João Reis confirma a sua voz em ‘A Devastação do Silêncio’

por Miguel Fernandes Duarte,    19 Julho, 2018
João Reis confirma a sua voz em ‘A Devastação do Silêncio’

Ao terceiro romance, A Devastação do Silêncio, João Reis, autor e tradutor literário, troca-nos as voltas. Se no seu romance anterior, A Avó e a Neve Russa, também editado pela Elsinore, o cenário era um que seria expectável para um especialista em línguas nórdicas, neste novo livro o ambiente apresentado é, inesperadamente, um bem diferente: decorre na Primeira Guerra Mundial, e nem aí se circunscreve a lugares óbvios.

Narrado por um capitão do Corpo Expedicionário Português, A Devastação do Silêncio decorre num campo de prisioneiros alemão, onde este narrador se encontra sem as prerrogativas que a sua patente lhe proporcionaria, já que não tem os documentos que a comprovem, sendo, portanto, obrigado a manter-se entre os seus conterrâneos mais pobres e desgraçados.

No campo as condições são miseráveis, o tempo passa, a fome persiste, travam-se lutas internas entre os homens e outras tantas contra a doença e a fraqueza, tal como a fome persistem a guerra, os piolhos, as provocações, os berros, os projécteis, os aviões. Ecoa o ruído e o silêncio persiste em fugir, e tudo o que o capitão deseja é que se prolonguem os poucos segundos em que é finalmente possível ouvir o trinar dos pássaros, quando a desordem dá tréguas e traz a ilusão da simplicidade e tranquilidade.

João Reis / Fotografia de Enric Vives-Rubio

Sabemos, apesar de tudo, que o narrador sobreviveu para contar a história, já que nos relata esta história a partir de um futuro temporalmente indeterminado, onde, conversando na mesa de um café de uma estação de comboios, um amigo lhe pede que conte a história de como a sua voz foi gravada por um grupo de cientistas alemães. Mas, tal como o próprio livro de João Reis, aquilo que o narrador procura contar ao seu amigo é não apenas essa história, mas também a sua vida no campo, como, nessa constante busca pelo silêncio, o capitão se movimenta pelo campo como um moribundo veraneante, tentando de qualquer maneira vencer a sua indignidade, a humilhação, e sobretudo a fome, dificílima de suportar, e como, enquanto tenta lidar com ela e com a conversa e os ruídos incessantes que parecem rodeá-lo, vai conseguindo observar e recordar.

A ideia, no entanto, está longe de ser apenas expor e enfatizar alguns absurdos e irracionalidades vividos em situações de guerra, até porque a própria postura dos dois, no café, enquanto o capitão relata a sua história ao seu amigo, é também francamente absurda, por contraste. Acumulam-se as chávenas de chás diferentes que, por não serem bebidos, vão ficando frios, enquanto se espera o final da história e a partida de um comboio, tudo enquanto o narrador prossegue a sua história, o seu amigo ironicamente absorto numa história de tragédia e despojamento. Nem mesmo passada a guerra ganha direito ao silêncio que deseja.

De todo esse ruído constante, o que fica é, acima de tudo, uma escrita que, conquanto seja elíptica, se mantém firme e fluída. João Reis traz-nos, nas suas frases longas e intrincadas, precisamente aquilo que é necessário e não mais, não temos adornos supérfluos para uma guerra que atinge também os nossos ouvidos. Acima de tudo, nota-se o seu controlo exímio sobre a frase, a plena noção dos tempos que tem de ocupar, e, acima de tudo, o confirmar de uma voz que finalmente revela todo o seu potencial. Fica a expectativa de qual será o próximo coelho que João Reis tirará da cartola.

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