Entrevista. Rogério Martins: “As pessoas têm más notas a Matemática porque a Matemática é vista como uma medida da nossa inteligência”

por José Malta,    19 Julho, 2023
Entrevista. Rogério Martins: “As pessoas têm más notas a Matemática porque a Matemática é vista como uma medida da nossa inteligência”
Rogério Martins / Fotografia de Rui André Soares – CCA
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Rogério Martins é Professor Associado do Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (FCT NOVA). Tornou-se conhecido pelo modo enérgico e entusiasta com que apresenta o programa “Isto é Matemática”. Exibido na SIC Notícias entre 2012 e 2017, o programa deu origem a um livro homónimo em 2018 e em 2022 voltou novamente à antena, contando já com um total de 13 temporadas. Doutorado em Matemática, na área de Sistemas Dinâmicos e Equações Diferenciais, Rogério Martins passou ainda por Inglaterra e Espanha, foi durante três anos director da Gazeta de Matemática e é presença assídua em diversas palestras, escolas e eventos de ciência. Recebeu-nos no passado dia 6 de Julho na faculdade onde lecciona desde 1997.

Tornou-se célebre por ser o anfitrião do programa “Isto é Matemática”, que pretende levar às pessoas a importância da Matemática de forma simples e divertida. Como é que surgiu esta ideia de fazer um programa que já conta com treze edições desde 2012 e qual o segredo para o seu sucesso?
A ideia aconteceu como acontecem muitas coisas. Costumo dizer que boa parte das grandes coisas que nos acontecem na vida nós não escolhemos, elas acontecem. Esta foi mais uma. Um dia a SPM [Sociedade Portuguesa de Matemática] tinha financiamento para um programa. Perguntaram-me “Queres fazer? Queres ser apresentador? Queres fazer os conteúdos?”. E disse logo que sim! Contactaram-me porque já tinha bastante trabalho de divulgação e comunicação de ciência. Tinha já participado no FameLab, que é um concurso internacional de comunicação de ciência. Fazia já muitas palestras em escolas, mas não da forma como faço actualmente. Hoje acabo por fazer aquilo a que gosto de chamar um show, um espetáculo, algo mais evoluído do que naquela altura. Mas fazia também coisas engraçadas que as pessoas também gostavam. Já me convidavam na altura para falar em alguns eventos e a ideia do programa foi de facto um pouco por acaso.

O segredo do sucesso? Não sei, porque não estou assim tão seguro de que seja um grande sucesso [risos]. Mas eu explico. É um sucesso porque acaba por ser um programa de televisão e ninguém esperaria que um programa sobre Matemática pudesse durar tanto tempo. Acho que as pessoas já se habituaram a ter o programa e até preferia ter audiências maiores. O sucesso do programa é devido a várias coisas. Desde logo porque é Matemática, e nós matemáticos temos a sorte de sermos inevitavelmente mediáticos. Se tivesse um programa que fosse por exemplo “Isto é Química”, teria mais dificuldade a convencer as pessoas a colocarem o programa na televisão e se calhar não receberia a mesma atenção. A Matemática é uma coisa que, para o bem e para o mal, é mediática. Nós temos de aceitar isso. As pessoas interessam-se porque é a disciplina que é o tal bicho-papão. É a disciplina que as pessoas acham que é determinante no sucesso académico. As pessoas que têm filhos na escola querem sempre saber o porquê do sucesso ou do insucesso dos filhos a Matemática.

A Matemática acaba por ter um certo elã, uma forma mística, altamente poderosa. Poderosa no sentido de mudar a nossa forma de ver o mundo e principalmente muda toda a tecnologia que nós temos. Por detrás da tecnologia, em última análise esteve lá a Matemática, seja ela feita por matemáticos ou engenheiros. Em momentos cruciais a Matemática mudou e melhorou muitas coisas da nossa vida. É isso que torna a Matemátrica mediática e não é assim tão difícil ter-se sucesso num programa de Matemática. Claro que também, modéstia à parte, há aqui um certo mérito meu em escolher os temas. Escolher os temas para mim é uma coisa muito importante e continuo ainda com uma lista enorme de temas para possíveis episódios. Há muitos temas que começo a pesquisar e vejo que não vão dar um bom tema para o “Isto é Matemática”, por não terem um certo factor “uau” ou profundidade suficiente. Mas às vezes acontece-me o contrário, quando não consigo explicar um certo tipo de Matemática de forma interessante para o público em geral, por não ter aplicações ou conexões suficientes. O que eu gosto mesmo é de criar conexões inesperadas como por exemplo “O que é que um comboio tem que ver com um ovo de galinha?”. É surpreendente porque há de facto uma relação! E acho que em traços gerais este é o segredo do sucesso.

