“Feminismo para os 99%”, ou como a luta de classes e as lutas identitárias são faces da mesma moeda

por Miguel Fernandes Duarte,    27 Junho, 2019
“Feminismo para os 99%”, ou como a luta de classes e as lutas identitárias são faces da mesma moeda
PUB

No seio do debate político contemporâneo, nomeadamente à esquerda, tem estado uma suposta cisão entre uma política focada na luta de classes e outra focada nas ditas lutas identitárias. Em Feminismo para os 99%: Um Manifesto, as autoras Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser constroem a ponte entre essas duas correntes, argumentando que as ditas políticas identitárias, como o feminismo, só poderão ser bem-sucedidas dentro de um quadro anti-capitalista.

Tendo como fenómeno concepcional a Greve Internacional das Mulheres, o movimento posiciona-se como profundo opositor do feminismo neoliberal progressista protagonizado por figuras como Hillary Clinton e Sheryl Sandberg, directora de Operações do Facebook, que advogam a necessidade de as mulheres assumirem uma postura forte, altiva, como forma de subir dentro da hierarquia empresarial. Esse feminismo é um de classe-média alta, onde as estruturas são mantidas e as desigualdades face à restante população persistem. É, subentende-se do argumento, um feminismo para os privilegiados, para o 1% mais rico, e não para a generalidade da população.

Com o progressivo aumentar do fosso entre a minoria rica e a maioria pobre, o único movimento feminista válido é aquele que é, também ele, anti-capitalista, assim como anti-racista, anti-imperialista e ecologista. É o capitalismo que perpetua este estado das coisas, a sua causa estrutural. Ao unir todas estas bandeiras, as autoras não tencionam argumentar que são necessárias alianças na luta pelos direitos das mulheres, mas sim advogar a necessidade de olhar para estes problemas aparentemente dispersos dentro de um mesmo contexto global, que, do ponto de vista das causas e da sua perpetuação, não os distingue.

Estudantes protestam no Dia Internacional da Mulher, 8 de Março de 2019, em Madrid, Espanha. Pablo Blazquez Dominguez / Getty

Mais do que um sistema económico, o capitalismo (e isso está bem argumentado no epílogo, que, mais desenvolvido que as onze teses apresentadas inicialmente, é a parte mais elucidativa do livro) é um sistema de organização social que extrai os recursos naturais e humanos da forma mais barata possível, o que resulta, especialmente, na miséria generalizada dos países do dito Sul Global, das comunidades racializadas e, especialmente, das mulheres de todas as raças, etnias e nacionalidades. Isto porque, como explica a teoria da reprodução social, que integra o trabalho assalariado com o trabalho não-remunerado de criar filhos, o capital usa o trabalho de uma pessoa sem pagar o custo social de verdadeiramente a “fazer”, transferindo o trabalho da reprodução social para as mulheres, comunidades e Estados, ao mesmo tempo que o distorce de forma a daí extrair o máximo de lucro possível. Assim, “o trabalho remunerado para a produção de lucro não poderia existir sem o trabalho não-remunerado de produção de pessoas.”

Mesmo não apresentando propriamente um plano de acção – as autoras referem, aliás, que esse dito plano de acção é um a ser encontrado enquanto se leva a cabo a luta – o livro explica e integra conceitos e teorias como esta, sendo bem-sucedido em apresentar a uma audiência mais generalizada várias das correntes do Feminismo-Marxista. No entanto, como todas obras deste género, acaba por ser sempre argumentável se serão ou não capazes de converter alguém leigo no assunto. Não tendo uma abordagem excessivamente académica, talvez o consigam, mas é, sobretudo, um livro feito a pensar naqueles que já têm algum conhecimento dos meandros marxistas e anti-capitalistas. Nesse sentido, é um livro capaz de argumentar por uma luta que seja levada a cabo de forma global e estruturante e, num tempo onde se começam a vislumbrar retrocessos face ao conseguido ao longo das últimas décadas, é essencial perceber que a luta de classes e as lutas identitárias são ambas as faces da mesma moeda.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados