Fui levá-lo a casa e não subi

por Pedro Saavedra,    30 Junho, 2021
Fui levá-lo a casa e não subi
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Estava a ouvi-lo enquanto cantava Goodbye Yellow Brick Road. Havia uma nova emoção talvez até demasiado intensa para nos entendermos aos dois. Ele cantava, e o sistema de karaoke ajudava a colar tudo com a bola de espelhos pendurada no tecto em frente à cortina de veludo que nos envolvia a todos numa imensa purpuridade. A voz dele também o era, Púrpura. Tinhamos chegado separados e sem qualquer plano em comum. A noite acabaria comigo a levá-lo a casa, mas disso ainda não havia nenhuma pista.

Não estávamos sozinhos, mas sempre pratiquei a ilusão de me isolar com apenas um elemento de cada vez. Em determinadas situações, a abertura de diafragma só me incluía a mim e ao que me interessava. Podia ser um objecto destacado pela cor, um movimento repetitivo, ou até a acção de uma pessoa. Naquele momento, ignorei a multidão de conversas de ocasião dos que põema conversa em dia, depois de muito tempo ausentes. Ignorei a mesa habitada por bebidas prestes a serem servidas, irmã da outra cheia de comidas exóticas, e foquei o meu plano de acção naquele homem que, ali à frente de todos, nos contava um segredo, sem que ninguém nisso reparasse.

Éramos ambos amigos de um amigo em comum que, mais uma vez, comemorava o seu aniversário num dos bares mais ordinários da cidade. Gostava disso, de juntar convidados desconhecidos, entre si, num único espaço que lhes desse oportunidade de ter tudo a perder. Eram os seus quarenta, onde eu ainda não tinha chegado e, de relação falhada em relação falhada, ali estava eu sem acompanhante e livre para fazer o que quisesse. Ele não. Ele não era livre, nem podia fazer o que queria, porque apesar de todos o sabermos, Ele não achava que isso fosse assunto. Ele era um dos gays à antiga, na realidade via-se como um homossexual que apesar de o ser toda a vida, só agora começava a sentir a pressão de o assumir. Sempre esperara que alguém mais influente o fizesse por si, e o medo de perder os trabalhos que mantinha, como professor de piano, tinham-no trazido a este destino.

Não estava ali ninguém que o pudesse magoar, ou atacar, mas naqueles tempos longínquos dos anos noventa, ser homossexual ainda era visto como algo que pertencia à esfera do íntimo, do tal assunto a que nem a pais, nem a amigos, interessava contar. Por isso, todos falavam do assunto em locais diferentes e protegidos uns dos outros por uma distância de segurança. Mas alguma coisa estava a mudar. A introdução da palavra gay, nova, fresca e sem conotação legal ou moralista tinha ajudado, e a conversa sobre o casamento gay, e a adopção por casais do mesmo género, começava a aparecer na esfera pública, trazida por novos partidos à esquerda. E, ao fim dos seus quarenta anos de vida, número que partilhava com o aniversariante do dia, estava a chegar o tempo de isso ser mesmo um assunto.

Abordei-o no final da canção, Cantas muito bem. Gostava de também ter esse talento, ou dom, se preferires. Dom? Não é um dom, é uma necessidade fisiológica. Como assim? Canto porque me faz bem, não porque nasci para isso. Ele olhava para mim com aquela pequena necessidade de querer perceber se eu estava a dar-lhe sinais, ou pistas, de sedução. Sempre me tinham contado dessa necessidade de reconhecimento. Coisa que eu achava sempre garantido, na atracção pelo género oposto e que n’Ele era claramente um dilema muito presente. Senti necessidade de esclarecer logo, Não sou gay! Pareces preocupado com isso. É só para deixar de ser assunto. É claro que não és, nota-se logo. Como é que sabes? Não sei, senti. Como é que sabes que uma mulher está interessada em ti? Não sei. Pois, não podes saber, só podes sentir. Assunto esclarecido, a conversa continuou por outros caminhos.

Sentia-me em Verona, Romeu Montecchio a conversar com Mercúcio na festa dos Capuletos. Tal como no drama de Shakespeare, Ele sabia mais de amor do que eu, e também Ele se aproximava do perigo de ter uma morte memorável, envolvido numa luta que não era a sua. Apaixonava-se facilmente, eu também, tinha preferências visuais naquela festa, eu também. Comentava corpos estranhos, eu também. Há algo de trágico nesta ideia de que os homossexuais têm de se assumir, como se isso fosse o desferir de um golpe fatal, na sua luta pela aceitação, Ele é gay? Grande novidade. Mas eram assim os anos noventa.

Falámos a noite toda sobre a teoria do contraponto na música e nas várias versões da Arte da Fuga de Bach. Glenn Gould irritava-o a ele, mas entusiasmava-me a mim. O homem vai murmurando enquanto toca, isso é só ridículo. Eu discordava: a gravação de 1951, a que um crítico tinha apelidado de concerto de foca de circo, era o meu preferido. O homem tinha passado a vida toda a tentar igualar aquele momento em mais de sete gravações posteriores. Mas isso não nos dividia assim tanto, nem a música de Elton John que ele me confidenciava ter sido escrita como manifesto de assunção do cantor, no início dos anos setenta, Nascemos diferentes, miúdo! Talvez um dia nos aceitem. Ria eu alto, sem consciência da diferença que a afirmação tinha para Ele e para mim. Assim, rimos, fumámos, contámos histórias de desamores, gozando e insultando ex-amantes até ao raiar o dia.

Ofereci-me para levá-lo a casa, ainda ficámos dentro do carro, com uns bons seis ou sete últimos cigarros, Este é o último! e Tenho de ir embora! Já estavam gastos há algum tempo, quando Ele me começou a contar de como se instaurava o pânico, sempre que imaginava contar aos pais a sua verdadeira história, Tenho medo da reacção deles. Isso não faz de ti o que tu és, tu és como és, assumas ou não a tua orientação sexual aos teus pais. És um querido. Queres subir? Sorri e disse-lhe, Trouxe-te a casa mas não vou subir.

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