Kamasi Washington no Hard Club: o céu e a terra não são suficientes para este músico
Apoteose. É o que parece chegar para descrever o que aconteceu na sala principal do Hard Club, na sexta-feira à noite, a quem não lá entrou; quem de lá saiu, umas horas depois, com os olhos esbugalhados e um sorriso indomável no rosto, não parecia ter capacidade para descrições. O que é que aconteceu mesmo lá dentro? Kamasi Washington. Ele, o seu saxofone – santíssima dualidade – e os seus doze apóstolos do jazz: Ryan Porter e o trombone, Miles Mosley e o contrabaixo, Brandon Coleman e o teclado, Tony Austin, Robert Miller e as respectivas baterias e Rickey Washington, o “pops”, ora com o clarinete ou com a flauta transversal.
A segunda vinda do nome mais sonante do jazz contemporâneo a Portugal e da sua big band foi esperada com impaciência, mas, mal Kamasi pisa o palco, avisa: “Não vos farei esperar mais”. Está prestes a começar a viagem entre o céu e a terra a bordo de Heaven and Earth, o segundo trabalho de Kamasi, com quase duas horas e meia de genialidade. Apesar do atraso inicial, quando arranca sem grandes rodeios o flow hipnotizante de “Street Fighter Mas”, percebemos logo que não há noção de tempo aqui; cada linha de saxofone, cada alongamento nas teclas, cada dedilhado sobre-humano no contrabaixo duram o que for preciso para a pele se arrepiar. E continuam bem depois disso.
Escapa à compreensão racional como um concerto com tão poucas palavras fala tanto a quem o assiste. É o próprio Kamasi que, depois de descer do palco – e nós dos céus – nos fala da língua universal que é a música: “o som é uma coisa muito importante para mim. É o único sentido que não consegues desligar: podes fechar os olhos, podes fechar a boca, podes fechar o nariz, mas se tentares tapar os ouvidos ainda consegues ouvir. É por isso que a música é uma actividade tão humana: podes conhecer alguém que só gosta de um tipo de música ou de outro, mas toda a gente gosta de música. Ela toca as pessoas. Eu viajo muito e às vezes conheço uma pessoa e não conseguimos falar um com o outro – como a tal rapariga do Brasil, ela não falava inglês e eu não falava português – mas estávamos a tocar um para o outro e ela estava a falar com a Lua… A música liga mesmo as pessoas”.
A conversa sem palavras entre Kamasi e “a tal rapariga do Brasil” foi eternizada em “Vi Lua Vi Sol”, elevada pela voz sintetizada de Brandon Coleman e partilhada com todos os que inconscientemente abriam o corpo e a alma àquela melodia, que cruza jazz com samba com o som etéreo que faz parecer que estamos a falar com a Lua.
Somos levados pelos ouvidos por um caminho único que Kamasi Washington trilha a saxofone por cima de uma construção de jazz tão completa de si. Esta big band é a expressão máxima da cumplicidade rítmica e melódica: completam-se telepaticamente sem se anular, permitindo-se múltiplos desvios a solo numa só composição que nunca perde a solidez. Não se espera menos de cinco amigos que tocam sob o mítico nome de West Coast Get Down há anos a fio, mas é difícil não se ficar boquiaberto.
É essa a expressão do público enquanto se rende ao feitiço musical; os seus músculos acompanham cada mudança repentina mas natural de ritmo e, quando ele eventualmente desvanece, só arranjam energia para bater uma palma da mão na outra, esperando com ânsia que haja mais (o que vamos sequer fazer depois de este concerto acabar? Descer à terra?). Há mais, pois cada faixa se estica além da já longa versão gravada, o que faz com que o segundo tema do alinhamento ainda dure a meia hora do início do concerto.