Rogério Martins / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Para além da forma apaixonante como expõe a Matemática, acaba por fazer uso do humor nos seus programas. Esta é uma ferramenta útil para comunicar Matemática e a ciência em geral?
Não tenho qualquer dúvida. No programa acabo sempre por colocar o conteúdo, mas também uma piada ou outra. É mais a pessoa que trabalha comigo [Tiago Dacunha Caetano] que é humorista de profissão e também guionista que introduz essa parte do humor. Comunicar ciência, em particular Matemática, é uma coisa árida em geral. O humor funciona como um quebra-gelo, passa um pouco a mensagem de “isto é uma coisa que não é séria”, que é aquilo que quero passar! O meu grande cavalo de batalha é sempre quando falo sobre Matemática para públicos muito gerais. É tentar sempre passar uma mensagem de que “isto aqui não é à séria, isto aqui não é a escola e vocês aqui não vão ser avaliados”. Não é preciso ninguém stressar porque no final ninguém vai fazer perguntas ao público sobre o que se passou. O humor passa essa mensagem, para além de tornar também as coisas mais leves. É como alguém que faz um musical. A música pode não ser essencial para a história, mas pode torná-la mais romântica. O humor funciona também um bocadinho assim, cria algum entretenimento. A própria Matemática também é isso! Acredito que a Matemática possa ser entretenimento e acabo por criar entretenimento televisivo. E o humor, claro, ajuda nesse processo.

“Gosto de pensar assim, como um artista da Matemática. Acho que a história da minha vida como comunicador de ciência baseia-se em transpor para aquilo que eu quero transmitir, neste caso uma linguagem da matemática, as técnicas dos artistas de palco.”

É conhecido também por ser presença assídua nas escolas e eventos de divulgação científica, promovendo um espetáculo que capta atenção dos mais novos e também dos mais velhos. Sente-se uma espécie de artista em digressão ao levar a Matemática às pessoas?
Não tenho qualquer dúvida [risos]. Tem alguma piada porque a minha mulher, que não é matemática, trabalha em eventos. Fazia muitos musicais para crianças e ainda continua a fazer, tem também um programa musical para crianças. Nós achamos alguma piada porque o nosso trabalho é muito parecido. Há sempre uma certa mensagem nas histórias e nos musicais para crianças, e eu conto uma história de  Matemática. Mas é extremamente parecido! Ambos vamos para a rua e fazemos pequenos espetáculos. Gosto de pensar assim, como um artista da Matemática. Acho que a história da minha vida como comunicador de ciência baseia-se em transpor para aquilo que eu quero transmitir, neste caso uma linguagem da matemática, as técnicas dos artistas de palco. Tenho estes espetáculos e muitas vezes gosto de levar para o palco os clichês. As pessoas estão ali a ver-me e de repente pensam “eu já vi alguém a fazer isto, a falar num teatro!”. Aquelas técnicas de ir buscar um voluntário, perguntar como é que ele se chama, pedir para bater palmas. Tudo isso são técnicas que eu aprendi porque fui lendo e falando com outros artistas. Em televisão também é a mesma coisa. Eu costumo dizer que o meu sonho é que o nosso programa não se distinga do conteúdo típico de televisão, a não ser por o tema ser a Matemática, de resto até poderia ser um programa sobre culinária ou qualquer outra coisa [risos].

“A Matemática é comparável com um desporto, com tocar piano. Uma pessoa que toca piano durante muitos anos se ficar um ano parada quando voltar a tocar piano perdeu muita da ginástica necessária. A Matemática também é assim, há uma boa parte da nossa capacidade de fazer Matemática que tem que ver com a ginástica do nosso cérebro.”

