João dos Santos: o criador da moderna saúde mental infantil em Portugal
Quando falamos do estudo da saúde mental em Portugal, não podemos descurar o nome de João dos Santos. Especializado na área das crianças, esteve nas origens da Sociedade Portuguesa de Psicanálise e na autonomização da psiquiatria infantil — agora consolidada e conhecida como pedopsiquiatria —, ajudando a criar ferramentas e meios para a formação de educadores — leia-se pais, avós, tios, professores e demais tutores. Viveu entre 1913 e 1987 e, nesses 73 anos de vida, deparou-se com as adversidades impostas pelo regime político, que tentou sempre combater e fintar, nunca deixando que o Estado o impedisse de redigir uma vasta e numerosa bibliografia, crescentemente a afunilar para a área da saúde mental infantil.
João Augusto dos Santos nasceu em Lisboa a 15 de setembro de 1913, falecendo a 16 de abril de 1987 nessa mesma cidade. Filho de um alfaiate e de uma costureira, cresceu em pleno coração da cidade, no bairro dos Anjos. Herdou os valores republicanos e progressistas do seu pai, sempre aberto a novas perspetivas emergentes. De igual modo, foi desde pequeno que começou a fermentar um caráter sempre com atenção ao próximo e, em especial, aos mais necessitados. Na escola primária, sente dificuldades associadas a um quadro de dislexia, uma patologia, então, ainda sem reconhecimento científico, mas que é aliviada pela convivência com a Natureza e com os diversos passeios que fazia, contactando com várias comunidades, desde rurais a marítimas.
É uma filosofia pedagógica que o seu pai coloca em prática neste seu filho único e com a qual este acaba por se sintonizar. Começa, assim, a ficar cada vez mais interessado na pedagogia e no processo de aprendizagem. Com 16 anos, ingressa na Escola Superior de Educação Física, com a finalidade de se formar em pedagogia e vai mergulhando na vasta bibliografia que encontra, em especial na do professor Faria de Vasconcelos, um dos rostos do movimento Escola Nova, que marca a transição do ensino em Portugal para o século XX. É aqui que vai começando a magicar a ideia de um organismo estatal que pudesse ser concernente, somente, à educação e à saúde da criança.
O seu percurso passou, desta forma, por diferentes áreas, desde o ensino até à medicina pura e dura. Aliás, antes de ter ingressado no curso de Medicina, em Coimbra, no ano de 1931 (viria a retomá-lo em 1934 e a finalizá-lo cinco anos depois, já em Lisboa), já andava a dar aulas de Educação Física, curso que acabou em 1936, tanto no ensino particular, como a título gratuito pelos bairros populares da capital, desde Barcarena a Alfama. Em Coimbra, conhece Viana de Lemos, o seu primeiro tutor na área educação e da pedagogia. Na graduação em Lisboa, abraça a tutoria do médico e professor Barahona Fernandes, que o acolheu na área de psiquiatria geral.
Neste encontro com a Medicina, direcionou a sua atividade para a área da psiquiatria, tendo colaborado no Instituto António Aurélio da Costa Ferreira, no Hospital Miguel Bombarda e no Hospital Júlio de Matos, instituições nas quais procurou fomentar a criação e modernização de clínicas infantis. Fê-lo com um sentido científico, observando no terreno os pacientes, procurando abordá-los de forma humana e inovadora, com cuidados para a formação e educação destes. Estagia, ainda, no Hospital Escolar, no seu serviço de neurologia, e prossegue o seu trabalho menos estatístico e mais abrangente, que não se direciona só para a criança, mas também para os seus pais. Em 1942, funda a editora O Centro Bibliográfico, onde acolhe os primeiros trabalhos de alguns futuros ilustres autores portugueses, como José Gomes Ferreira, José Cardoso Pires e Eugénio de Andrade.
