‘Kakfa à Beira-Mar’, uma metáfora do mundo por Haruki Murakami
Se há obra de Haruki Murakami que deve ser obrigatória — e não apenas pelo seu volume, que pode atingir as 600 páginas, pelo seu título cativante, ou até pela capa que desperta curiosidade e que geralmente apresenta um gato, independentemente da sua edição — é, sem dúvida, Kafka à Beira-Mar, pela força do seu conteúdo altamente cativante e enternecedor. O título pode remeter para o célebre escritor Franz Kafka, ou para uma história que o transponha para os dias de hoje, ou ainda para um enorme ensaio que nos leve ao passado do escritor e das suas obras.
Curiosamente, nada tem que ver com o autor checo ou com o próprio mar em si, o que cria um maior apetite no leitor. E, apesar de quantidade não implicar necessariamente qualidade, em Kafka à Beira-Mar esta premissa é, pelo contrário, verdadeira. Haruki Murakami tem, de facto, toda uma obra fascinante recheada de livros que o tornam num dos maiores escritores da actualidade, sendo muitas vezes falado como possível vencedor prémio máximo da literatura, o Nobel. Publicado em português pela Casa das Letras e em edição de bolso pela BIS, Kafka à Beira-Mar é um exemplo de vivacidade, de inesgotabilidade e de identidade da literatura do século XXI; um livro que tem a capacidade de agarrar o leitor, como se este fosse uma pequena limalha de ferro perante um íman potente.
O livro é baseado na história de duas personagens completamente distintas cujos caminhos, que aparentam ser paralelos, acabam por se cruzar inevitavelmente. Um jovem de 15 anos, que vive em Nakamo, Tóquio, que escolhe Kafka como seu nome falso e assim é tratado ao longo de toda a história, decide fugir de casa. O descontentamento com a sua vida actual, a relação conflituosa que tem com o seu pai e também a esperança de encontrar a sua mãe e irmã que saíram de casa quando tinha apenas 4 anos são as principais razões que o levam a tomar uma atitude de grande ousadia, sentindo-se livre, embora com algumas dúvidas quanto à essência desta liberdade. Kafka conta com um companheiro que surge quando menos se espera, um rapaz chamado corvo, uma espécie de alter-ego, um senso-comum com uma natureza julgadora que aconselha e por vezes repreende Kafka Tamura sobre as suas acções. Do outro lado, emerge a personagem Sotoru Nakata, um homem velho na casa dos 70 anos que sofre um acidente quando ainda era criança, perdendo parte das suas capacidades cognitivas, mas ganhando poderes estranhos como o de falar com os gatos ou o de prever acontecimentos surreais, uma personagem que tem tanto de mística como de afável. Os capítulos deste livro alternam entre os caminhos de Kafka e de Nakata, que inevitavelmente acabam por se cruzar.
Tudo começa com a partida de Kafka Tamura no dia do seu décimo quinto aniversário, juntamente com relatos de um episódio que ocorrera em meados dos anos 40, durante a II Grande Guerra. Trata-se do envenenamento através da ingestão de cogumelos durante um passeio de uma turma da escola primária que provocou debilitações mentais em Nakata, que era visto como um rapaz muito bem comportado e com capacidades intelectuais acima da média. Kafka parte na sua aventura para o desconhecido, abandonando a sua cidade Tóquio e partindo para a aventura, numa viagem até Takamatsu, onde encontra pelo caminho uma rapariga, Sakura, de 19 anos, com quem faz amizade e que julga ser a sua irmã. Kafka mente sobre a sua idade e diz que teve permissão da escola para fazer uma viagem de pesquisa até a uma biblioteca da região.
Entretanto, o jovem Kafka chega a Takamatsu onde encontra a tal biblioteca, e, enquanto não arranja sítio por onde ficar, permanece num hotel. É aqui que conhece Oshima, um jovem bibliotecário de 21 anos que o apoia com os livros que Kafka tanto procura, dando-lhe também um tecto onde possa dormir. Oshima tem uma cabana a poucos quilómetros da biblioteca e é aqui que passa maior parte do tempo sozinho a ler, até ter tido um terrível acidente que o deixa coberto de sangue, dando subitamente por si a vaguear pela floresta. Nakata liga a Sakura, a quem pede ajuda, permanecendo em sua casa durante essa noite, confessando que é um fugitivo.