Como professor universitário tem certamente uma opinião sobre o ensino da Matemática quer no ensino básico e secundário, quer no ensino superior. Porque é que existe uma grande taxa de retenção nas disciplinas de Matemática no ensino superior, comparativamente ao ensino secundário?
Essa é uma pergunta para um bilião de euros, ou mais [risos]! Começando apenas por fazer uma pequena introdução, não é o centro dos meus interesses o ensino da Matemática nesse sentido. Por várias razões. Primeiro, porque há muito mais gente a pensar sobre isso. Segundo, porque prefiro concentrar-me noutras coisas. Mas claro, sou professor e é inevitável eu não me deparar com isso e também me preocupo. Porque é isso acontece? Por muitas razões e o grande problema é mesmo esse. Razões diversificadas e completamente diferentes umas das outras. Não é possível alguém dizer “cá está a razão, e agora vamos atacar este problema e vai ficar tudo bem!”. São razões culturais, são razões relacionadas com a ideia de que a sociedade já interiorizou de que a Matemática é difícil. 

Tenho um projecto nesse sentido, que é escrever um livro sobre todas as razões do insucesso na Matemática. Já identifiquei umas vinte, não vou sequer chegar ao fim de todas as razões de que me poderia lembrar. A Matemática é abstracta, ponto. Não há como escamotear nem como dar volta à questão. Matemática é abstracção, e quando temos alguma coisa em concreto vamos sempre abstraindo, abstraindo e abstraindo. As ligações e as propriedades que tornam este ou aquele problema interessante, e que o liga a outros problemas, é isso que é a Matemática. Mesmo no meu programa eu tento sempre ligar a Matemática à vida. É abstracta por natureza, mas para fazer Matemática não temos que estar só nesse plano abstracto. Nós depois entendemo-la porque criamos ligações à nossa vida real e a nossa intuição acaba por estar nas coisas mais palpáveis, mais tangíveis. Tudo o que é abstracto acaba por não ser natural na nossa cabeça. A nossa cabeça foi feita para histórias. Nós gostamos de contar histórias, gostamos de ouvir uma história de alguém. É isso que é natural em nós. O lado abstracto é algo muito recente na nossa história evolutiva enquanto humanos. A nossa cabeça não está naturalmente preparada para fazer Matemática. É uma capacidade recente da espécie humana. É uma coisa que é dura e árida. 

Porque é que as pessoas chumbam tanto e em particular no ensino superior? Normalmente as pessoas que escolhem ir para cursos de engenharia são aquelas que se davam mais ou menos bem com a Matemática. Quando alguém escolhe ir para um curso de engenharia ou de ciências já sabe que a Matemática lhe vai cair em cima. Mas o objectivo dessas pessoas é serem químicos, é serem biólogos, e a Matemática não está ali no centro dos seus interesses. Nós aqui na faculdade continuamos a discutir muito isso das retenções e dos chumbos às disciplinas de Matemática. Nós professores estamos em concorrência uns com os outros pela atenção dos nossos alunos. Quanto mais eu apertar o aluno, ele vai dedicar mais tempo à minha disciplina. É mais fácil os alunos dedicarem mais do seu tempo a outras disciplinas que para eles são muito mais interessantes. Facilmente acabam por deixar a Matemática para trás. Num sistema como o nosso, os chumbos acabam por ser um problema endémico, e as pessoas vêm como algo natural. Isso não acontece noutros países, onde não é normal a pessoa chumbar. Há países em que, no ensino superior, a pessoa passa sempre. A partir do momento em que é normal chumbar, as pessoas acabam chumbar mais a Matemática. Porque acabam por deixar aquela cadeira para trás e pensar “para o ano faço isto e dedico-me mais este ano a outra”. Esta é uma razão, mas é só mais uma.

