, por um lado, por outro lado, há uma valorização dos festivais, onde o cinema de autor vai encontrar o seu público natural e onde se vai, quase, para o cinema com uma lógica de quem vai para o festival de teatro, que é um sítio onde se podem encontrar os artistas, realizadores, os críticos, discutir e conversar.

Isto, portanto, tem a ver com as dinâmicas que a tecnologia introduz nas sociedades. Acho que, por um lado, há muita mais gente a ver em casa, por outro lado, valorizam-se mais as sessões especiais, os festivais. Digamos, a exibição, a oportunidade de ver um filme em ecrã grande vai fazer, dessa exibição, um acontecimento. Em certo sentido, há uma aproximação do cinema quase à experiencia teatral, no sentido em que haverá menos sessões e elas, provavelmente, terão qualquer coisa especial. Imaginemos que os autores, os grandes realizadores poderão, cada vez que exibem o seu filme em festivais, irem, depois, a sessões paralelas. Isto vê-se, cada vez mais, em Portugal, quando se estreia um filme: o filme vai a Lisboa com os atores, depois há uma sessão no Porto onde vão os atores e o realizador, ou seja, tenta-se dar ao espectador mais qualquer coisa do que, meramente, a experiência do filme.

“Onde é que eu ia?” / Fotografia de Estelle Valente

Referiu numa entrevista no Maluco Beleza que, quanto a financiamento de projectos de cinema, este não deveria estar relegado a um só ministério, neste caso o da cultura, mas ao governo como um todo. Como seria tal?

Era esse, exactamente, o ponto de onde partia a Secretaria de Estado, da qual eu fiz parte, e a própria criação daquela Secretaria de Estado, não era por acaso que se chamava do cinema, do audiovisual e dos média. A ideia era que o governo entendesse o cinema e o audiovisual como uma prioridade governamental e não como uma prioridade do Ministério da Cultura. Ou seja, era, no fundo, convocar todo o governo para a importância que tem hoje, nas sociedades contemporâneas, a indústria audiovisual e a arte audiovisual, porque andam ligadas.

Em Espanha, foi aprovado um pacote do audiovisual de grande investimento que ia desde o cinema até aos jogos e videojogos. Era, portanto, um pacote virado para aquilo que é, de facto, a forma mais popular, neste momento, das pessoas consumirem histórias e experiências, numa big picture, digamos a expressão mais genérica. Vai desde os jogos, à nova realidade virtual, às experiências com os novos jogos que estão a ser lançados mas, também, até às experiências tradicionais de ver cinema em sala como um acto colectivo, de um grupo de pessoas numa sala. Ou seja, o pacote espanhol incluía isso tudo e era apresentado, simultaneamente, pelo Ministério da Cultura e pelo Ministério da Economia.

Quem apresentou o pacote foi o Sánchez, o primeiro-ministro. Isso era o que nós achávamos que ia acontecer cá, que era criar um conjunto de incentivos que, insisto, não era alterar o que estava — o ICA continua a ter as suas políticas, é fundamental que se continue financiar filmes que não tenham rentabilidade económica. É fundamental que continue a haver concursos para projectos que, de outra maneira, não veriam a luz do dia. É fundamental que exista uma RTP que invista em filmes e que possam, simultaneamente, ir para a RTP1, com perspectiva de uma maior, digamos, ambição de público e de popularidade e, simultaneamente, filmes de arte e ensaio ou, digamos, mais experimentais, que tenham lugar na RTP2. Não interessa, porque o mais importante, na RTP, já não são os canais, é a plataforma RTP Play e a plataforma RTP Arquivos.

É fundamental que continue a existir isso, mas aquilo que nós sempre defendemos é que é importante criar, para além disso, os tais sítios onde se pode bater à porta de outra maneira e, por exemplo, pensarmos em política da língua portuguesa que é, talvez, o nosso activo estratégico mais importante, juntamente com o mar, a nossa relação com o mar. Ora, não há uma política da língua sem uma política do audiovisual e, isso, não pode ser deixado só ao Ministério da Cultura, tem de ser assumido como um todo, e é isso que nós defendemos.

Parece-me que quanto a séries e documentários, a RTP tem apresentado propostas, mas as séries e documentários parecem ser, quase sempre, muito condensadas, ou seja, muito curtas no tempo. Nota-se que a intenção está lá, mas sente-se, depois, em muitos casos, a falta de um maior desenvolvimento. Concorda? Porque é que acha que isto acontece?