No regresso à biblioteca, Kafka conta também a verdade a Oshima mas desta vez fica a permanecer na biblioteca, ajudando-o nas tarefas. A proprietária da Biblioteca, a senhora Saeki, uma senhora na casa dos 50 que perdeu o namorado quando tinha apenas 20 anos, e cuja sua voz doce projectou um célebre sucesso musical, ímpar na música, chamado Kafka à Beira-Mar, que justifica assim o título do livro. Oshimo evidencia a Kafka o tema que curiosamente tem o seu nome, e este ouve-o vezes sem conta, apreciando a voz tenra e doce de Saeki, que nunca mais cantara desde que perdera o seu namorado, enquanto permanece num quarto da biblioteca. Dentro do quarto há um pequeno quadro de um rapaz à beira-mar que Kafka associa ao grande amor de Saeki, que curiosamente vivera também naquele mesmo quarto.
A história de Nakata começa no mesmo espaço temporal que a de Kafka Tamura após uma série de relatos policiais e jornalísticos do episódio que deixou marcas para sempre na sua vida. Já com 70 anos, é descrito como um velho inofensivo e simpático com uma mala de tiracolo e que vagueia pelas ruas da mesma cidade de onde Kafka partiu. Nakata mantém diálogos com gatos no momento em que procura uma pequena gata, Goma, exibindo uma fotografia desta cada vez que se depara com algum.
No meio dos diálogos, dá conta que na cidade há alguém que rapta gatos de forma a matá-los e, durante a sua busca um cão, leva-o ao encontro de um tal Johnnie Walker, um indivíduo que tem um aspecto igual ao ícone da famosa marca de whisky. Johnnie Walker tem a gata que Nakata tanto procura assim como tantos outros gatos que se encontram paralisados e prontos a serem mortos. O seu objectivo é colecionar as almas dos gatos de forma a fabricar, segundo o próprio, uma flauta com estas, dizendo ainda que está farto da vida e que a única maneira de Nakata recuperar a gata que procura é matando-o. Nakata, um idoso inofensivo e sem qualquer historial de exaltação ou de violência, é alvo de uma espécie de tortura por parte de Johnnie Walker quando, diante deste, vai abrindo o peito dos gatos paralisados, comendo o seu coração que ainda palpita à medida que trauteia o “Heigh Ho”, dos sete anões da branca de neve.
Tal acto macabro, obsceno e de uma crueldade extrema faz com que Nakata aja desesperadamente e apunhale Johnnie Walker até à morte como o próprio assim deseja, recuperando a sua gata juntamente com outros gatos capturados. Nakata acaba por confessar à polícia o crime mas o agente que ouve o seu relato não acredita em tal episódio, pois acredita que se trata de um velho moribundo. Nakata despede-se da cidade, dizendo ao agente que iria chover peixes nessa noite, algo que tiraria as dúvidas em relação ao estado mental de Nakata. A verdade é que, nessa noite, chovem em Nakamo “sardinhas e cavalas”, evidenciando a improvável e absurda profecia.
A notícia de um assassinato sai nos jornais, não tratando a morte de um indivíduo chamado Johnnie Walker mas sim de outro: “Escultor Koichi Tamura esfaqueado até à morte”, a confirmação de que o pai de Kafka tinha sido assassino curiosamente nas mesmas circunstâncias e na mesma altura em que Nakata matara Johnnie Walker, sublinhando ainda que o filho do escultor teria desaparecido há cerca de dez dias. Kafka, que se tornara assim o principal suspeito, encara a notícia da morte do pai com alguma normalidade e desprezo. O pai, que lhe lançara uma maldição que seria ele a matá-lo, provocaria sentimentos antagónicos em si, um misto de sensações difíceis de digerir.
Enquanto isso vê-se mergulhado numa enorme onda de volúpia com um fantasma de Saeki, que no livro é denominado por Saeki-san, uma rapariga de quinze anos que surge durante a noite no quarto onde Kafka se encontra. O mesmo acontece posteriormente entre Kafka e a própria senhora Saeki que confrontada pelo próprio sobre a possibilidade de ser sua mãe e de o ter abandonado quando tinha 4 anos nega tal hipótese. O envolvimento entre o jovem Kafka e a Saeki é quase inevitável, havendo vários encontros amorosos em cenas algo explícitas. Com as autoridades a começarem à sua procura, as suspeitas de assassinato intensificam-se sobre Kafka embora haja quem testemunhe que não abandonara a biblioteca nos últimos dias.
Oshima regressa com Kafka à cabana de maneira a ficar protegido, confrontando-o de uma maneira algo complacente com a sua relação amorosa com Saeki, e confessando ainda da sua sensação que a própria estaria nos últimos dias de vida, apesar de não apresentar quaisquer sinais de doença ou decadência. Na cabana, Kafka tem sonhos voluptuosos com Sakura, sendo reprendido de uma maneira atroz pelo rapaz chamado corvo, “mataste o teu pai, violaste a tua mãe e agora a tua irmã.”, o que leva Kafka a abstrair-se de tudo o que tem acontecido e a sentir uma enorme vontade de se aventurar a sério no coração da floresta.