No entanto, as suas ligações políticas — nomeadamente com o Movimento de Unidade Democrática, depois de subscrever o documento que defendia a existência de eleições livres —, forçou-o a sair do serviço público e a seguir para Paris em 1946, aos 33 anos. A premissa com que sairia de Portugal era a de que a educação e a saúde só poderiam ser plenas e realizáveis num estado democrático, onde a liberdade não pode faltar, muito em especial para a abertura para a compreensão das problemáticas associadas à saúde mental. Aliás, defendia, como necessidade de reforma, a de encarar as maternidades como o berço do ensino, sendo a primeira das muitas pontes entre a educação e a saúde. Estas foram, precisamente, as dificuldades sentidas para colocar em prática o seu ideário médico e a preocupação com o seu orientador Barahona Fernandes, cuja estabilidade pessoal e profissional não queria colocar em causa.
Quando se está apaixonado por uma pessoa, ou por uma ideia, ou seja lá o que for, a pessoa está toda voltada para fora. Na depressão, pelo contrário, a pessoa está toda voltada para dentro. E na cultura ocidental nós recusamos muito a depressão, ao contrário do que acontece com os orientais que a aproveitam muito para meditar, para pensar, para reflectir, para atingir o discernimento das coisas.
João dos Santos / “Eu agora quero-me ir embora, conversas com João Sousa Monteiro”
Neste país, flagelado após um conflito bélico devastador [2ª guerra mundial], encarou uma sociedade tanto fragmentada como desequilibrada, e seria investigador no Centro de Pesquisas Científicas de França, em especial no seu Laboratório de Biopsicologia da Criança. Inicialmente, incidindo os seus estudos na área da Psicologia Genética, partilhou conhecimentos com nomes de nomeada na área da psiquiatria infantil, nomeadamente os franceses G. Heuyer, o primeiro professor na área de neuropsiquiatria em França; Serge Lebovici, o diretor do Centro Alfred Binet — o departamento de psiquiatria infantil e juvenil da Associação para a Saúde Mental —, e René Diatkine, seu pupilo. Seria, também, admitido na Comissão de Ensino da Sociedade Psicanalítica de Paris, bebendo do legado do consagrado Sigmund Freud.
Isto para além de ter estado, em 1948, no Congresso Mundial dos Intelectuais para a Paz. Depois de uma fugaz passagem pela prisão de Fresnes, um pouco a sul de Paris, para além de outras pontuais deslocações a instituições com crianças portadoras de deficiências e diagnosticadas como delinquentes, regressaria a Portugal quatro anos depois, em 1950. Voltou recheado de conhecimentos, de experiências e de projetos para o seu país. Entre eles, a importância da emoção nos primeiros passos da criança, a integração biopsicológica desta e a relevância dos fatores dinâmicos no seu desenvolvimento.
Regressado a Portugal, trouxe um grande impulso de procurar reformar o ensino nacional. Contou com a atenção e a colaboração de vários dos membros do grupo Seara Nova — entre eles Vitorino Nemésio —, mas, também, de vários médicos no ativo que estavam muito predispostos para tomar conhecimento das novidades científicas, desde doutrinas a métodos que se praticavam no estrangeiro. Assim, vai dinamizando várias iniciativas de (in)formação para técnicos de saúde e para educadores, assim como outros interessados agentes educacionais.
Esta congregação crescente de interessados levou-o a percorrer o país e a fomentar o trabalho de equipa nos serviços de saúde mental das instituições clínicas nacionais, tendo em vista a prevenção de distúrbios no crescimento infantil e o seu acompanhamento. Um trabalho que se sustentaria no diálogo entre as partes interessadas, com os médicos, os utentes e as suas famílias e/ou comunidades a serem chamadas à colação. Para formalizar estes contributos em muito logísticos, realizou diversos relatórios para salvaguardar o seu percurso e deixar referências para o futuro nas vindouras intervenções ao nível da saúde mental infantil e da pedagogia.