Há uma razão muito geral, que gosto de apresentar porque é uma das principais e é bastante genérica. As pessoas têm más notas a Matemática porque a Matemática é vista como uma medida da nossa inteligência. Ao ser vista como uma medida da nossa inteligência ficamos muito sensíveis. Chumbar a Matemática não é o mesmo que chumbar a outra cadeira qualquer. A minha avó costumava dizer que “quem é bom a Matemática, é bom a tudo”. Acho que não é verdade, e isso mostra como é a percepção das pessoas em relação à Matemática. Isso faz com que, quando um aluno vai para um exame de Matemática, ele não se sinta avaliado naquela matéria. Ele sente-se avaliado na sua inteligência. Não saber desenhar ou não ter jeito para jogar basket ou para a música, é uma coisa que nós aceitamos relativamente bem. Não ser inteligente é uma coisa que ninguém aceita. Quando as pessoas vão para um exame de Matemática têm aquilo a que os investigadores identificaram como “ansiedade Matemática”. As pessoas ficam ansiosas e aquilo mexe muito com elas. Isso faz com que as pessoas fujam ou evitem a Matemática porque não se querem confrontar com isso. Por um lado, fogem dela. Por outro lado, quando são confrontadas muitas vezes utilizam uma estratégia de defesa do seu próprio ego que é dizer “eu não quero saber disto, eu não gosto disto”. Encontram formas de justificarem o chumbo como “chumbei porque não estudei”. É muito delicada a relação das pessoas com a Matemática.

“A nossa cabeça foi feita para histórias. Nós gostamos de contar histórias, gostamos de ouvir uma história de alguém. É isso que é natural em nós. O lado abstracto é algo muito recente na nossa história evolutiva enquanto humanos. A nossa cabeça não está naturalmente preparada para fazer Matemática. É uma capacidade recente da espécie humana. É uma coisa que é dura e árida.”

Apesar disso temos vários talentos na Matemática em Portugal. Vemos jovens a ter sucesso nas Olimpíadas Internacionais da Matemática. Não deveria de haver uma maior valorização destes feitos no nosso país?
Devia, mas isso acaba por estar relacionado com aquilo que estava a dizer. Como a Matemática acaba por ser uma medida da nossa inteligência, e como a inteligência é uma coisa tão cara para cada um de nós, acaba também por ser cara para os nossos filhos. Nós gostamos que os nossos filhos tenham boas notas a Matemática porque achamos que é uma boa medida de inteligência. Eu digo achamos, porque não acho que seja realmente uma boa medida. As pessoas tendem sempre a achar que o filho é inteligente quando tem boas notas a Matemática. A sociedade em geral acha perfeitamente natural que, por exemplo, os bons jogadores de futebol sejam destacados e vão para equipas especiais e que se criem academias só para os jogadores de futebol brilhantes. Mas as pessoas acham uma aberração fazer-se o mesmo com a Matemática. Como sociedade achamos que as pessoas devem ser todas educadas da mesma forma e que os mais brilhantes devem continuar a estudar como sempre estudaram. Criar uma turma especial ou uma escola que seja para alunos que sejam brilhantes a Matemática, as pessoas não vêm isso bem em geral. As Olimpíadas acabam por não ser uma coisa muito natural na nossa sociedade. Não nos parece natural fazer o mesmo que fazemos com um piano. Se a pessoa é boa a tocar piano, coloca-se a pessoa em aulas extraordinárias ou vai para o conservatório muito cedo para estudar piano, porque é aquilo em que a pessoa é muito boa. Na Matemática normalmente não se faz isso.

Há casos pontuais. No caso das Olimpíadas nós temos tido recentemente muito sucesso. Criámos escolas de preparação de alunos para este tipo de provas. Não são muitas, em Coimbra temos o caso de maior sucesso e maior longevidade que é o projecto Delfos. Acaba por ser como aquilo que fazemos com o piano ou com o futebol [risos]. É pegar em meia dúzia de alunos que já demonstram um certo talento para aquilo e dizer-lhes “agora vamos trabalhar isto a sério e vamos ensinar-te muito mais Matemática do que aquela que aprenderias no teu percurso natural”. Aí sim, eles começam a ter sucesso. Eu também quero realçar que nada tenho contra as Olimpíadas, mas estas criam também um lado competitivo na Matemática, e acabam por explorar esse lado. Não tem mal nenhum à partida, e é o que é. Toda a ciência em geral é competitiva por natureza. Um atleta recebe o primeiro, mas também o segundo ou o terceiro prémio, e ganha medalhas com isso. No caso da ciência quem chega primeiro recebe o primeiro prémio. Quem publica o artigo com a descoberta científica ganha o primeiro prémio e mais ninguém ganha. Isto é uma coisa que muitos dos meus colegas cientistas não admitem, mas esta é a minha visão geral das coisas. A ciência é muito competitiva e os cientistas são pessoas competitivas. 