O problema essencial é financeiro, ou seja, não nos podemos esquecer de uma coisa, a RTP tem um orçamento cinco vezes inferior à média do orçamento das estações públicas europeias, portanto, aquilo que investe em série e documentários é, provavelmente, cinco vezes menos do que deveria investir. Por exemplo, uma série europeia, um episódio de uma série europeia — séries dinamarquesas ou nórdicas — pode custar 750 mil ou mesmo um milhão de euros por episódio, um exemplo. Em Portugal, se custarem 100 mil já não é mau. Ou seja, é com isto que, depois, nos comparamos.

O que é que normalmente fica a faltar? Tempo, desde logo: as nossas séries têm de ser gravadas muito mais depressa, com menos dias de rodagem, o que dificulta logo tudo. Fica a faltar, também, o tal valor de produção, cenários, guarda-roupa, tudo isso e, portanto, comparamos mal e depois viajamos menos, ou seja, é mais difícil, depois, que a série possa ser vendida em outros países, porque o padrão de produção é mais alto. É a mesma coisa com os valores do cinema.

Portanto, nós começamos por ter um problema financeiro. Como é que isto se resolve? Procurando escala e procurando co-produções. Nós, para fugirmos, digamos, a estes problemas de escala, temos de aumentar a escala fazendo co-produções com outros países e outras televisões ou, então, com plataformas internacionais que nos dêem, não só o dinheiro, mas, também, a possibilidade de viajar. Para isso acontecer, eles têm de investir em conteúdo nosso e, esse conteúdo, tem de ter qualidade.

“A ideia era que o governo entendesse o cinema e o audiovisual como uma prioridade governamental e, não, como uma prioridade do Ministério da Cultura. Ou seja, era, no fundo, convocar todo o governo para a importância que tem hoje, nas sociedades contemporâneas, a indústria audiovisual e a arte audiovisual, porque andam ligadas.”

Que soluções de financiamento prevê para a RTP, uma vez que a taxa tem-se mantido independentemente da inflacção. Qual seria a via para a sustentabilidade da RTP? E terá de ser sustentável?

Acho que a RTP é mais essencial do que nunca, para o sistema audiovisual português, cinema e audiovisual. O papel da RTP é, absolutamente, decisivo. Nunca foi tão importante. O problema é que para cumprir a sua missão, precisaria de mais fundos ainda. Ora, o financiamento da RTP é feito quase, integralmente, através da contribuição audiovisual [CAV] e, de facto, há muitos anos que não é aumentado, nem sequer com o aumento da inflacção, que está na lei que deveria acompanhar.

O problema é que o pagamento da contribuição do audiovisual vem na factura da electricidade e, ao todo, com a inflacção e com tudo o que aconteceu, nos últimos tempos — a subida do custo de vida, em particular dos custos de energia — tornou-se impossível mexer no preço na CAV. Lá está, quando entrámos em 2019, a realidade era diferente, poderia ter sido mexido nessa altura, agora não é. Portanto, não me parece que seja fácil, possível, aumentar ainda mais o preço da factura da electricidade, a taxa da RTP. Simultaneamente, parece-me que é fundamental aumentar o orçamento da RTP. Acho que isso teria de ser resolvido o quanto antes.

Em casos de co-produção como a da RTP e Netflix, como no caso da série “Glória”, não faria sentido a série estar disponível na RTP Play, ou seja, acessível a todos?

Não sei qual foi o contrato que fizerem, a RTP e a Netflix. Não sei qual foi o acordo, qual é a janela de exibição da RTP, portanto, não conheço o contrato, não tenho nada a dizer sobre isso. Não sei qual foi a relação, digamos, de investimento, quanto é que pôs cada um: qual a relação, qual a janela de exibição, quando é a Netflix, quando é a RTP. Não tenho nada a dizer sobre isso, a RTP tem autonomia para fazer como quer os seus diversíssimos contractos com as diversíssimas produtoras e plataformas. [Esta entrevista foi realizada em Julho. Entretanto, a 7 de Agosto, a RTP deu a conhecer que a série “Glória” vai passar no canal público, a partir do dia 21 de Agosto].

Mas se tem o investimento da RTP deveria estar público, ou não?

Se a RTP investe dinheiro num conteúdo, é expectável que esse conteúdo passe na RTP. Acabará por passar na RTP, agora quando eu não sei. Sinceramente, não tinha pensado nisso, nem me parece que seja, assim, uma coisa tão relevante.

Como é que o lado da experimentação poderia ser desenvolvido pela RTP? Há a RTP LAB, mas como é que essa área poderia ser dinamizada? Maior colaboração com novos autores e realizadores de cinema? Colaborações com universidades e estudantes de cinema?