Iniciou, finalmente, a sua imensa obra institucional: no Centro de Assistência Materno-infantil Sofia Abecassis, faria parte da criação da sua secção de higiene mental (a primeira de várias que fundaria ao longo da carreira), de forma a atender aos distúrbios de desenvolvimento da criança, apoiando as utentes-mães; de um instituto de educação especial de seu nome Colégio Eduardo Claparède (1953), com o nome de um dos precursores do estudo do desenvolvimento psicológico das crianças; dos primeiros centros psicopedagógicos (uma ideia que traz de França), um no jornal “A Voz do Operário”, outro no Colégio Moderno (entre 1951 e 1952); e de uma escola social e educacionalmente integradora e inclusiva para os portadores de deficiência, do Centro Infantil Helen Keller (1955, chegando a conhecer a própria figura de Helen Keller, a primeira graduada portadora de uma deficiência visual e auditiva). Esta nasceu a partir da anterior criação do Centro de Recuperação Visual e Classes de Amblíopes, agregado à Liga da Profilaxia de Cegueira.
É importante salutar, no Colégio Eduardo Claparède, a realização de um seminário semanal de cariz psicopedagógico, de forma a que o seu corpo docente e técnico pudessem compreender melhor as origens e as manifestações comportamentais das crianças, para além de procurar que os pais estivessem mais presentes na educação dos seus filhos, de forma a analisar e a atender aos casos e problemas emergentes neste processo. De igual modo, na linha desta última instituição, esteve presente na criação da Liga Portuguesa de Deficientes Motores (1956), da Associação Portuguesa de Surdos (1958) e da Liga Portuguesa contra a Epilepsia (1971), para além da própria secção de Paralisia Cerebral da Liga Portuguesa de Deficientes Motores.
Dirigiria e reorganizaria o Centro de Saúde Mental Infantil de Lisboa (1965), que criou e que colocou ao serviço do Hospital Dona Estefânia e do Hospital Júlio de Matos (aqui, regressado depois do “exílio”, viria a dirigir as suas clínicas infantis). Porém, a ação deste centro tornar-se-ia verdadeiramente nacional, cada vez mais descentralizada, na forma de uma rede de serviços a prestar junto da comunidade. Muniu-se, assim, de equipas multidisciplinares entre as várias áreas da Psicologia, da Psiquiatria e do Ensino, sem descurar a enfermagem e a psicomotricidade. De igual modo, esteve ao lado dos psicanalistas Pedro Luzes e de Francisco Alvim na cisão da organização lusoibérica e na criação da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (1971), assim como da sua Revista Portuguesa de Psicanálise.
Este seria um passo determinante na consolidação do seu método de trabalho para as gerações futuras: a utilização da psicanálise como meio a ser escrutinado e a ser burilado, com o acompanhamento da sua utilização (mais ou menos direta) por parte de médicos, psicólogos e assistentes sociais. Destas bases, nasceriam outros importantes contributos para a salvaguarda da saúde mental infantil, desde a Escola dos Cedros — Clínica da Juventude (1974) até à Casa da Praia — Externato de Psicologia Experimental (1975, ainda ao abrigo do Centro de Saúde Infantil e hoje com o nome do próprio Dr. João dos Santos).
Sobre esta Casa da Praia, tratou-se de um centro de acolhimento de várias crianças lisboetas na qual se colocou em prática o seu paradigma pedopsiquiátrico: um forte sentido preventivo de eventuais problemas emocionais, tanto de foro intrínseco, como no espectro da integração social e escolar, a orientação e acompanhamento do próprio processo de aprendizagem, a investigação contínua nestes campos e, por fim, a formação de pessoal especializado para prosseguir a concretização da sua missão. Todas estas fundações seriam determinantes para se desenhar e se formalizar o Instituto de Apoio à Criança, em 1983, um ano depois de João dos Santos se ter retirado.