Quanto a Nakata, que parte pela primeira vez fora da cidade conhece Hoshino, um jovem camionista que lhe dá boleia. Hoshino fica estupefacto com as qualidades de Nakata enquanto ser humano, recordando-o muitas vezes o seu avô, uma figura altamente marcante na sua vida. Ficava, muitas vezes, duvidando sobre os acontecimentos relatados por Nakata ao longo da viagem como o facto de nunca ter saído do mesmo sítio, ou do seu acidente enquanto criança ou ainda de ser o assassino de Johnnie Walker, o que era altamente improvável vindo de um velhote tão simpático e inofensivo. Nakata procura “uma porta para outro mundo” e, como tal, precisa de encontrar uma “pedra da entrada” que abre essa porta partindo para a aventura com Hoshino.
No decorrer da sua caminhada, deparam-se com uma personagem que tem o físico e o mesmo nome de Colonel Sanders, o fundador da cadeia de fast-food Kentucky Fried Chicken (KFC), que se oferece para ajudar a encontrar a pedra se Hoshino se dispuser a dormir com uma das suas prostitutas. Subitamente, no quarto onde Nakata e Hoshino se encontram, a pedra que tanto procuram surge à cabeceira. Hoshino e Nakata, que também acabam por descobrir que a polícia persegue Nakata por ser o suspeito da morte do pai de Kafka, acabam também por encontrar a Biblioteca, e são recebidos por Oshima e Saeki, que fazem uma breve apresentação, havendo o evidente cruzamento dos caminhos de Kafka e Nakata.
A história ainda prossegue, sendo esta uma obra cheia de mistérios, cenas inesperadas e até mesmo surrealismo misturado com realismo, o que leva a quem leia Kafka à Beira-Mar pensar do que é que realmente se trata. Uma realidade? Um sonho? Duas histórias paralelas sem qualquer sentido que têm tanto em comum? Qual afinal o segredo para que Kafka à Beira-Mar tenha um impacto tão grande em quem o leia? Será algum tipo de magia ou especiaria japonesa que Haruki Murakami utiliza? Ou será apenas o poder das palavras e de toda uma acção apaixonante que só um grande escritor consegue impor e criar? Será que Nakata é como se fosse o espírito de Kafka ou vice-versa? E a pedra da entrada, o que simboliza? Existem inúmeras questões sobre a essência e o sentido deste livro de Murakami, cujas respostas são difíceis de encontrar ou que podem ser encontradas mas que variam de leitor para leitor. No entanto, é de salientar que este livro pode ser considerado como uma metáfora sobre o mundo em que vivemos, sendo esta umas das frases ditas por Oshimo a Kafka no desenlace da história.
Este é um livro viciante, comovente e que obriga os leitores a refletirem sobre as questões que vão surgindo no seu decorrer, muitas delas sem resposta. O poder deste livro é o de colocar o leitor em causa criando nele questões sem resposta imediata e de difícil interpretação. Provavelmente uma leitura mais aprofundada de toda obra de Murakami poderá resolver parte destas questões, podendo haver pistas noutros livros de sua autoria. Quem diria que um rapaz de 15 anos, a quem o rapaz chamado corvo descreve no final como “o rapaz de 15 anos mais forte do mundo” e um idoso que nem sequer sabia ler, escrever ou fazer contas, nos pudessem ensinar tanta coisa. Ou então que personagens que nos são familiares do nosso quotidiano pudessem entrar numa história como a de Kafka à Beira-Mar.
Se olharmos para as garrafas do whisky escocês Johnnie Walker, nunca imaginaríamos que aquele homem da cartola daria um estripador de gatos, ou que o senhor sorridente que é o ícone da cadeia de fast-food KFC daria um alcoviteiro. Murakami conseguiu colocar estes símbolos e adaptá-los numa história que, apesar de tudo, não apresenta nenhum vilão, nem mesmo o próprio Johnnie Walker, que admite ser quase forçado a matar gatos e que a única coisa que queria era mesmo morrer. Haruki Murakami mostra que, através de personagens simples e de elementos banais, se pode construir uma grande livro, e só um grande escritor consegue fazê-lo.
Não é de espantar que o seu nome esteja sempre ligado ao Nobel da Literatura desde alguns anos para cá. Independentemente disso, não é um Nobel que dá poder aos escritores de escrever livros que consigam agarrar os leitores e que, por conseguinte, os viciem e os hipnotizem durante a leitura. É um dom único que só grandes escritores possuem e que consegue ser muito maior do que um Nobel ou qualquer prémio literário, dom esse que é provavelmente o maior prémio que qualquer escritor do mundo ambiciona.