James Holden na Culturgest: quando a electrónica casa com o jazz e dá uma volta ao mundo
Assim que James Holden e a banda entraram em palco para ocupar os seus lugares percebemos o cenário para onde estávamos a ser atirados. E é relativamente fácil de descrevê-lo: no centro, Holden, cabelo comprido e roupa larga, subia para um estrado cuja frente era coberta pelas mesmas tiras de pano coloridas que adornam a capa do álbum, e instala-se de pernas à chinês no centro de dois grandes monitores de som; do nosso lugar nem conseguimos ver os sintetizadores que tem na frente e nas laterais, mas sabemos que estará no controlo e na base de toda a música que estávamos prestes a ouvir. Acompanha-o um baterista à sua direita; um outro percussionista também sentado no chão e rodeado de pequenos instrumentos típicos tradicionais (à maior parte dos quais não sabemos dar nomes); um homem de boina que enverga um saxofone; ao lado, uma mulher que irá alternar entre um clarinete, um saxofone e uma flauta; e, por fim, um elemento mais escondido, na lateral do palco, cujo papel não descortinei por completo – um técnico de som que parecia contribuir para o todo de alguma forma, adicionar pormenores (ou simplesmente gerir o conjunto).
O concerto começa com a voz processada de Holden – o único instante da noite em que é usado o aparelho vocal para se retirar dele vibrações, graves e distorcidas. Se esta paisagem de artistas, no palco do Grande Auditório da Culturgest, já dava a provar o que aí poderia vir, a surpresa é completamente revelada ao final de um minuto. Não há tempo a perder. Quando digo completamente revelada, quero dizer que ao fim de um minuto de espectáculo, quando todos os elementos entram ao mesmo tempo com a força simultânea do jazz, da electrónica e da música do mundo, fiquei imediatamente de boca aberta. “Vai ser bom”, pensei. Os setenta e cinco minutos de espectáculo que se seguiram não o desmentiram.
Quando digo surpresa, digo-o para quem nunca tinha ouvido o trabalho que deu origem a esta digressão. The Animal Spirits, editado em Novembro do ano passado, é um álbum de electrónica progressiva, que chama os contributos de um certo jazz livre e espiritual, da música psicadélica, e ainda de uma vertente experimental não distante do krautrock. Bem acolhido pela crítica, fez ao longo do último ano uma digressão com relativamente poucos concertos, com salas e festivais escolhidos a dedo (incluindo o Les Nuits Sonores, o Primavera Sound de Barcelona ou o Down the Rabbit Hole). O novo programador da Culturgest trouxe-o agora a Portugal, enquadrado numa agenda que dá espaço e voz à electrónica alternativa no palco de uma das maiores instituições culturais portuguesas. O concerto acabou por reforçar as expectativas para o que a segunda perna da programação, a partir de Fevereiro, terá para trazer.
Acabou por ser paradigmático o nome de um dos primeiros temas interpretados por Holden e pelo conjunto, e talvez um dos que mais ficaram no ouvido – “Each Moment Like the First” – cuja evolução se desenrola a partir de uma base de cariz repetitivo, repescada dos sintetizadores modulares de Holden. Nessa e noutras músicas, a estrutura não tende a fugir muito à regra: o crescendo de camadas e emoção, a pausa que dá espaço a um amadurecer das ideias, e o regresso cheio de êxtase e intensidade. Estes momentos, que a partir de certa altura no concerto podem passar por previsíveis, são trabalhados com criatividade por cada um daqueles que pisa o palco. Poderia destacar algum, mas o que senti enquanto ali estava sentado é que eram tantas as coisas a puxar-me a atenção – os músicos tinham tanto espaço para a sua expressão – que me era impossível captar o fluxo de ideias em tempo real. Vi-me obrigado a alternar, ora a olhar para a bateria, ora para os sopros, ora para Holden. O deslumbre musical a confundir-se com o interesse mais ‘intelectual’ de distinguir as camadas de som, de compreender como estavam a ser montadas, os ingredientes atirados para o caldeirão, incluindo no papel ambíguo do técnico de som que ocupava uma das laterais do palco.
E que ingredientes! Num espectáculo de electrónica de um músico que dedicou grande parte da sua carreira às pistas de dança, é refrescante ouvirmos uma bateria a dar o mote do ritmo. Num momento preliminar do espectáculo, por menos de um minuto, houve direito a uma batida mais assumidamente dançável, um grave electrónico a marcar o compasso – mas foi apenas uma miragem, porque daí em diante a quase totalidade da secção rítmica ficou entregue ao contributo do baterista, assim como do percussionista de instrumentos tradicionais. E isto adicionou muita orgânica ao espectáculo, uma maior sensação de variabilidade e criatividade. Assim como os dois elementos que asseguraram os sopros: absolutamente imprescindíveis. Uma lição: como uma flauta pode ser tão psicadélica, e modificar uma música tão profundamente, mesmo não assumindo o protagonismo nem a linha da frente.
“Thunder Moon Gathering”, talvez a mais oriental das composições que a banda nos trouxe, foi ilustração colorida das ambições do projecto de James Holden em conjunto com os The Animal Spirits; assim como um bonito casamento entre o nosso presente cheio de possibilidades e a ancestralidade do ser humano – o tribal e o futuro, mesclados. Uma viagem por várias épocas, que encontram no olhar, nos ouvidos e na compreensão cultural da humanidade uma linha condutora da sua própria condição. Mas vejo-me ainda obrigado a destacar “The Neverending”, talvez o tema que mais me marcou naquela noite.
No coração do espectáculo, James Holden, o maestro cujo trabalho de mãos estava oculto por um bouquet de flores na sua frente e pelos monitores de som directamente apontados aos seus ouvidos, a menos de um metro. Embora não tenhamos compreendido onde começava e terminava o seu contributo – tendo em conta que a figura que trabalhava nas sombras da lateral direita do palco também parecia ir adicionando pormenores à mistura – tudo convergia em Holden; a base era dele. Acima de tudo, para o espectador, ele apresentava-se como uma espécie de ‘guia de audição’.
O movimento da cabeça, do pescoço e do corpo; os olhos fechados; o frenesim de se virar para a esquerda para distorcer aquela frequência ou adicionar mais uma linha melódica discreta; mas acima de tudo o sorriso parvo com que reagia ao crescendo que resultava de todos os contributos. Era o guia porque nos ensinava a ser sensíveis ao que a música tem de mais extraordinário – ao que nos conta e nos ensina, o que nos propõe, e naquilo em que nos transforma. Música como viagem – e como conquista das nossas emoções, não restrita aos limites do vocabulário e da gramática. Era a cara de Holden, aquele sorriso descontrolado, que confirmava tudo isto.