Mas a maior criação, ou a criação de base, no meu entender, é a criação da própria pessoa. E como é que a pessoa se organiza, se cria a si própria? É através do pensamento, do pensamento que é inicialmente um pensamento no sonho, e portanto todas as coisas começam de certa forma no sonho, que tem uma faceta um tanto misteriosa, e isso foi explicado por Freud. É que o sonho baseia-se em imagens visuais, talvez porque as imagens corporais, do contacto corporal, sejam menos fáceis de reproduzir para o bebé pequeno. Ou menos observáveis, não sei. Se calhar é tudo isso junto. Mas há sonhos de angústia, sonhos de desejo desde o terceiro mês. E depois, a partir daí, a criança começa a organizar uma actividade simbólica, organiza o sonho, que é feito de símbolos. E é a partir dessa altura que ela pode ligar a inteligência imaginativa, criativa, dos pintores e de outros artistas, com razão e com a imaginação.
João dos Santos/ “Eu agora quero-me ir embora, conversas com João Sousa Monteiro”
A esta intensa atividade burocrática, também desenvolveu uma consistente atividade letiva, dando aulas de Psicologia Dinâmica – área de estudo dos processos emocionais e dos mecanismos a estes subjacentes e que originaria o curso de Psicopatologia Dinâmica – na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, de 1978 a 1982, e na Escola Nacional de Saúde Pública (o curso de Saúde Mental). Como bibliografia, deixou alguns testemunhos importantes, entre os quais “Ensaios sobre Educação” (com dois volumes lançados entre 1982 — “A Criança Quem É?” e 1983 — “O Falar das Letras”) e “A Casa da Praia: O Psicanalista na Escola” (1988, abordando as neuroses e suas causas e sintomas, reportando às próprias neuroses dos agentes educativos); mas também “Se não Sabe Porque é que Pergunta?” (1988, um diálogo com o seu colega João Sousa Monteiro na Rádio Comercial) e “Eu Agora Quero Ir-me Embora” (1990, resultado de conversas gravadas na referida Rádio Comercial), ambas edições póstumas.
A sociedade reconheceria, em vida, o trabalho e a personalidade de João dos Santos, sendo agraciado como Comendador da Ordem de Benemerência em 1984 e, no ano seguinte, receberia o Doutoramento Honoris Causa da Faculdade de Motricidade Humana. Em 1986, voltaria a receber uma comenda, desta feita da Ordem do Mérito. Seriam reconhecimentos válidos e justos de alguém que primou pela necessidade de promover a prevenção e os cuidados quanto à saúde mental infantil, entre várias outras causas. Uma dessas, que cai no esquecimento pelo meio do seu trabalho científico e médico, é a sua presença numa comissão constituída no pós-25 de abril pelo Ministério dos Assuntos Sociais, cuja missão foi a de preparar uma política de proteção da maternidade e da primeira infância. O mencionado Instituto de Apoio à Criança ganha, aqui, os seus primeiros contornos, depois das conclusões apuradas pelo pedopsiquiatra, que defendia o binómio mãe-filho, sem esquecer o apoio indispensável da figura do pai. João dos Santos faleceria a 16 de abril de 1987, vítima de um acidente vascular cerebral, logo após concluir a sua obra literária sobre o projeto da Casa da Praia.
Na chave da pedopsiquiatria de João dos Santos, uma máxima: “o segredo do homem é a própria infância”. É na infância, assim, que está a base do desenvolvimento de um ser humano na sua plenitude. Na base das bases, a aprendizagem deve ser espontânea, imbuída de um espírito que deambula entre a razão e a emoção, as forças motrizes do processo de descoberta e de revelação, da utilização dos sentidos nas primeiras interações e assimilações do mundo exterior. O processo de brincar é, assim, imprescindível no processo de formação da criança. Assim, João dos Santos procurou desconstruir o funcionamento mental das crianças, a deteção de potenciais perturbações ao seu crescimento, a manifestação dos seus sintomas e o respetivo tratamento, na conjugação do compreender e do prevenir. Desta forma, dá-se um profícuo diálogo entre neurologia, psiquiatria, psicanálise, psicologia e educação, com sentido de melhoria contínua do entender da saúde mental (infantil).
