Esta melancolia antiquíssima 

por Cláudia Lucas Chéu,    24 Setembro, 2023
Esta melancolia antiquíssima 
Cláudia Lucas Chéu / Fotografia de Vitorino Coragem
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Que saudade de ter metade do tamanho destas pernas, que antes não faziam mais que correr e pedalar e jogar à bola. Saudade de não chegar ao armário de cima da cozinha, por mais que esticasse os braços, e fazer disso motivo para fugir à tarefa de pôr a mesa, apesar do inevitável, do previsível «vai buscar um banco que assim já chegas» da minha mãe, encostada ao tanque da roupa mirando-me por cima do fumo do cigarro.

Saudade de ser crédula e fiel e feliz como um cão, fosse no recreio ou na carteira da escola, onde por vezes nos calhavam em rifa reguadas em nome do saber, a mim e aos outros da minha idade, muitos deles sem dentes da frente mas com muitas lágrimas que explodiam ao som das pancadas. Saudade dos meus primos que me ensinaram os primeiros beijos, que me mataram a fantasia do Pai Natal e a da cegonha, e me mostraram que se pode ter medo mesmo sendo rapaz e não ter medo sendo rapariga. Saudade dos meus pais mais novos, sem a cara e a coluna marcadas pelo cansaço que é viver todos os dias sem fazer pausa.

Saudade de não ter saudade de nada porque tudo era presente, cada dia parecia vir enrolado com papel de embrulho e dava gosto desenrolá-lo porque lá dentro havia sempre algo inédito, mesmo que metesse medo. Que saudade de não saber que somos diferentes, que uns nascem em berço de ouro ou onde calha, por vezes num alguidar, e nos quererem tatuar na pirâmide das classes como num mapa, para que poucos consigam trepar.

Saudade de detestar a palavra saudade, de lhe sentir o cheiro a mofo e a naftalina e a fado. Hoje tenho ainda saudade do futuro, como disse o poeta Pascoaes, por saber que em breve os dias por vir terão transcorrido, que a minha vida é afinal um comboio de alta velocidade que ficará ultrapassado, e não o carril para todos os destinos do mundo, inacabado, que imaginava ser.

Hoje sei que tudo é passagem, abraço o transitório e a viagem salubre. Não sei quantas paragens terei até chegar à derradeira. Com sorte, vou a meio do percurso. Desejo que a palavra saudade seja para a frente e não apenas um bicho que anda às arrecuas. Saudade de te conhecer algures mais adiante, sem premonição ou ideia de destino marcado; ou de não te conhecer, sem sentir que estarei privada de algo ou alguém. Por último, abraçar esta melancolia antiquíssima, ancestral, e fazer da saudade algo profícuo, delicado, fértil, obliterando que Hipócrates a classificou, desde a Grécia Antiga, como uma doença. 

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