Javier Marías regressa ao mundo da espionagem com “Berta Isla”
Berta Isla é o mais recente romance do aclamadíssimo escritor espanhol Javier Marías, agora editado em português pela Alfaguara. Conta a história de um casal: a professora madrilena Berta Isla e o hispano-britânico Tomás Nevinson, recrutado pelos Serviços Secretos britânicos para exercer funções de infiltrado. Ora, mesmo tendo vivido toda a sua vida em Espanha, Tomás fala também o inglês como nativo, e é precisamente pela sua proficiência em línguas (característica pouco vulgar nesta Inglaterra e essencial ao cargo), que, quando vai para Oxford estudar, os Serviços Secretos o abordam.
Inicialmente, Tomás não se deixa convencer, e é só quando é suspeito de um homicídio que não cometeu que é encostado à parede. Se aceitar a proposta, a suspeita sobre si desaparece; se não aceitar, muito dificilmente se safa, já que o outro suspeito é um deputado com demasiado estatuto para cair.
Berta, nessa altura apenas sua namorada, permanecera em Madrid a estudar Literatura, e quando Tomás regressa a Espanha após a conclusão dos seus estudos em Oxford, não lhe revela ter aceitado a proposta dos Serviços Secretos, dizendo-lhe que aceitara um trabalho na embaixada do Reino Unido. Não parece surpreendente a Berta, portanto, que Tomás se ausente durante meses em Londres por alegados motivos profissionais, ainda que, assim que as esperas se começam a prolongar, tudo lhe pareça suspeito.
Berta é, portanto, uma mulher à espera do seu marido, e é ela a narradora prevalecente e o foco deste livro, ou não fosse seu o título do mesmo. Deixada sozinha em Madrid com os filhos, frequentemente sem ter sequer notícias do paradeiro do seu marido, Berta é, estranhamente, uma mulher perfeitamente em paz com a sua situação. Raramente se sente tentada a abandonar a espera por Tomás. Claro que se questiona do paradeiro do marido, claro que preferia tê-lo a seu lado, mas, além das perguntas e das informações que lhe tenta arrancar em relação às suas missões (e que Tomás não revela), Berta aceita com aparente tranquilidade o seu papel de dependência face a um homem que não tem autorização profissional para revelar todo o ser que é.
Mas se a narração na voz de Berta é belíssima (com as habituais longas frases de Javier Marías aqui transpostas para uma voz feminina), a voz na terceira pessoa que narra outras secções da narrativa, nomeadamente a inicial (que nos situa no passado tanto de Berta como de Tomás), soa ligeiramente desajustada e, sobretudo, algo desnecessária, já que o mesmo poderia eventualmente ser divulgado através da voz de Berta, sem necessidade de alternâncias. Percebe-se o conflito que Javier Marías possa ter sentido – há partes da vida de Tomás que Berta desconhece -, mas essa dispersão acaba por quebrar um pouco a unidade do livro.
Como a Berta, também ao leitor não são revelados pormenores das missões desempenhadas por Tomás, e ainda que o livro questione a ética e a moral de uma profissão como essa, o mais que podemos fazer para nos indagarmos quanto às missões de Tomás é transpor o que conhecemos sobre Bertram Tupra, o seu chefe, que conhecemos do anterior romance de Marías, O teu rosto amanhã (também Peter Wheeler, antes de se tornar Sir, marca presença neste romance).
Nesse sentido, Berta Isla não é sobre a espionagem, mas sobre a relação entre Berta e Tomás e sobre as consequências desse caminho, aquelas que foram escolhidas e aquelas às quais o destino obrigou. Tomás é um homem amargurado com o caminho em que desaguou a situação de se ver suspeito de um homicídio e, ainda que cresça para se tornar um defensor daquilo que faz, é alguém que ingressa numa carreira que em circunstâncias normais teria preterido.
Parece ser sobretudo esse o ponto de Marías: não controlamos inteiramente o nosso destino e parte da maturidade que devemos adquirir com a vida adulta é, precisamente, aceitá-lo. Não o fazer é permanecer imaturo.
“Existem centenas de milhares de pessoas que se enquistam na adolescência ou na juventude, que se negam a abandoná-las e se eternizam na crença de que todas as possibilidades permanecem em aberto e de que nada está afectado pela rugosidade do passado porque o passado ainda não chegou; como se o tempo lhes tivesse obedecido quando lhe disseram um dia, distraidamente, nem sequer com intensidade “Pára, está quieto, pára, que tenho de pensar””
É precisamente nessa adolescência que Berta e Tomás se conhecem, ainda enquanto estudantes de liceu em Madrid, durante a ditadura de Franco, e é logo nesse momento que, com uma estranha certeza, escolhem ser parceiros para a vida. Mesmo quando, afastados pelos caminhos universitários que prosseguem em diferentes países, perdem a virgindade para outros, essa infidelidade parece apenas aumentar a sua convicção que o seu destino é conjunto. Mesmo antes de todos os desafios que estavam por vir, já pareciam ter percebido essa inevitabilidade cósmica que parece decidir tantos acontecimentos da nossa vida.