Um dos pontos prévios nos quais fez assentar o seu trabalho foi o do pano de fundo socioeconómico, do qual a aprendizagem das crianças e dos adolescentes pode ser beneficiada ou vítima. A (in)existência de meios e de possibilidades para os fenómenos da leitura e da escrita, para além das sucessivas aprendizagens em contexto escolar, acabam por formatar o entendimento de que há comunidades mais ou menos inteligentes. Esta era uma das causas de João dos Santos, que procurava diminuir estas discrepâncias, para além da própria temática do ensino especial, no qual as deficiências psicomotoras surgiam como desafio para institucionalizá-lo e normalizá-lo, tornando a aprendizagem mais facilitada para os seus portadores. De igual modo, a democratização do acesso à sociedade, através do pensamento, da imaginação e da ação, do trabalho e das relações humanas, permite que a humanidade se cumpra, melhorando a sociedade e a humanidade. É neste cenário que desenha um plano sobre a democratização da saúde e da educação no país (“A Higiene Mental na Escola”, de 1970), com enfoque nas emoções no processo da aprendizagem.
Observação, terapia, educação. As traves mestras de um corpo teórico-prático que se materializou em diversos meios, entre artigos de foro investigativo e relatórios da atividade prática realizada. Dentro dos objetos de estudos, como sempre, as origens, em forma de patologias ou de outras perturbações, dos impasses no processo de aprendizagem: fora os já mencionados, a disortografia, a gaguez, o canhotismo, a anorexia, a depressão, o bloqueio afetivo. No entanto, para além de identificar e de compreender as causas, a pertinência de procurar respostas, do ponto de vista pedagógico e didático, para fazer face a estas problemáticas.
O caminho percorrido desde a emoção, manifestada no gesto, na expressão corporal, na fala e já em processos mais complexos, que se debruçam na compreensão do mundo exterior por intermédio da cognição. É a leitura que o pedagogo/pedopsiquiatra deve fazer de forma a, para além de conhecer a situação em análise, conhecer-se e melhorar-se em continuidade, de forma, não só, a garantir a estabilidade de quem acompanha e de quem ensina, mas também a disposição de proporcionar estas relações de forma espontânea e instintiva, sem perturbações à partida.
O educador deve, assim, entrar em introspeção de forma a refletir e a considerar como está a funcionar o seu papel de “ensinador”. A educação é uma atitude que provém da relação das vivências e subsequentes interpretações de quem educa, com quem é educado, e é essa a razão que exige a quem educa que perceba, em caso de alguma falha, o que está menos bem. Estas relações podem percecionar-se em diversos binómios, desde mãe-filho, pai-filho, professor-aluno, mas, em essência, no trio mãe-filho-pai. A relação familiar da criança, assim como a relação com a(s) comunidade(s) em que está inserido, torna-se basilar para o processo de aprendizagem e, deste(s), para o de formação humana do indivíduo.
A escola é, como sabido, determinante neste caminho, sendo que João dos Santos considera-a necessária e obrigatória, embora defenda uma escola que ultrapassa os limites da instituição e que chega às casas dos alunos, assim como aos espaços onde eles convivem. Aqui, reflete o espírito da Escola Nova, onde a escola deve estar estreitamente próxima da sociedade e da cultura local, mobilizada pelas suas comunidades, e deve ser um meio de despoletar a reinvenção do educador/educado, dado tratar-se de um processo humano e, como tal, dinâmico e evolutivo. A escola deve, desta feita, adaptar-se a quem recebe, valorizando e dignificando os seus membros, situando-os na sociedade e no mundo, com cuidado neste bipartidarismo entre o funcionamento mental e intelectual e o social.