Na Matemática a competição é ainda maior. As coisas são feitas de uma forma muito mais individualista do que nas outras ciências. Enquanto nas outras ciências nós vamos para o laboratório e temos um grupo de trabalho, temos todo um programa porque naquele laboratório estuda-se isto ou aquilo. Os matemáticos têm muito mais liberdade porque são muito mais teóricos. Eu enquanto cientista escolho essencialmente o tema que eu quiser investigar. Tenho bibliografia, vou à biblioteca e, portanto, posso estudar aquilo que eu quiser! Normalmente não é muito caro fazer investigação em Matemática. Desde que tenha uma universidade que me pague o salário, posso fazer a investigação que quero. Há muito mais liberdade, as pessoas são muito mais individualistas, e isso é muito claro. Muitos dos artigos científicos de Matemática têm um só autor. Alguns têm dois autores, por vezes três, mas muito raramente têm quatro. A partir daí começam a ser muito raros os artigos de Matemática com mais autores. Noutras ciências é mais normal haver artigos com dez autores do que com um só autor. Porque é todo o laboratório que contribuiu para a descoberta.

A Matemática já tem competição suficiente, muito para além das Olímpiadas. Os estudantes de Matemática, em geral, já estão a competir porque quem tem boas notas acaba por subir muito o ego. Embora o nosso sistema de lançamento de notas não o permita, eu defendo que as notas a Matemática não deviam ser públicas. Devia de ser uma coisa pessoal, em que o aluno recebia aquela nota de forma individual e geria aquilo como queria. Dizia aos pais se queria, embora cada pai terá certamente o seu critério se quer saber as notas pelo filho ou directamente a partir da escola. Não devia de haver esta coisa muito tradicional de afixar as notas na parede. Há uns anos quando comecei a dar aulas e começaram a aparecer os computadores, as notas ainda eram escritas e afixadas na parede. Houve grande discussão quando começámos a lançar as notas de forma electrónica, se devíamos ou não torna-las públicas. Todo aquele stress relacionado com a Matemática, que falávamos há pouco, seria também mais esbatido se as notas não fossem tornadas públicas. Se calhar as pessoas começariam a achar que isso seria uma coisa não natural. Às vezes quando estou a discutir isso com os meus colegas costumo dizer que nós achamos natural publicar as notas dos nossos alunos. Mas quando se trata das nossas avaliações internas dentro do regulamento da faculdade, as notas são privadas e não são tornadas públicas [risos]. Nós professores achamos normal publicar as notas dos nossos alunos mas as nossas notas queremos que sejam privadas e sejam só nossas.

Rogério Martins / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Dentro dessa competitividade que existe na Matemática, acredita que poderemos no futuro ter um português a ganhar uma Medalha Fields [equivalente ao Prémio Nobel da Matemática]?
Acho que sim, acredito que é possível! Por várias razões, primeiro porque temos um sistema muito bom de ensino. Em geral, quando as pessoas fazem aqui cursos de Matemática e engenharias, que é aquilo que eu conheço melhor, vão para o estrangeiro e facilmente arranjam emprego. Os bons matemáticos nascem em todo o mundo e Portugal não é excepção. Nós temos uma formação muito boa e essa é uma razão. A questão da Medalha Fields também acaba por ser também uma questão de estatística. Na prática temos dez milhões por onde escolher um potencial Medalha Fields. É mais fácil em países muito grandes como Estados Unidos ou Brasil seja estatisticamente mais provável aparecer um vencedor. Mas isso também acontece no desporto. Quando falamos de um Medalha Fields ou de um Ronaldo são singularidades que aparecem de vez em quando. Nós somos pequenos e por isso é menos provável que tenhamos muitos Medalhas Fields. Mas sim, porque não ter um dia destes um Medalha Fields português? Seria muito bom e daria uma grande visibilidade à Matemática!

