Flamignon entra na realidade

por Comunidade Cultura e Arte,    10 Setembro, 2018
Flamignon entra na realidade
Fotografia de Duane Michals

O relógio na sala tornava evidente que o tempo estava a passar.

– Quer-me parecer que o teu amigo não vem.

A mãe sempre foi céptica; mas desde que o pai morreu, tinha-se tornado pessimista. Dizia “amigo” como se tivesse sido invenção de Flamignon, que disse que teriam “uma visita muito ilustre às seis”, mas recusou-se a dar nomes. Pois, eram quase sete e não havia forma de ver chegar essa ilustre visita. O rapaz podia jurar que o professor Agostinho tinha dito seis. Começa agora a pensar que talvez o professor se tenha desinteressado; que, ao ler o rascunho que Flamignon lhe deu do seu A Força do Desábito, tivesse ficado com a impressão de que as conversas com o rapaz tinham sido uma perda de tempo. Se ao menos o professor tivesse telefone… Flamignon não tinha forma de o contactar. A mesa da sala estava posta: o melhor jogo de chávenas que tinham ali em casa; no bule, um chá que tinham trazido de uma viagem ao Japão, havia pastéis de nata que Flamignon foi comprar a Santos, propositadamente, ao café onde acredita que se fazem melhor. Tudo pronto para a chegada do professor, só o professor faltando. E a mãe impaciente, como se alguma coisa tivesse para fazer.

– Daqui a pouco são horas de jantar.

– Ele já não deve demorar, mãe.

Flamignon instalou-se à janela, e pôs-se a ver o movimento das nuvens. Do professor não houve notícias durante tanto tempo que se tornou ingénuo esperar. Provavelmente aconteceu qualquer coisa, o professor não pôde aparecer. Com certeza falariam disto noutro momento. Intimamente, Flamignon esperava apenas que o professor não tivesse desistido do seu novo aprendiz.

– Mando vir qualquer coisa?

– Não tenho apetite.

– Vamos comer fora. Ganhas apetite no caminho.

– Não sei se quero ir para a rua.

– Mãe… Não pode ser. Hoje comemos fora. Peço-te eu.

A mãe olhou para o rapaz. Há muito tempo que não insistiam com ela por alguma coisa. Sempre que falava com alguém, desde que o seu contacto com terceiros se limitara a conversas práticas em cafés, entre o “açúcar na bebida” e o “manteiga no croissant”, que tudo era uma questão de sim ou não. Se queria, queria; se não queria, não queria. Não havia expectativa em relação a nada, ninguém pensava no que seria melhor; a senhora saberá o que é melhor para si, faça o que muito bem entender. Mas o filho insistia, hoje. E não escondia que o fazia porque ele próprio precisava de desanuviar. Talvez esta ausência seja real – de facto esperávamos alguém ilustre, pelo menos importante. Aceitar o convite não seria receber, mas dar um cuidado.

– Vamos, então.

Vestiram um agasalho, que o dia tinha-se posto sombrio e uma brisa fria insistia em varrer as ruas de Campo de Ourique. Foram comer a um pequeno restaurante de pizzas, onde estava mais um casal a jantar. Flamignon pôs-se a ler nos gestos desajeitados um primeiro encontro, e lembrou-se de Marta e Guilherme. De como estas coisas sempre dão com o seu caminho. No outro dia, lá se cruzaram sem grande alarido para os lados de Flamignon: a aula de Marta nunca chegou a haver e a rapariga tomou iniciativa de convidar o rapaz para um lanche. Evidentemente, o espírito fraco de Guilherme não sabe jogar às seduções e não aguentou esperar até à hora combinada. Mudou o curso do dia para lanchar com Marta. O resto, já o podemos imaginar nós, cada um à sua maneira – e sobre estes dois talvez não falemos mais. Pensemos neles como numa memória nossa: verdadeira, distante e um pouco sofrida.

– Quem era, afinal, a visita ilustre?

A mãe finalmente parecia mostrar sinais de interesse por algo. Ainda que o interesse parecesse forçado pela circunstância, era uma pergunta – a possibilidade de uma conversa, de fuga do lugar sombrio que ela habita normalmente e do qual Flamignon se sente incapaz de resgatar.

– Vais-te rir.

