Esperança e melodia: vinte anos do último concerto dos Fishmans

por Tiago Mendes,    28 Dezembro, 2018
Esperança e melodia: vinte anos do último concerto dos Fishmans

Tóquio, 28 de Dezembro de 1998. O Akasaka Blitz, uma sala de espectáculos em Tóquio com lotação inferior a 1500 pessoas, enche-se para ouvir os Fishmans. Desde meados desse mês que faziam uma breve digressão por várias cidades japonesas e clubes da capital. O concerto no Akasaka Blitz da noite de 28 de Dezembro de 1998 é a última data no calendário da tour. Ainda ninguém na sala sabe – nem os próprios membros da banda – mas será o último concerto dos Fishmans.

Mas quem são estes homens-peixe? Poderíamos perfeitamente nunca vir a conhecê-los. À época, a cena musical japonesa não estava propriamente escarrapachada na imprensa americana ou britânica, que dominavam o espaço de divulgação cultural do ocidente – pelo menos no que toca à música, porque o cinema de animação e os jogos de consolas eram (e são) o grande trunfo da exportação cultural nipónica. Quais são as três bandas japonesas mais famosas entre nós? O facto de a música japonesa não fazer parte do universo mainstream da rede de influências culturais onde nos inserimos não significa que não seja fervilhante à sua escala – esta parece ser a história de muitos dos artistas musicais japoneses, cujo mercado acaba por ser tendencialmente interno, em alguns casos alastrando-se aos países vizinhos, com muita qualidade e vitalidade.

Se é verdade que a Internet veio dissipar algumas destas fronteiras, os Fishmans, grupo que se inicia no final dos anos 80 e corre toda a década seguinte, não conseguiam ainda beneficiar desse contexto. Curiosamente, se hoje os conhecemos é por terem sido resgatados precisamente por comunidades online que se dedicam a procurar, encontrar e promover música pouco ouvida e muito boa, no catálogo vastíssimo de tudo o que já foi feito e praticamente não foi ouvido. Há muitas pérolas que merecem uma segunda vida e/ou uma audiência mais vasta; mas no caso dos Fishmans, estas classificações soam a insuficientes. Antes de prosseguir queria fazer-vos um pedido – experimentem ouvir uma vez o último concerto da banda, sem preparação prévia, mesmo antes de eventualmente virem a mergulhar no catálogo de lançamentos que o antecederam. “Ah, mas o concerto foi gravado?”. Foi. E filmado. Para nosso bem.

Embora ninguém soubesse que iria ser o derradeiro momento da carreira, a data era especial. O baixista Yuzuru Kashiwabara tinha anunciado que iria abandonar o grupo, depois de dez anos de estreita colaboração com os dois membros fundadores – o baterista Kin-ichi Motegi e o vocalista e guitarrista Shinji Sato. O duo tinha intenções de continuar com o projecto, juntamente com dois pares de colaboradores mais pontuais com quem tinham vindo a trabalhar nos últimos anos, mas a verdade é que a mudança na formação base iria exigir uma redefinição dos processos de composição e performance. O concerto de 28 de Dezembro era, pois, o fechar de um ciclo. E a banda não só esteve à altura da ocasião, como se transcendeu por completo, insuflando de vida um alinhamento que cobriu canções dos seus sete álbuns de estúdio. Numa interpretação inspirada e grandiosa, ao longo de duas horas e dez minutos, a banda toca das entranhas e dá-se completamente.

No dia 15 de Março de 1999, menos de três meses depois, Shinji Sato morreu. O músico sofria de problemas cardíacos desde que nascera, em 1966. Aos trinta e três anos de idade o coração deixou de bater. Uma morte é sempre uma morte – e uma morte prematura, em particular, tem sempre o condão de nos deixar especialmente melancólicos e desanimados. Sabemos que quando um artista nos deixa, a sua obra continua – muitas vezes ocorrendo um estranho fenómeno em que a arte ganha um novo enquadramento: passa a ser mais valorizada, como se adquirisse uma aura no estranho limbo entre a presença e a ausência; torna-se legado, testemunho enclausurado no tempo que não pode ser actualizado. É possível que a nossa percepção do último concerto dos Fishmans seja afectada por este acontecimento trágico. Mas, caramba, somos humanos; procuramos e projectamos sentidos onde tantas vezes não os há.