É fundamental que uma estação na RTP Play tenha — lá está, podia ser um canal, agora faz mais sentido que seja uma área da plataforma, que é o RTP LAB, que já existe. Faz sentido que seja desenvolvido e que seja, de facto, um espaço de experimentação, de mostra de novos talentos, conteúdos e formatos. Faz sentido que seja um espaço em colaboração com universidades. Isso já existe, sei que a Universidade Lusófona, que é onde estou a dar aulas agora, tem essa parceria com a RTP LAB. Eles vão lá, vão ver os trabalhos finais dos alunos, e perceber se há algumas séries que possam interessar. Acho que isso devia ser desenvolvido. Penso, no entanto, que já passou aquele tempo em que a RTP Play era vista como aquele sítio para onde vão as séries depois de passarem nos outros canais.

Acho que temos de começar a ter um entendimento da RTP ao contrário. Imaginemos que pensávamos assim: a RTP Play é, desde logo, a RTP Play e a RTP Arquivos, as duas grandes plataformas da RTP. A RTP Play, com os conteúdos mais recentes, e a RTP Arquivos, com os conteúdos mais antigos, dos quais a RTP tem os direitos. Depois há os canais, ou seja, é ao contrário. Os canais são as formas, digamos, com curadoria de apresentar conteúdos, a programação. Os conteúdos, depois, ficam todos disponíveis na RTP Play. Talvez comece a fazer sentido apresentar a RTP, cada vez mais, como a plataforma e os seus canais e não o contrário, os canais que, depois, vão desembocar na plataforma como se fosse uma espécie de videoteca onde ficam os conteúdos, que já não estão nos canais. Vamos pensar ao contrário, acho que esse exercício seria interessante.

“O financiamento da RTP é feito quase, integralmente, através da contribuição audiovisual [CAV] e, de facto, há muitos anos que não é aumentado, nem sequer com o aumento da inflacção, que está na lei que deveria acompanhar.”

Poderá a RTP Play caminhar para um serviço de subscrição ou só fará sentido na forma como se mantém actualmente?

A partir do momento em que os portugueses pagam para terem uma televisão pública, a tal contribuição audiovisual, não faz sentido os portugueses pagarem duas vezes para terem a RTP. Isso esteve na base, quando abrimos os arquivos da RTP a toda a gente, quando fizemos a RTP Arquivos e tomámos a decisão de os disponibilizarmos gratuitamente, era esse o princípio. Aliás, podemos pôr as coisas ao contrário. As pessoas pagam verbas para terem plataformas internacionais como a HBO ou a Netflix. Então, porque é que não pagam para terem acesso a conteúdos portugueses nesta plataforma que é a RTP Play e a RTP Arquivos, que existe porque há essa subscrição, chamemos-lhe assim, que é a contribuição audiovisual. Uma forma que é três vezes mais barata do que as plataformas internacionais e, ainda por cima, promove tudo o que é conteúdo português.

O espectáculo “Onde é que eu ia” demorou o seu tempo até ver a luz do dia. Também é preciso tempo para se olhar para as coisas com humor?

É um espectáculo muito particular para mim, porque fala da minha experiência pessoal e parte da minha experiência pessoal. Precisei de um tempo para o fazer e, agora, acrescentar várias camadas. Ele teve uma primeira versão antes de eu ir para a RTP, teve uma segunda versão depois de ir para a RTP e, agora, tem uma terceira versão depois de ir para o governo e, de momento, estes espectáculos que vou fazer agora. Posso dizer que vou arriscar fazer uma sala maior, tenho uma data no Tivoli a 28 de Outubro e, finalmente, vou ao Porto, ao Sá da Bandeira, a 1 de Dezembro. As bilheteiras abriram dia 17 de Julho e, portanto, vou fazer uma sala grande, uma versão revista e actualizada, do espectáculo que fiz no São Luiz, em Janeiro, e que, para minha surpresa, esgotou. Fizemos 20 sessões, eu e o António Jorge Gonçalves, e esgotámos as 20 sessões. Vamos agora repor em dois espectáculos especiais, um no Porto e outro em Lisboa, numa sala grande, o que, para mim, é um risco.

Como é que olha para fenómenos como o da série “Pôr do Sol”?

É muito divertido, houve muitas tentativas, ao longo dos anos, de fazer paródias das telenovelas. Desde logo, os programas do Nicolau Breyner ou do Herman, que fizeram as suas próprias versões. Quem não se lembra do Tal Canal, da Marilu, aliás, o Nicolau Breyner que fez a primeira paródia a uma novela, num programa que se chamava Nicolau no País das Maravilhas, em 75. Houve, portanto, muitas paródias às telenovelas e, mais recentemente, uma das mais bem sucedidas de sempre é o Pôr do Sol, escrita por um amigo e antigo colaborador das Produções Fictícias, o Henrique Dias, a meias com o Rui Melo e o Manuel Pureza. Eles encontraram uma forma que funcionou muito bem, que é fazer uma novela em que os actores representam como registo novela, mas a novela tem um texto que descola dos textos da novela e vai para o humor mais desbragado, que gosto de muito de ver. Tornou-se um fenómeno.

