Feist no Coliseu de Lisboa: quando as canções vivem para lá do concerto
Após ausências prolongadas tanto na edição de discos como em concertos em solo português, a canadiana Leslie Feist finalmente regressou; no primeiro caso, editou Pleasure no ano passado, álbum sucessor do fabuloso Metals, que veio cimentar o seu respeitado estatuto de cantautora. Relativamente aos concertos, esta passagem pelo Coliseu de Lisboa sucede-se a uma outra, decorrida em 2012. O recém-confessado amor de Feist por Portugal foi largamente manifestado neste que, segundo a cantora, será o seu último espectáculo durante algum tempo, para uma pausa merecida. Mesmo com uma constipação que a “raptou”, nas suas próprias palavras, transmitidas através do Google Tradutor num monólogo hilariante com sotaque brasileiro, este concerto foi o culminar emocionante de uma forte relação entre artista e público. Sem peneiras, podemos afirmar que este terá sido um dos concertos mais marcantes do ano em Portugal.
Mas antes de lá chegarmos, há que falar da primeira parte do espectáculo, a cargo da conterrânea de Feist, La Force. Ariel Engle, artista que dá voz às mais recentes canções dos Broken Social Scene (sendo a sucessora de Feist nessa tarefa) apresentou a sua música electrónica em formato one-woman band. Aos beats dançáveis sobrepunham-se algumas melodias dedilhadas e/ou a voz forte e desafiante de Ariel que, com a sua personalidade sarcástica, conseguiu cativar o público durante e entre canções. Para a última do seu curto set, chamou a estrela da noite, num momento entusiasmante e agitado que se deveu em grande parte ao jogo de som entre as guitarras das duas.
Após uma curta pausa, ao longo da qual os fãs clamavam por aquilo pelo qual esperavam há demasiado tempo, apareceu então Feist, começando com o acima referido monólogo para aligeirar o ambiente. A constipação que a assolava fez-se notar ocasionalmente em algumas quebras de voz, mas, mais importante, teve momentos em que chegou a enfatizar algumas das qualidades da sua voz – em momentos mais solenes soou especialmente aveludada e clássica, como se viesse de um disco de vinil; noutros mais vulneráveis ameaçava quase estilhaçar-se, numa tensão vocal que provou ser eficaz a conjurar emoções. A clemência e compreensão por parte do público a que a cantora apelou foi mais do que concretizada, com o mesmo a ajudar nas canções e a ovacioná-las efusivamente sempre que tinha oportunidade.
O concerto funcionou muito por uma ordem cronológica inversa, começando por canções dos dois discos mais recentes – nomeadamente o último. Os fãs acolheram bem alguns dos novos temas logo à partida, como “Any Party” ou a canção-título, “Pleasure”. Este segmento foi principalmente bem sucedido a comprovar as suas qualidades de compositora, com traduções ao vivo interessantes e ricas – também graças à bastante competente banda que a acompanhava. As canções eram pontuadas com alguns mimos que puxavam a atenção do público, como o final de jazz minimalista da belíssima “The Wind”, dedicada ao seu Canadá e aos conterrâneos presentes na audiência.
As suas intervenções vieram sempre enriquecer o espectáculo, aproximando-nos de si através de piadas bem conseguidas ou algumas anotações relativamente às canções que ouvimos. Principalmente, foi quando abrimos a caixa de Pandora da primeira década do milénio que as emoções vieram ao de cima – de ambas as partes. Em “I Feel It All”, alguns membros da audiência não puderam evitar saltar das suas cadeiras e dançar livremente ao som da canção de Feist que mais o pede, num momento de júbilo absolutamente delicioso. Mas foi a constatação de que o seu álbum de estreia completaria 15 anos em breve que a levou às lágrimas. “Fico sempre assim. A minha menina está a crescer”, referindo-se ao álbum, homenageado com uma versão estendida da esparsa e linda canção homónima.
Restava o encore, que veio em formato solo, apenas com Feist e a sua guitarra. Não faltaram as clássicas “Gatekeeper” e “Mushaboom” – com mais algumas lágrimas devidas à efusão do público pelo meio -, mas um dos momentos mais esperados veio com um delicioso preâmbulo. Leslie contou como, após ter escrito esta canção final, a soltou e ela andou pelo mundo, “a fazer um interrail pela Europa e a dormir em hostels”, para voltar 10 anos depois, sob uma outra forma. Como é claro, a canção era “1234”, inevitavelmente reconhecível, sob que forma fosse. Começou como uma rendição acústica, mas a banda veio despedir-se de um público devoto com a versão de estúdio cheia a que nos habituámos. Quem lá estava trauteava ou entoava as sílabas do clímax da canção, sendo que, sem a música terminar, Feist urgiu a que todos a levassem consigo para a rua e a continuassem a cantar, levando esta canção tão omnipresente e marcante da música alternativa contemporânea para mais uma viagem. A artista saiu sorrateiramente de cena e deixou-nos então com a sua criação.
Ao sairmos para o átrio do Coliseu, verificámos com satisfação que ninguém se fez rogado e cumpriu a promessa, fazendo os la-la-la’s ecoar pelas paredes. Fez-nos pensar que realmente as canções de Feist ganham esta outra vida com muita facilidade, com um coração que palpita por debaixo das suas notas e ritmos. Esta é uma constatação bonita e tremendamente poética, apenas possível de atingir após um concerto tão inspirador como este o foi.