O que testemunhamos durante a audição de 98.12.28 男達の別れ (98.12.28 Otokotachi no Wakare), a preciosa gravação lançada em Setembro de 1999 como homenagem a Sato, vai muito para lá do testemunho assombrado de um fim iminente, ou de uma qualquer curiosidade doentia. É uma afirmação sublime do poder da música. A discografia dos Fishmans começou por desenhar-se no campo do dub e reggae (sempre cantada em japonês), mas ao longo dos anos foi progressivamente aventurando-se pelo campo da neo-psychedelia e da música experimental – isto sem nunca abandonar as suas características transversais, como o grande foco nas melodias e um sentimento constante de energia, paixão e optimismo. Nos últimos anos as composições aproximam-se da dream pop e da ambient pop. Long Season, um épico de trinta e cinco minutos dividido em cinco andamentos, editado em 1996, é pop progressivo atmosférico e hipnótico.

Não é que a 28 de Dezembro de 1998 os Fishmans cruzaram todas estas linguagens e percorreram os sons e os géneros que foram as ferramentas do seu universo musical? Do princípio ao fim, o concerto está absolutamente permeado de alegria e inocência; e, em determinados momentos, a melancolia e a perda tornam-se mais que evidentes. É divertido pensar que a beleza extrema é o que simultaneamente nos esmaga e nos ampara – no deslumbramento, somos atingidos e somos salvos. E refiro-me ao som! Partilho estas impressões sem me referir às letras daquelas canções, cantadas numa língua que não compreendo – embora entretanto, depois de dois anos a ouvir esta obra-prima numa base regular, tenha decidido ir procurar traduções na semana passada. O que descobri deixou-me a tremer. É incrível como o significado das palavras pode adicionar ainda mais profundidade aos abismos do som, que já por si eram insondáveis (e, sejamos sinceros, continuam a ser – ao raciocínio verbal não lhe cabe acender a luz da compreensão plena das coisas).

Após uma introdução sui generis, em que a plateia é confrontada com a pergunta simpática e desajeitada “Are you feel good?”, os Fishmans abrem-se e revelam-se na interpretação de “ナイトクルージング”, uma das suas canções mais conhecidas à época no Japão. Música líquida e nocturna, deambulante, que parece embalar uma alma solitária no coração de uma cidade. Mais adiante, “In the Flight” incorpora uma das sequências de acordes mais belas de todo o concerto. “Smilin’ Days, Summer Holiday” é esperança injectada directamente na veia. “Long Season”, a encerrar, é incursão de quarenta minutos no fundo do mar, com garrafa de oxigénio às costas. Nomeei estes quatro momentos porque se distribuem ao longo do álbum, mas de maneira alguma são suficientes enquanto mapa para o trilho ali desenhado. Que viagem.

Posso repetir-vos este pedido? Por favor, por favor, experimentem ouvir o último concerto dos Fishmans. Talvez não tenham tempo, disponibilidade ou paciência para o fazer em sessão contínua; mas façam-no aos poucos, vão ouvindo. Não consigo imaginar um cenário em que isto não fizesse bem a alguém. É este o nível de confiança que deposito nesta obra.

Esta noite vou ver o concerto pela primeira vez, depois de o ter ouvido dezenas de vezes. Depois de o ter imaginado, vou poder vê-lo com os olhos. Decidi fazê-lo hoje como gesto de homenagem, singelo e anónimo (bem, agora que o partilhei aqui, um bocadinho menos anónimo), de um português que em 2018 tem a oportunidade de ser transportado para Tóquio em 1998. De estar presente e ser sensível às propostas da banda. Esta noite, vinte anos depois dos amplificadores dos Fishmans terem soado pela última vez com a urgência da voz de Sato a rasgar o ar, volto a redescobrir que a música não tem fronteiras, que a beleza é para todos e que a vida vale a pena ser ouvida.

https://vimeo.com/304960468

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