Dentro da família, é a emoção e o sentimento que se tornam nos veículos primordiais de linguagem, em especial os que são transmitidos pelos pais. Assim, desloca-se do ensino das técnicas associadas à linguagem e vai ao âmago desta, às relações humanas diretas, à criação das inteligências situacional e prática. A verdade é que João dos Santos considera que a escola deve ser portador de algum instinto maternal, para que não se quebre o vínculo com o “idioma” da maternidade e para que não se gerem desequilíbrios na formação da criança. A integração no espaço escolar deve dar-se de forma paulatina, sem entrar de rompante no choque dos vários objetos e seres, havendo a necessidade de maturar a intuição que compreende o mundo e que possibilita a comunicação com este.
A linguagem, aqui, é vista, não como uma língua propriamente dita, mas antes esse fenómeno comunicacional do ser com o mundo, das suas diversas relações estabelecidas, tanto no interior, como no exterior. É, também, numa linguagem que se sustenta o processo educativo e pedagógico, onde a leitura do tempo e do espaço é que mobiliza a atuação e o atender às particularidades do aprender: mais do que a linguagem codificada em sinais em símbolos, a linguagem que observa e interpreta o mundo e os seus membros.
A recusa do adulto em reconhecer a tristeza da criança corresponde à recusa do adulto em reconhecer a sua própria tristeza infantil e até a sua tristeza actual. Quer dizer, ele também foi vítima disso. Ele também teve tristezas que teve de esconder, que teve de disfarçar, que teve de resolver de certa maneira, porque os adultos, no seu tempo de criança, também já não lhe concediam o direito à sua tristeza, à sua depressão.
João dos Santos/ “Eu agora quero-me ir embora, conversas com João Sousa Monteiro”
É esse papel de consciencialização que o psicólogo deve encarnar na sua atividade, para lá da análise objetiva de cada indivíduo, e que deve servir de ponte para o pedagogo, que assume, em contexto escolar, uma amplitude mais plural e menos direcionada que a dos pais. É a importância da interdisciplinaridade, o diálogo cruzado entre as áreas que vai gerando outras, como a psicopedagogia ou a pedopsiquiatria, onde entram outras áreas, como a psiquiatria, a psicanálise e a referida pedagogia. À psicanálise, deve-se a interpretação e consecutiva compreensão, como à psicologia se deve a atuação e à pedagogia a orientação no terreno, de um processo contínuo que é o da formação e o da aprendizagem. Assim, João dos Santos defende a presença da pedopsiquiatria em contexto escolar, de forma a monitorizar o percurso pedagógico e o impacto que vem a ter na evolução mental e emocional do aluno. É, aliás, mais uma prova de que a sua atuação era sempre muito mais prática do que teórica, reduzindo o laboratório ao mínimo indispensável e relevando a presença direta e regular.
Para isto, traz o conceito de pedagogia terapêutica, que conjuga a pedagogia e a psicologia e que se mostra como o paradigma da instituída Casa da Praia, na qual, como referido, procura colocar em prática uma psicologia integrada. Enquanto uns aprendem pedagogia, esses mesmos ensinam noções de psicologia aos técnicos que acompanham as crianças com dificuldades de aprendizagem e, por conseguinte, de integração na sociedade. Aqui, formavam-se grupos de trabalho que procuravam encarar, de forma completa e, de certa maneira, holística, os problemas suscitados, colocando em prática uma pedagogia sem hierarquia e sem recurso às paredes do laboratório.
