IDLES em Lisboa: a alegria na resistência punk

por Bernardo Crastes,    29 Novembro, 2018
IDLES em Lisboa: a alegria na resistência punk
IDLES. Fotografia: Nuno Conceição
PUB

À chegada ao Lisboa ao Vivo, o armazém que receberia os IDLES daí a pouco mais de uma hora, o ambiente é de preparação. Compram-se bebidas, deixam-se os pertences no bengaleiro, vai-se à casa de banho; é uma espécie de antecâmara da batalha campal que o punk dos protagonistas da noite proporcionaria ao público. O espaço segmentado conflui todo na sala de concerto, onde as pessoas se vão acumulando para assistir à primeira parte do alinhamento da noite.

“Eu sou o John, ele é o John, nós somos os JOHN“. Parece uma lição de gramática, mas é a apresentação do duo de guitarra e bateria que antecede os IDLES. Quando começam a tocar a sua música apressada, lembram-nos de um outro duo semelhante, os Lightning Bolt, também compostos por dois membros com o mesmo nome. No entanto, a música dos JOHN é um pouco menos abrasiva e mais focada na energia crua do punk, sem se focar tanto na distorção ou noise. Os ritmos são o centro das canções, complexos e quase matemáticos, que, mesmo sem nos apercebermos, se introduzem no nosso cérebro e nos fazem abanar a cabeça ou bater o pé nervosamente. Ao longo de meia hora, os britânicos destilam sete canções do seu último álbum, God Speed in the National Limit, animando o público com a sua postura descontraída. No final, agradecem aos IDLES a oportunidade de vir pela primeira vez a Portugal e dedicam-se uma última vez a quase partir os seus instrumentos. Pausa para descanso.

JOHN. Fotografia: Nuno Conceição

Entretanto, respeitando a pontualidade britânica, chega o aguardado quinteto de Bristol. O concerto tem início com “Colossus”, que abre o mais recente álbum e mote para esta mesma tourJoy as an Act of Resistance. Se a plateia esgotada já indicava a admiração portuguesa pelos IDLES, o imediato reconhecimento da canção e acompanhamento nas letras confirma-o. A chama de “Colossus” primeiro arde lentamente, com um ritmo ameaçador a fazer algum feedback desagradável, mas mal rebenta não há volta a dar. O público reage com moches e crowdsurf quase instantâneos, num caos alegre que a banda tem claro prazer em instigar. A partir daí, o ritmo é quase sempre implacável, de raízes no punk, mas estendendo os braços a outros estilos.

O que diferencia os IDLES de outras bandas a trabalhar neste mesmo género? Ao ouvirmos os seus dois álbuns de estúdio, notamos um compromisso em fazer as músicas o mais cativantes e memoráveis possível, fazendo com que ouvi-los na íntegra não se torne uma experiência cansativa – algo que um género musical tão imparável pode suscitar, por vezes. Em adição à música, temos as letras, enunciadas assertivamente num tom a roçar o ébrio pelo vocalista Joe Talbot. São versos cheios de palavras pejadas de significado, com surpresas a cada canto. Logo à terceira canção do espectáculo, chegamos a “Mother” – um dos destaques do álbum Brutalism – e é rejubilante ouvir o público a gritar com a banda “the best way to scare a Tory is to read and get rich”, aquela frase-bomba com a métrica perfeita.

IDLES. Fotografia: Nuno Conceição

Ao vivo, a experiência multiplica-se, pela actuação da banda, que se move irrequietamente pelo palco; parecem até ser mais pessoas do que realmente são. Mas a cereja no topo do bolo é mesmo Talbot, um dos mais carismáticos vocalistas do rock contemporâneo. Mesmo não se mexendo muito ao ritmo das canções (fora uns espasmos ocasionais), transmite imensa energia pela sua postura determinada, com passos certos e gestos marcantes. Entre canções, foca-se em ligar-se a quem o vê e ouve, fazendo pequenas brincadeiras com o público ou explicando concisamente o significado de cada canção com a sua voz rouca, que todos se calam para ouvir. A cada palavra dita, o público fica mais embevecido, ao entender que está a celebrar ao som de algo que é mais do que um mero veículo de melodias e ritmo.

Vejam-se estas quatro canções, que se seguiram umas às outras: “Danny Nedelko” conta uma história que pretende espelhar o quanto a banda adora imigrantes, por tornarem o “shithole” que é o seu país num lugar mais bonito – e o seu refrão perfeito para karaokes épicos também é muito bonito. “Divide & Conquer” é sobre a melhor coisa que a Grã-Bretanha já fez, que foi o programa de alojamento para pessoas empobrecidas. “1049 Gotho” é o relato que um amigo da banda fez acerca da sua depressão. “Samaritans” insurge-se contra a masculinidade tóxica, pela afirmação de que os homens não devem ter vergonha de demonstrar os seus sentimentos, ainda apregoando a igualdade e inclusão pelo caminho. Faz-se um moshpit para a bridge da canção; Joe dá o sinal de partida, gritando “I kissed a boy and I liked it”, e o caos rebenta mais uma vez. Foi um dos muitos momentos indutores de arrepios na espinha.

IDLES. Fotografia: Nuno Conceição

Já mais para o final, “Benzocaine” traz ao de cima o vício de drogas por que o vocalista passou, clamando a quem está a passar por isso que não deve sentir vergonha e estender a mão. Foi o momento mais pesado da noite, rapidamente entrecortado pela distorção das guitarras de Mark Bowen e Lee Kiernan. Ainda há tempo de ir buscar uma série de raparigas ao público para subir ao palco e tocar com a banda, num momento genuinamente enternecedor, em que toda a gente tinha um sorriso escarrapachado na cara. No final, o hino anti-fascista “Rottweiler” fecha o concerto com um dos ritmos mais acelerados da banda, que não regressa (“os encores são esquisitos”), desembocando num outro noise comandado pelos restantes membros da banda, após Joe Talbot se ter despedido de nós.

Muito mais poderia ser dito, mas este concerto foi tão rico que se torna difícil filtrar aquilo que se deve ou não mencionar. Certo é que, ao longo de mais de hora e meia de espectáculo, os IDLES cunharam uma relação fortíssima com o público português (que afirmaram ser o melhor do mundo – e fundamentaram tão bem essa opinião que não temos remédio senão acreditar) e firmaram o seu estatuto como uma das melhores bandas rock actuais ao vivo. Mais do que fazer música, realmente personificam-na, seguindo o seu próprio mote de usar a alegria como resistência contra as desigualdades e injustiças. É difícil não sentir que a banda está do lado certo da história e nós queremos estar lá com eles.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados