Entrevista. Yishai Sarid: “O maior trauma e medo da sociedade israelita é não ser capaz de se proteger a si própria”

por Lusa,    1 Novembro, 2023
Entrevista. Yishai Sarid: “O maior trauma e medo da sociedade israelita é não ser capaz de se proteger a si própria”
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O escritor israelita Yishai Sarid defende que a ideia de um Estado forte que protege Israel dos seus inimigos desabou pela primeira vez em 07 de outubro com os ataques sem precedentes do Hamas, que aproveitou uma liderança fraca.

Em entrevista à agência Lusa, o autor, romancista e advogado de 58 anos, que dedica parte da sua obra à memória e traumas do povo judeu e à forma como o passado deve servir de alarme para o presente, considera que os eventos de 07 de outubro foram, antes de tudo, “um gigantesco fracasso militar“.
Yishai Sarid, que no passado foi oficial do Exército e trabalhou para os serviços de informações militares, acredita que não se prestou muita atenção ao perigo que representava o Hamas, “ignorando que o inimigo seria capaz de fazer uma operação tão complicada“.

Confiámos demasiado num muro que custou milhões de dólares, muito sofisticado com toda a eletrónica, para proteger as nossas aldeias, mas a verdade é que eles [combatentes do Hamas] simplesmente vieram e acabaram por atravessá-lo“, comenta o escritor traduzido em 12 línguas (mas não em português), e autor do ‘bestseller’ ‘Limassol’ ou de ‘Memory Monster’, um dos cem melhores livros de 2020 segundo o The New York Times.

Após as primeiras notícias, o choque tornou-se ainda maior quando os israelitas souberam que o “Exército não se encontrava lá” e que estaria mais preocupado com a proteção dos assentamentos na Cisjordânia, desguarnecendo a fronteira com a Faixa de Gaza, controlada pelo movimento islamita palestiniano. A juntar ao falhanço militar, há também o fracasso político.

O Governo de extrema-direita começou desde a sua eleição há quase um ano a provocar muitas divisões e a destruir passo a passo a democracia de Israel e a sociedade israelita e, claro, o inimigo percebeu isso“, analisa o escritor residente em Telavive, destacando que a força do seu país não provém apenas do poderio das suas forças armadas, mas também do seu exercício democrático como fator diferenciador em relação aos seus vizinhos, que não o têm.

Sobra ainda “a forma muito estranha e distorcida” que o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, escolheu na sua forma de cooperação com os moderados da Autoridade Palestiniana, “preferindo por muitos anos fortalecer o Hamas, que é um movimento terrorista e radical” e igualmente contribuindo para este desfecho trágico, deixando a pairar uma nuvem de inquietação e incerteza.

A sociedade israelita “é construída sobre os problemas do passado, e o seu maior trauma e medo é não ser capaz de se proteger a si própria e aos seus filhos contra todos os seus inimigos“, sublinha o escritor.

Essa é toda a questão de Israel e tudo isso desabou com aquela magnitude e pela primeira vez no dia 07 de outubro“, afirma Yishai Sarid, galardoado este ano com o Prémio Levi Eshkol para literatura hebraica e cujo valor foi por ele doado a uma organização de israelitas e palestinianos que perderam familiares no conflito.

É por isso, prossegue, que o massacre orquestrado pelo Hamas nas comunidades de Israel no sul do país se tornou “tão terrível e traumático para os israelitas“, porque evocam histórias ouvidas de avós, dos antepassados e dos livros de História: “E, de repente, aconteceu-nos aqui, quando julgávamos ser fortes e independentes“.

Para o autor, pela brutalidade e violência empregadas no ataque do movimento islamita palestiniano, o que aconteceu no início de outubro é de uma excecionalidade tal que “não se assemelha a nada daquilo que se conhecia até agora nesta história sangrenta“.

Na resposta, Yishai Sarid separa o Hamas das aspirações do povo palestiniano e das suas lideranças, descrevendo o movimento islamita como extremamente violento.

Eu fui oficial de informações há muitos anos no Exército israelita e sei algo sobre o Hamas“, adverte o agora advogado e antigo procurador do Ministério Público, lamentando que as lideranças e os militares israelitas “se tenham esquecido da sua natureza” e que não se tenha removido há muito tempo o movimento palestiniano do controlo da Faixa de Gaza.

Além do assassino radical israelita do ex-primeiro-ministro Yithzak Rabin, em 1995, dois anos após este ter assinado um entendimento de paz na capital norueguesa com a Organização para a Libertação da Palestina, de Yasser Arafat, o autor assinala que o Hamas foi também “em grande parte responsável pela destruição dos acordos de Oslo“.

Nos anos 90, recorda, desencadeou a sua ‘jihad islâmica’ em ataques terroristas e suicidas em paragens de autocarro, discotecas, restaurantes e noutros lugares públicos e depois houve a segunda Intifada “na qual teve igualmente um papel importante“.

O autor recorda ainda que no passado também se alcançou um acordo de paz com o Egito, apesar de “uma guerra brutal com muitas baixas“, mas, com o Hamas não há entendimento possível.

Eu não procuro o suicídio. Sou um patriota de Israel. Moro aqui, criei minha família aqui, tenho os meus filhos aqui e uma história muito longa dos meus antepassados aqui. As nossas raízes estão aqui, a minha cultura está aqui. Portanto, se Hamas quer destruir-me, não há nada para negociar porque não vou para lugar nenhum“, declara.

Yishai Sarid afirma-se um “amante da paz” e defensor de uma solução para a paz com a Palestina que envolva uma fórmula de dois estados ou outra, o regresso às fronteiras de 1967, a cedência de metade de Jerusalém, e tudo o que implique a dignidade dos palestinianos e suas aspirações a “uma vida decente no seu país“.

Acredita que os próprios palestinianos não se revejam no Hamas, embora seja difícil ignorar que se trata do “movimento mais forte e influente no Médio Oriente“.

Porém, o que se alcançou até agora, lastima, “foi um desastre para ambos os lados“, sem que nunca se tenha conseguido quebrar “um círculo de violência e de ódio” a que os respetivos povos se mantêm presos há mais de cem anos, na negação de que duas nações podem viver pacificamente lado a lado.
Só que o Hamas não concorda com isso“, observa, e “infelizmente grande parte da sociedade israelita — ou talvez a maior parte dela — também não“.  

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