“É fundamental que continue a haver concursos para projectos que, de outra maneira, não veriam a luz do dia. É fundamental que exista uma RTP que invista em filmes e que possam, simultaneamente, ir para a RTP1, com perspectiva de uma maior, digamos, ambição de público e de popularidade e, simultaneamente, filmes de arte e ensaio ou, digamos, mais experimentais, que tenham lugar na RTP2.”

Numa entrevista ao Expresso referiu que um humorista tem poder, mediante a sua repercussão mediática. No entanto, grande parte dos humoristas não reconhece tal, ou tem pudor em admiti-lo. O que acha que está por trás disso?

Em relação ao poder do humorista, o poder do humorista vem um pouco, digamos, do poder do órgão de comunicação onde ele está. Se tivermos uma pessoa que consegue juntar uma audiência bastante grande e tenha um programa de televisão ou de rádio, ou que tenha um espectáculo numa sala muito grande, obviamente que esse humorista, ao falar para um público tão grande, é claro que tem poder. Ao ter uma comunidade de espectadores há, ali, sempre poder. Esse é um poder, o de dar perspectiva sobre o dia, a actualidade, o mundo, numa perspectiva cómica.

Digamos que quando um humorista goza com um político, o humorista não faz, necessariamente, cair o político, mas pode fazer com que as pessoas passem a olhar para o político lembrando-se, sempre, do sketch. Por exemplo, se o sketch colasse um bigode postiço ao político, não era o bigode postiço do sketch que faria cair o político, mas cada vez que aquele político aparecesse, as pessoas lembrar-se-iam daquele bigode postiço. Se fossem muitas pessoas a verem o sketch, seria muita gente a lembrar-se daquilo.

Se, num sketch, um político for caracterizado como um aldrabão ou vigarista, esse sketch pode não derrubar um político, não é suficiente. Aquilo que derruba um político em democracia é o voto popular, numa ditadura é um golpe de estado. É isso que derruba os políticos. Agora os humoristas têm esse poder extraordinário; se o humorista fizer um sketch em que o político aparece como um vigarista, um troca-tintas, e se muita gente vê esse sketch, cada vez que o político aparecer, há muita gente que se vai lembrar desse sketch. Esse é um poder e, por vezes, é um poder muito forte.

Até que ponto o espectáculo “Onde é que eu ia” precisou do seu sentido de auto-crítica, até como Secretário de Estado, para ser escrito? Porque também resgata esse tempo no governo, certo?

Uma das minhas características — e quem me conhece sabe isso — é que eu ando sempre com um bloquinho de notas e, às vezes, gosto de observar as coisas cómicas. Havia aquele texto do Dinis Machado que dizia que em todas as coisas há, sempre, um olhar cómico. Isso é uma espécie de formação em quem trabalha em comédia.

Não me considero humorista, considero-me um autor, mas trabalhei muitos anos em comédia e ficou, em mim, esse olhar para as coisas, sempre à procura de um olhar cómico. Portanto, em todos os sítios em que estive, quer quando dei aulas, quer quando trabalhei numa empresa de escrita de humor, quer quando fui para a RTP, quer quando fui para o governo, continuou em mim esse olhar cómico. É claro que, quando estava no Conselho de Ministros, tratava de coisas muito sérias, mas é claro que, no meio daquilo tudo, estava lá o meu olhar cómico. Desde já, é cómico ter estado muitos anos a fazer humor político e a dar ideias para programas como o Contra Informação ou o Herman e, de repente, eu estava no outro lado.

Como digo no espectáculo, eu era um infiltrado, um humorista infiltrado no governo. Portanto, eu não poderia perder a oportunidade, quando saísse do governo, de trazer muita informação cómica para ser transformada em comédia. Nesse sentido, é verdade que nunca deixei de ter esse olhar cómico, mesmo quando estava em posições e situações muito sérias.

Os políticos portugueses têm pudor, ou dificuldade, em lidarem com o humor? O que acha?

Acho que, em primeiro lugar, Portugal é um país muito pequeno, toda a gente se encontra e, depois, acho que houve uma evolução. Quer dizer, faz parte, digamos, das funções do político, ou melhor, faz parte do treino mediático lidar com os humoristas do momento, ou seja, qualquer político que ambicione ter uma carreira política tem de perceber que, nas várias etapas, tem, também, essa etapa que é aceitar as críticas dos comentadores, dos humoristas, e ter fair play perante o humor dos humoristas. Muitas vezes, os políticos não têm fair play, mas os exemplos, normalmente, mostram que cada vez que não há fair play, a coisa corre pior ao político. O político sabe que é melhor, sempre, fingir que achou muita graça.

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