Enfatizava, de igual modo, a integração dos portadores de deficiências, uma das causas primordiais de João dos Santos e, para isso, para lá das fundações que ajuda a construir, no seu trabalho diário, procura fugir aos epítetos pejorativos e desconstrói as estruturas sociais e a forma como estas acolhem estes casos. Assim, assinala, publicamente, a necessidade de apoiar e de atender à proteção destes jovens, recusando-se a ditar vereditos de incuráveis para quem quer que fosse. Claro está, isto não é mais do que a aplicação da psicologia dinâmica e da tal pedagogia terapêutica, na qual a educação é comunicação e pode ser sempre avaliada e melhorada.
O trabalho de equipa a desenvolver entre professores e técnicos clínicos deve, desta feita, fazer pautar-se pelo equilíbrio na observação de ações e reações, sem ditar diagnósticos perentórios e, muitas vezes, nocivos para os observados. Assim, importa orientar a conduta para cenários de recuperação, recusando o abandono e o desligamento da família e da comunidade. Assegurar a humanidade da criança torna-se imprescindível e é o grande objetivo da pedagogia terapêutica, com o sentido de colocar de lado o preconceito e, se necessário, adaptar o ensino à diversidade de casos existentes, com ou sem deficiências dos vários tipos existentes.
Esta pedagogia terapêutica assume referências que, para João dos Santos, devem estar presentes à partida na educação de casa. A formação de valores sociais e fraternais, que permita estimular a criança a encontrar-se e integrar-se nos espaços sociais com os quais mais se identifica. Para isso, os ideais do belo e o amor por si e pelo(s) outro(s), em conjunto com as referências do belo do mundo, que deve ser preservado e fomentado, ajuda a que esse ideal de humanidade não se esvaia nas gerações vindouras.
Trata-se de um caminhar de mãos dados entre a razão e a emoção, no qual as emoções não se desenvolvem sem as referências intelectuais do mundo e vice-versa, com ambos a autocriarem-se. É similar ao aspeto do desenvolvimento da inteligência não se divorciar da capacidade de imaginar e de fantasiar, de ir mais além, alcançando uma dimensão espiritual, mágica. É o sonhar e o fantasiar que permite que a criança encontre a sua razão e plante raízes que não lhe deixam mesmo na fase adulta, assumindo a comunicação como capaz de registar emoções e de as manifestar.
A sua criação pode, de certa maneira, ser vista como objetos de amor, um amor cujo sustento parte desse amor puro e rarefeito que vem da criança. Assim, João dos Santos defende, mesmo, a presença da tal criança interior, que ajuda a que o adulto se permita compreender e redescobrir nas suas várias dimensões, num percurso de evolução biopsicológica. Assumia, desta forma, que a educação é mais feita do que se é do que aquilo que se sabe, como uma revelação da vida a quem nasce e vai aprendendo.
Em muito do Estado Novo, mas também já depois, João dos Santos desenvolveu um trabalho louvável na dimensão da psicopedagogia e da pedopsiquiatria que, ainda hoje, merece ser revisto e tomado como referência. Numa fase do tempo e do espaço em que cada vez há maior atenção dirigida às minorias, sejam elas de vários carizes, voltar aos seus escritos e aos seus feitos não é de se dispensar. É na educação e na pedagogia que se preparam as sociedades presente e futura e, nesse sentido, o lisboeta preocupou-se, em especial, com a criança, com a sua aprendizagem, com o seu desenvolvimento.
Não somente munido de um olhar científico, mas encarando o mundo com doçura, com atenção, com sentido de cura e de evolução. Não somente ensinando as crianças, mas também os adultos, de médicos a professores, de assistentes sociais a pais, precisamente no aspeto de melhor ensinarem os seus petizes. A vontade de reconciliar a criança com o adulto move-o a ser tão insistente na questão da pedagogia, por mais abrangente que fosse o seu olhar. É na educação que está o preparo do que existe e do que está para vir e pede-se que essa pedagogia seja feita agora. Como referência passada, presente e futura, com trabalho e pensamento na sociedade portuguesa, João dos Santos traz o ensinar e o educar com um tão pedagógico e especial iluminar.