Para aqueles que estão prestes a preparar a sua candidatura ao ensino superior, em especial às ciências e engenharias que têm disciplinas de matemática, que conselho lhes daria para o seu primeiro ano enquanto estudantes universitários?
Um conselho relacionado com a Matemática é: façam a Matemática, não deixem para depois. A Matemática é comparável com um desporto, com tocar piano. Uma pessoa que toca piano durante muitos anos se ficar um ano parada quando voltar a tocar piano perdeu muita da ginástica necessária. A Matemática também é assim, há uma boa parte da nossa capacidade de fazer Matemática que tem que ver com a ginástica do nosso cérebro. É muito típico os alunos entrarem aqui e deixarem a Matemática para trás, porque pensam “deixa lá ver, isto não correu bem, mas para o ano faço”. Às vezes continuam a pensar assim passado um, dois, três anos. Eles vão ter de fazer mesmo aquilo. O meu conselho é que se dediquem e façam logo as matemáticas no primeiro ano porque é preferível deixar outras cadeiras do que deixar Matemática. Mas claro, sou eu a falar. Os meus colegas ali no departamento ao lado vão dizer o contrário [risos]. Mas é basicamente este o meu conselho.

A segunda coisa que acho que é também importante é perceber que a Matemática do ensino superior é muito diferente da Matemática que se ensina no secundário. Por várias razões. Uma delas é que quantidade de matéria que é dada numa cadeira na universidade é muito superior, é muito mais densa. Se colocarmos a quantidade de matéria numa balança, pesa muito mais metade do que um ano inteiro de estudo no secundário. Aqui, estou à espera que as pessoas se dediquem e sejam profissionais do estudo. Estas pessoas estão já mais maduras e é normal que sejam confrontadas com mais matéria. Isso faz com que aquelas técnicas que muitas vezes as pessoas têm no secundário falhem quando estão no ensino superior. No secundário, como há menos matéria, é mais fácil a pessoa criar mecanismos de selecção de problemas tipo, aprender meia dúzia de receitas e aplicá-las. As receitas não formam ninguém e até temos agora o ChatGPT que nos vai dizer tudo isso. O que nós devemos ensinar é as pessoas a pensar, a serem críticas sobre as coisas. Para isso, nós na universidade tendemos a fazer coisas menos padronizadas. Perguntar coisas mais originais, coisas que obrigam até a uma certa criatividade momentânea. Isso exige um aprofundar da Matemática muito maior, embora ache que isto também aconteça em todas as áreas. Os alunos têm de perceber que, ao fim ao cabo, na universidade terão que encontrar outras formas de estudo mas profundas, que envolvam perceber realmente a matéria.

Uma coisa que acho interessante para quem vai estudar Matemática e ciências em geral é ler e ver coisas sobre divulgação científica. Isso era uma coisa que me ajudava imenso, foi determinante e agora eu sou o reflexo disso. Muitas das histórias do “Isto é Matemática” eu já as conheço desde o tempo em que era estudante. Quando nós pegamos num livro de divulgação e começamos a ler, muito do conteúdo está relacionado com aquilo que aprendemos na faculdade e na escola. Encontramos pontes e ligações. Isso faz que a pessoa quando está a estudar Matemática a sério, de repente vai começar a criar pontes. Vai começar a pensar “Ah! Isto era aquilo a que o outro se referia!”. São essas pontes que criam no nosso cérebro uma estrutura mais estável e mais sólida. Caso contrário essa pessoa pode estar a estudar coisas que ficam um bocado no ar. Pode-se dizer que o professor devia de dar essas ligações. E sim, nós também damos! Mas se os alunos lerem estes livros ou virem por exemplo vídeos no YouTube sobre ciência, que existem em grande quantidade, é muito útil para criar essas ligações. A pessoa aprende quando acha interessante aquilo que está a estudar. Se aquilo que está a estudar é uma coisa puramente abstracta que a pessoa nunca tenha visto na vida, é mais fácil ficar esquecido quando se sai da aula. O cérebro funciona assim, como referi há pouco o nosso cérebro gosta de histórias. Isto de certa forma são histórias. O facto de termos visto aqui ou ali, relacionamos e acabamos por criar conexões. Acabamos por criar um encadeamento que funciona muito bem. O nosso cérebro lembra-se de qualquer coisa e relaciona com outra coisa e vai criando estas pontes. Por isso, ler e ver divulgação científica é excelente para quem está a estudar Matemática e ciências em geral. 

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