Inquietação

por José Valente,    28 Outubro, 2022
Inquietação
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Este texto integra uma série de crónicas sobre a música de José Mário Branco e o disco de homenagem à sua obra, “Águas paradas não movem moinhos”, composto para 6 Violas (sexteto de violas d’arco), que se apresentará no Centro Cultural de Belém no próximo dia 4 de Novembro, às 21h.

Como expliquei numa crónica anterior, algumas das canções de José Mário Branco, como “Queixa das almas jovens censuradas”, “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, “Eu vim de Longe, eu vou p’ra longe (Chulinha)” ou “Inquietação” tornaram-se, com o tempo, referências da música portuguesa. 

Curiosamente, numa conversa com a Francisca, a mais recente violetista do sexteto e também a mais nova do grupo, esta transmitiu-me que “Inquietação” é uma das suas canções de eleição, ou seja, uma daquelas canções que ficam para sempre agarradas ao nosso ouvido e consciência. Eu, tal e qual como a maioria de vocês leitores, acompanho o sentimento e a opinião da Francisca.

No entanto, a principal motivação para que eu fizesse um arranjo deste emblemático hino ao desassossego, foi outra que o reconhecimento histórico aqui justificado. Quando convoquei os violetistas para esta aventura, apercebi-me que o Edgar (um dos violetistas) gostaria de tocar esta canção em particular. Sensação que me foi confirmada pela minha produtora. Uma vez que “Inquietação” já constava na lista de possibilidades, arregacei as mangas e procurei por soluções. 

Como abordar uma peça emblemática, cuja melodia é apreciada por tantos? 

Há muitos anos, enquanto tentava aperfeiçoar a minha técnica criativa na viola d’arco, estudei com algum empenho a capacidade formidável de Bobby Mcferrin. Prestei sobretudo atenção ao seu engenho para, utilizando apenas a sua voz, cantar obras identificáveis exibindo ao mesmo tempo a melodia, o baixo e o ritmo associados. Nesta habilidade, a destreza principal consiste em saber gerir a informação musical necessária para que o espectador repare na obra em causa. Ou seja, ser capaz de determinar o quanto da melodia, do baixo e do ritmo é preciso cantar para que o espectador não se perca enquanto ouve algo que lhe é familiar.

Um exemplo do talento de Bobbly Mcferrin:

No caso do meu arranjo de “Inquietação”, a letra deixou de existir. A canção tinha que ser perceptível durante o diálogo protagonizado entre os seis violetistas. O primeiro passo foi descobrir o elemento distintivo da canção. No meu entender, é a melodia (juntamente com a palavra, claro) que denuncia este tema famoso. A partir desta confirmação, desenhei uma estratégia para o arranjo: explorar a melodia várias vezes e em contextos diferentes. Inevitavelmente, quer pela repetição e quer pela sua sonoridade cativante, o ouvinte iria perceber que estava a escutar “Inquietação”. 

Por isso, a melodia atravessa os seis violetistas, oferecendo ao ouvinte texturas ou cores diversas consoante cada nomeação, respeitando, claro, a progressão harmónica original. Porém, tanto a harmonia como a conversa melódica progridem na sua irreverência, mutando-se pouco a pouco. Eventualmente a progressão evoluí para acordes substitutos, e a melodia fragmenta-se para o seu principal motivo rápido, sendo conduzida entre os violetistas tempo a tempo. Na sua última variação, em vez de ser apresentada de forma completa numa das violas, depois noutra, depois noutra etc. esta saltita entre instrumentistas, em cada tempo do compasso.

A “Inquietação” de José Mário Branco sugere ao ouvinte uma mistura entre o fado e o swing. A guitarra evidencia, logo no arranque, a groove castiça do fado, reforçada com a participação da guitarra portuguesa. Depois entra o saxofone, o contrabaixo a tocar um walkin’ e a bateria a pincelar o swing. 

Bem-vindos, mais uma vez, à inteligência musical de José Mário Branco! 

Quase sem esforço, o cantautor transporta-nos para dois espaços: a casa de fados e o clube de jazz; o vinho e o fumo do charuto; a guitarra portuguesa e o saxofone. Contudo, depois de estabelecido este lugar confortável, eis que entra uma melodia irrequieta e atrevida. “A contas com o bem que tu me fazes/ A contas com o mal por que passei/ Com tantas guerras que travei/ Já não sei fazer as pazes”, afirma José Mário Branco na primeira estrofe.

“Inquietação” de José Mário Branco:

Era, portanto, fundamental suscitar um ambiente divertido, quase dançável, para apoiar esta melodia no meu arranjo. Pensei, então, na sonoridade jazzística de Django Reinhardt e o seu quinteto. Foi com esta música em mente que optei por: 1) acompanhar a melodia com uma linha de pizzicatos, quase correspondendo à ideia de um walkin’ bass 2) construir uma secção intermédia, onde eu toco um solo improvisado, enquanto os outros violetistas simulam, com pizzicatos, o ritmo específico da música de Reinhardt.

Falta apenas explicar a introdução do meu arranjo. 

Contaram-me que José Mário Branco adorava o som das cordas friccionadas. Não tenho provas concretas que me permitam admitir este fascínio. O que é certo é que este aproveitou-se muito bem desse mesmo som em vários momentos. Até nos primeiros discos, como podemos verificar em “Aqui dentro de casa” do disco “Margem de certa maneira” (1972). 

“Aqui dentro de casa” de José Mário Branco:

Como aludi na crónica anterior, uma das músicas mais surpreendentes do repertório de José Mário Branco é “A Noite”. Em parte, devido à extraordinária introdução orquestral, escrita pelo próprio. Seria um desperdício, tendo acesso a uma beleza desta dimensão, não citar esta orquestração na nossa homenagem. Optei por fundir as duas canções. Na minha “Inquietação” sente-se, logo no início, uma profunda angústia, alcançada através desta citação à abertura de “A Noite”. Lentamente, ao longo da audição, a melodia de “Inquietação” é inserida, mas de uma forma desprendida, solta, sorrateira. Até que, após um clímax cheio de suspense, fortalecido com o movimento ascendente de três notas harmonizadas e acentuadas por cinco violas, surge de forma explícita o refrão de “Inquietação”. 

Podem ouvir o meu arranjo de “Inquietação” aqui:

Esta é a última crónica sobre a música de José Mário Branco e o álbum “Águas paradas não movem moinhos” de 6 Violas. Na próxima semana, teremos o prazer de realizar a nossa homenagem no Centro Cultural de Belém, às 21 horas, no dia 4 de Novembro.

Foi um privilégio entrar dentro do universo musical de José Mário Branco. Uma coisa é sentirmos admiração por um músico e, por causa desse apego, criarmos a nossa própria narrativa sobre o seu percurso e propostas estéticas. Outra coisa é confirmarmos a nossa intuição e anseios, quando finalmente analisamos a obra e verificamos que o músico que adoramos, corresponde.

Obrigado José Mário Branco. Viva o José Mário Branco!

Depois de uma breve pausa regressarei ao Comunidade Cultura e Arte. Ainda vamos apreciar e pensar sobre muitas músicas!

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