Este (ainda) não é o meu corpo

por Ana Carvalho,    10 Julho, 2023
Este (ainda) não é o meu corpo
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Movimentos conservadores continuam persistentemente a retirar mais e mais direitos às mulheres. O nosso útero parece ainda não ser nosso.

A humanidade tem agora 8 mil milhões de pessoas, tendo estado em crescimento constante e exponencial desde as últimas décadas. Destes 8 mil milhões, mais de 6,5 mil milhões vivem em países em desenvolvimento, países com altos índices de natalidade mas também os maiores níveis de pobreza. Em países ditos desenvolvidos, apesar dos níveis de pobreza serem baixos, os níveis de natalidade também o são, e o rápido envelhecimento da população é palpável. O que há em comum por detrás da demografia de ambos? Movimentos conservadores que tiram às mulheres o poder sobre o seu próprio corpo. 

Segundo a UNFPA (United Nations Conference on Trade and Development), o crescimento da população que temos observado é positivo, este indica que estamos agora a chegar mais facilmente à idade adulta, e que em geral vivemos mais tempo. Indica-se também que desde os anos 50 que a média de filhos por mulher passou dos 5 para os 2.3 filhos. Aparentemente há uma correlação: quanto maior escolaridade e direitos, maior a escolha das mulheres na sua vida sexual e reprodutiva. O que acontece é que, na maioria dos casos onde as mulheres têm mais filhos, é onde estas têm menos escolha sobre si próprias.

Movimentos conservadores continuam persistentemente a retirar mais e mais direitos às mulheres. No Irão, vemos o regime de Ruhollah Khomeini a proibir mulheres de serem donas do seu próprio corpo, quer seja em coisas simples como dançar ou mostrar o seu cabelo, ou até mesmo de frequentarem estabelecimentos de ensino. Nos Estados Unidos, mais uma vez se vê a retirada do poder de decisão das mulheres sobre o seu corpo. Com a Roe vs Wade a ser revogado, garante-se assim que as mulheres terão mais filhos, quer queiram quer não. Mesmo aqui na Europa, vemos as mulheres a serem impedidas de tomar decisões sobre o seu corpo: também em Malta, o aborto é ainda proibido e punido com pena de prisão. Já em Portugal, uma mulher foi condenada a 10 meses de prisão depois de ter abortado dentro do prazo legal. O nosso útero parece ainda não ser nosso.

O problema da natalidade é um grave problema nas sociedades desenvolvidas. No entanto, a resolução deste não pode nunca passar pelo atropelo à liberdade individual da mulher.

Segundo um relatório da ONU, atualmente, 44% das mulheres com companheiro sexual não têm controlo sobre o que acontece no seu corpo nem a sua própria saúde reprodutiva. A UNFPA alerta ainda que quase metade das gravidezes no mundo são não planeadas ou indesejadas. Acrescenta-se a isto que mais de 500 mil meninas por ano são mães entre os 10 e os 14 anos.

Quer seja em países desenvolvidos ou não, tem havido maior tendência para os governos mundiais imporem políticas de natalidade às mulheres. Muitas vezes se diz “as mulheres têm de ter mais filhos” ou “as mulheres têm de ter menos filhos”, mas raramente dizemos “as mulheres têm de ter a escolha de ter os filhos que quiserem”. Aparentemente, para muitos governos, as mulheres continuam a ser vistas como aparelhos reprodutores e não seres com liberdade e poder de decisão próprios. Como se o seu papel e “dever” para com a população fosse mais importante do que o seu direito à decisão . O útero é visto como um órgão estatal e não como órgão do corpo de cada pessoa, naquilo que são políticas anti-liberais e anti-democráticas.

O problema da natalidade é um grave problema nas sociedades desenvolvidas. Não podemos ignorar que estamos num inverno demográfico, a população portuguesa está a envelhecer ao ponto de nas próximas décadas virmos a ter um terço da população dependente de reformas, aliado a uma diminuição de um quinta da população. No entanto, a resolução deste não pode nunca passar pelo atropelo à liberdade individual da mulher.

Tendo os direitos da mulher sempre como base, são várias as formas de trabalhar para o aumento da natalidade em Portugal, assim como para o aumento consistente da população e melhoria da sua qualidade de vida, como por exemplo:

  • Estabelecer a paridade nas licenças de parentalidade com pai e mãe com licença conjunta durante os primeiros 30 dias;
  • Tornar o aborto legal e financeiramente acessível para todas as mulheres e garantir que têm acesso a medidas de contraceção;
  • Implementar um “Horário de Trabalho Familiar” após as licenças maternidade/paternidade para permitir que ambos os pais regressem ao trabalho inicialmente a tempo parcial, com a possibilidade de receberem compensações pelos rendimentos reduzidos durante fases específicas da vida dos filhos;
  • Apoiar projetos autónomos concebidos para estabelecer uma ligação eficiente entre mulheres grávidas e parteiras;
  • Criar mecanismos para facilitar a participação mais ativa da pessoa grávida no processo de decisão sobre a saúde materno-infantil durante a gravidez, no parto e no pós-parto;
  • Recomendar a criação de centros de nascimento/casas de parto no serviço nacional de saúde;
  • Divulgar as boas práticas promovidas pela OMS e solicitar às associações médicas nacionais que debatem esta questão e formem recomendações para a prevenção da violência ginecológica e obstétrica.

Grupos e partidos extremistas que se têm vindo a aproximar dos governos até aqui na Europa, defendem a retirada dos direitos às mulheres. Fazem-no, alegando que estes direitos são prejudiciais para a sociedade em geral. Direitos estes que demorámos o último século a conquistar e que em muitas partes do mundo ainda não os temos. 

Cabe agora a todos nós, através da democracia, proteger os direitos das mulheres assim como progredir, lutar pelo feminismo, e melhorar a nossa qualidade de vida. Os direitos reprodutivos não são moeda de troca. Os corpos serão sempre nossos!

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