Flamignon sentia um pudor imenso em dizer o nome do visitante-que-nunca-o-foi. Não que se sentisse ridículo, mas humilhado – culpado de antemão de uma ofensa que não queria cometer. A mãe acharia, com certeza e alguma razão, que o rapaz a tinha posto em suspenso na expectativa de algo impossível.

– É assim tão inesperado?

– Na verdade não sei se quererás saber, mãe.

Um empregado de mesa pergunta-lhes se querem fazer o pedido e eles fazem. O rapaz afasta-se. Estão um momento calados, a mãe barra um pouco de manteiga aromática num pedaço de pão enquanto diz

– Não sei porque fazes disto um mistério tão grande, mas, francamente, não me importa… Se não queres dizer, não dizes, claro.

– Não, não. Eu conto-te. Só espero que não estranhes tudo isto: conheces o professor Agostinho da Silva?

– Sim.

– Pronto. Era ele.

A mãe estava a mastigar um pedaço de pão. Sem grande entusiasmo disse

– Pensei que já estava morto.

Um silêncio. Os dois comem o pão de entrada besuntado com manteiga a que se misturaram umas ervas que nenhum sabe nomear. Talvez, pensou Flamignon, a mãe não saiba do insólito. Talvez, continuou a pensar Flamignon, ele não a devesse esclarecer para evitar conflitos. Se, um dia, ela viesse a dar com a verdade ele podia defender-se dizendo que ignorava a morte do professor. Ele morreu? Que estranho. Então será que era um charlatão, este que se anunciou como sendo Agostinho da Silva? Ainda bem, mãe, que ele não apareceu.

– Não deixa de ser estranho que uma pessoa dessas se tenha aproximado de ti. Como se conheceram?

– No quiosque. Ele foi lá, aproveitei para puxar umas palavras do professor. Entretanto dei-lhe uns rascunhos para ver o que ele acha.

– Curioso.

A mãe parecia meditar entre cada palavra, o que podia denunciar desconfiança, claro, mas Flamignon é ocasionalmente optimista ou ingénuo e, no seu entender, a mãe estava a digerir a notícia.

– Achas que voltará para nos visitar?

– Não sei.

– Aconteceu qualquer coisa, com certeza. Depois te explicará.

O restaurante, entretanto, era deles. O outro casal tinha saído. O empregado de mesa tinha trazido as pizzas e agora dividia-se entre a sala, a cozinha e o telefone – sorria enquanto escrevia qualquer coisa. O assunto do professor não voltou à baila: a conversa ao jantar limitou-se a algumas observações sobre as pizzas. De qualquer forma, os dois são defensores de silêncio à refeição. Depois, Flamignon e sua mãe, como gente folgada, deixam-se estar sentados, digerindo a refeição. Os pratos levantam-se-lhes, um café vem para Flamignon. A noite caiu há muito, e uma grande janela mostrando uma rua escura e pouco movimentada serve de ponto de fuga para o olhar dos dois. O pobre empregado de mesa olha para o relógio, bate com o pé no chão, impacienta-se com a insistência mole deste filho e desta mãe, organizando as palavras de outra forma quando pensa nelas. Nesta passividade que parece fazer da noite um lugar de aconchego para estes dois, protegido porque calmo, do outro lado da janela um homem barbudo, de casaco verde e parecendo não carregar consigo nada, apressadamente caminha. O seu olhar compreende a pizzaria, reconhece Flamignon – que abre uns olhos espantados. O homem acena, parece falar, dirige-se à porta do restaurante, abre-a e grita

– Flamignon, perdoe-me! Esqueci-me do nosso encontro.

Flamignon brilha. A mãe olha para a porta, voltando sobre si mesma, e com um sorriso indiferente cumprimenta o recém-chegado.

– Pensei que estava morto, professor.

– Pois, minha querida, pensou mal.

– Se o senhor o diz, quem sou eu para contrariar? Nesses assuntos, em questões de pensamento não me atrevo consigo.

Para grande aflição do rapaz que serve à mesa a mãe continuou

– O professor já jantou?

– Alimento-me de outras coisas. E hoje, graças ao nosso querido amigo Flamignon, ainda recupero de um banquete. Como é, caminhamos enquanto falamos?

– Temos pastéis de nata e chá em casa, professor.

– Como vos disse, meu amigo, a minha dieta é outra. Para além disso, gostava de vos apresentar um amigo.

Texto de Guilherme Gomes

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