‘I Am Not Your Negro’ e os mínimos olímpicos dos irmãos Kennedy pela igualdade racial
Nomeado para Óscar de melhor documentário de 2016, I Am Not Your Negro encerrou o Indie Lisboa de 2017 e estreou poucos dias depois nas salas portuguesas, algo que raramente acontece com documentários, mas que se percebe pelo interesse actual e qualidade desta obra de Raoul Peck, que coloca James Baldwin, activista pela igualdade racial nos Estados Unidos, a narrar pela voz de Samuel L. Jackson alguma da história deste pecado da sociedade americana chamado racismo, pontuada pela sua relação, tanto de Baldwin como da própria sociedade, com os líderes Martin Luther King, Malcolm X e Medgar Evers. I Am Not Your Negro podia cair no facilitismo do documentário racial genérico e provocatório, mas felizmente opta por um melhor caminho, tanto a nível de apresentação e montagem como a nível de conteúdo.
Guiado pela voz de Jackson, que teimosamente insiste em relembrar pelo carisma da sua voz de que efectivamente não é James Baldwin que está a falar, o espectador vai observando um pouco da história da luta pela igualdade racial, anos 50 e 60, montando-se a teia através de imagens de época, de entrevistas ou intervenções públicas de Baldwin sobre o tema, apoiando-se também no cinema, nos ícones de Hollywood e na forma como a indústria interpretou e interpreta o tema, utilizando para isso figuras como Marlon Brando ou Sidney Poitier. A dada altura, reflectindo pela voz do nosso narrador, Baldwin recorda a forma como em criança interpretava os westerns em que os índios eram os vilões, e os cowboys, brancos, os matavam a tiro de forma heróica, fazendo através disso um paralelismo com a própria condição afro americana no tal novo Mundo repleto de oportunidades, mas apenas para alguns. Agora seriam eles os vilões. Dito assim talvez pareça que I Am Not Your Negro padece do síndrome de moralismo baratucho, ou mesmo gratuito, de muitos dos seus pares, mas não é o caso. O filme consegue fugir a algum sensacionalismo e ser um produto sóbrio de reflexão muito bem ritmado em crescendo, num tom quase noir que filma palmeiras ou carros ao som de um jazz clássico minimalista no encadeamento sequencial da sua montagem, de reflexão em reflexão, numa tarefa quase educacional sempre elevada.
O momento mais interessante do filme e que ilustra bem a sua função é talvez aquele em que se coloca em perspectiva a administração de Kennedy, conhecido também pela sua luta pela igualdade racial, continuada depois por Lyndon Johnson com a sua famosa lei de 1965 que proibia a discriminação racial no direito ao voto. Baldwin quase descreve esse esforço como uns mínimos olímpicos, traduzindo-se numa declaração do irmão do presidente, Robert Kennedy, em que diz que a este ritmo, se tudo correr bem, dentro de 50 anos os Estados Unidos poderiam vir mesmo a ter um presidente negro. É uma coincidência gira que provocará um certo “ooh” do público, mas não deixa de ter a sua relevância ver esta perspectiva incomum. Em jeito de punchline, Baldwin diz que a história dos negros nos Estados Unidos se confunde com a história do seu próprio país porque eles serão esse país, e é talvez nessa linha tão dificilmente equilibrável de sobriedade de conteúdo que Im Not Your Negro se vai deslocando, sempre relevante, sempre didático, quase sempre justo e nunca gratuito. Belíssimo trabalho histórico do realizador Raoul Peck, acompanhado por uma apresentação que quase supera o seu conteúdo.
Porque é bom: Conteúdo sóbrio, relevante e mesmo didáctico, sempre com elevação e respeito pelo espectador; narração cativante de Samuel L. Jackson enquanto James Baldwin; montagem sequencial de harmonia quase perfeita, noir, apoiando-se em imagens de arquivo e ilustrações cinematográficas de bela recordação.
Porque é mau: Apesar do seu conteúdo cativante, não se pode dizer que Im Not Your Negro seja algo de propriamente novo. O filme apenas consolida e dá perspectiva a uma realidade que está hoje mais na ordem do dia do que esteve nos últimos 30 anos. Im Not Your Negro não consegue resistir a algumas pitadas de sensacionalismo, sempre piscando o olho a quem o vê, consciente de que o está a fazer.Crítica também publicada no blog The Fading Cam