In Media Res #2 – O marginal estado de inação e a perversão do politicamente incorreto
Domingo, hoje, a França vai a votos e a Europa muda. Seja pelo assustador caminho proto-fascista da Frente Nacional ou pela ausência de anterior experiência das restantes vias líderes nas sondagens, é seguro afirmar que o grande derrotado das presentes eleições é o discurso de continuidade. Torna-se por demais evidente que paira, nos nossos dias, um intenso desejo de mudança. Ninguém quer o velho mundo.
Guardo uma imagem curiosa destas eleições. Um dos candidatos lança-se num discurso de revolta, apontando a leviandade dos últimos anos de governação e a inconsequência do aparelho burocrático europeu. Discursa, a meio caminho entre a retórica livre e a leitura. Grita “Estou”, faz uma pausa e lê: “revoltado”. Como se se esquecesse de que estava revoltado. A revolta não é um adormecido sentimento. É um motor agitado, tantas vezes perigoso, da forma de ser no Mundo.
O que se vive, por estes dias, é uma partilha social de revolta. A trapalhice do falso revoltado não deixa de ser uma curiosa metáfora para a contemporaneidade do mundo democrático ocidental: estamos entalados entre a inócua retórica de um estático e padronizado sistema político que se desligou, por entre pressas burocráticas e financeiras, da realidade social do comum cidadão e a ausência de um confiável plano de alternativa.
O pesadelo contemporâneo é esta angústia coletiva em que mergulhamos. Por um lado, nunca a especulação quase utópica das possíveis vias esteve tanto em voga. Por outro, a efetividade da ação política parece mais distante do que nunca. Vivemos num marginal estado de inação. O vácuo de ação é preenchido pela vivacidade do discurso.
Aqui lembro-me de Extensão do domínio da luta, de Houellebecq, e no caos provocado pela inaptidão na concretização do intenso desejo individual numa sociedade paralisada na sua viciada, e vazia, glorificação.
A ansiedade é tal que, neste limbo entre a necessidade coletiva de mudança e a incapacidade de resposta política a tal impulso, abandona-se a veracidade da sensatez e procura-se a verossimilhança emocional das grandes narrativas. À angústia já chega a mera impressão de mudança.
E, assim, se abre a época do paradoxal tratamento do discurso. Por um lado, o politicamente correto que cria um espaço super contido, sem lugar à ofensa e à discórdia. Um perigoso discurso unificador. Por outro, a usurpação do politicamente incorreto.
A título de exemplo, Trump e a sua trupe. Tal facção exalta a necessidade de ser politicamente incorreto e dizer o que todos pensam mas ninguém diz. Dizer que os mexicanos são violadores é politicamente incorreto. Mas mais importante do que isso: é falso. E por ser falso ninguém o devia dizer. Devo ter liberdade para o dizer? Claro. Tudo o que se digo deve ser impune? Não.
O que está a acontecer é que o politicamente incorreto é a nova bandeira da impunidade. Os demagogos estão a usar-se do policiamento do discurso para se protegerem, ou seja, em vez de concentrarem a discussão no conteúdo do discurso exaltam a existência do próprio discurso. E, por isso, em caso de contestação, a resposta é pronta: “Se me querem calar é porque digo verdades”.
A discussão não devia ser sobre a existência de discursos (proibições, apelos para que se cale alguma pessoa ou instituição – isto dos dois lados da barricada). A discussão deveria estar na melhor forma de proteger o discurso. E a melhor forma de proteger um discurso nunca é suprimi-lo. É escrutiná-lo, analisá-lo e contrapor com mais discurso. Até porque qualquer espírito tem, a certa altura, um apetite pelo politicamente incorreto.
Contudo, o politicamente incorreto só faz sentido quando o consenso geral (politicamente correto) é absurdo. Na estória, o menino gritou que o rei ia nu. Foi politicamente incorreto porque furou o consenso geral. Mas fazia sentido. Ser politicamente incorreto a toda a hora é uma contradição pois, assim, é um discurso de norma travestido de arrojo. É mais conservador porque impede a real discussão do conteúdo, tornando-o estático. Nós somos, e devemos ser, politicamente corretos a maior parte do tempo. Esperar na fila, falar apenas na nossa vez, etc. Quebramos esse estado quando a norma necessitar de ser questionada. Dizer, sempre, o que mais ninguém diz não é ser politicamente incorreto. É viver numa frequência ao lado da realidade tal qual um rádio mal sintonizado.
In media res é um espaço de ensaio a partir de elementos culturais. Reflexões desprovidas da lógica cronológica. O privilégio da ordem das nossas coisas. Sem pretensão avaliativa ou necessidade de aferição científica. Comprometida, somente, com a turva impressão pessoal do mundo das coisas. In media res porque todos surgimos no meio da História.