Para a terceira odisseia musical da noite, Kamasi chama ao palco “o homem que lhe ensinou tudo o que sabe”: o pai, Rickey. Na conversa pós-concerto, o músico brinca que viajar pelo mundo com o pai não o permite fazer asneiras. Rickey Washignton vem complementar a explosão energética de “Abraham”, tema do álbum de consolidação de Miles Mosley – ou “o melhor baixista que conheço”, segundo Kamasi – que põe todos os pares de olhos na sala no seu contrabaixo, num solo estrondoso que combate com a voz. No palco de Kamasi todos têm a sua vez para brilhar, e não precisam de pedir – pelo contrário.
O saxofonista parece ter herdado a humildade do pai: os dois quase saem do palco durante os solos da restante formação, baloiçando inconscientemente para longe do lugar que os holofotes lhes marcam, bem no centro do palco. É uma humildade natural, motivada pela música: Kamasi podia bem estar na audiência connosco, nestes momentos em que observa os amigos com a mesma felicidade com que sopra no seu saxofone. É portanto fácil, embora ainda incrédulo, pensar na banda a conviver cá fora com quem os admirava lá dentro, como se todos nos conhecêssemos há anos.
Seja a tocar ou a ouvir, é sempre na música que Kamasi Washington é ele próprio: “a música vem das experiências de cada um e do que cada um é, portanto eu tento só ser fiel a isso, tentar que o que sou venha cá para fora – algo que é mais fácil dizer que fazer, às vezes. Mas quem tu és muda sempre que conheces alguém novo; sempre que passas por uma nova experiência mudas um bocadinho – ou muito“. O público é capaz de o subscrever, com base na experiência por que passaram lá dentro.
Ainda cá dentro, o momento mais verdadeiramente profundo da noite vem com a introdução de Kamasi a “Truth”, o único salto na sua discografia que faz a partir de Heaven and Earth. Num silêncio atento, ouvimos as frases “we don’t have to look, dress, be the same to love each other” compassadas a um doce “te amo” português. Depois, Kamasi continua o discurso mas em forma musical, pois não é só com palavras que ele comunica.
Os remoinhos projetados no palco são uma tradução visual do som que se embrulha em nós: entramos num turbilhão infindável de cinco melodias diferentes que se prendem aos ouvidos; a complexa “Truth” é uma ode à nossa invidualidade única. Nas palavras de Kamasi:
“a diversidade não é algo para ser tolerado, é algo para ser celebrado”
Todos somos diferentes mas todos ficamos especados da mesma forma a ouvir o saxofone indomável. As diferenças de cada um são simultaneamente elevadas e postas de parte durante esta sinfonia da diversidade. Os sentimentos são também diversos, mas podem resumir-se a dois que Kamasi nomeia querer passar com a sua música: “liberdade e conexão – parecem opostos mas não o são necessariamente“.
Agora é a vez de “os bateristas falarem com os instrumentos”, anuncia Kamasi. Tony “OG” Austin e Robert Miller (aka Boom Bap) começam uma conversa inteligível a quatro baquetas. Fechando os olhos, é impossível isolar as batidas síncronas: Tony é o braço esquerdo e Robby o direito de um só corpo maníaco por ritmo. A batida não nos deixa esquecer que o jazz de Kamasi e companhia não larga as raízes do hip hop da costa oeste.
“Este é para um grupo de pessoas que é muitas vezes mal compreendido: os sonhadores”. Voltamos a Heaven and Earth com a sonhadora “Space Travellers Lullaby”, que deixa ainda mais espaço para as teclas de Coleman brilharem. Uma explosão de sopro arrebata-nos os ouvidos, mas logo desliza do grande crescendo para uma respiração vertiginosa (amparada apenas pelo leve contrabaixo de Mosley) com a mesma suavidade da grande veste de veludo preto que Kamasi usa com imponência despretensiosa.
É também sem pretensões, certamente, que nos enumera os clássicos nomes do jazz que influenciaram a sua linguagem musical – Art Blakey, Wayne Shorter, Miles Davis, Charlie Parker, John Coltrane, McCoy Tyner, Joe Henderson – quando o seu próprio nome vai ficar na história da música contemporânea pela homenagem que lhes faz sempre que pega no saxofone. Causa suspiros de pena quando o faz pela última vez neste palco do Porto para entoar a entrada de marcha forte de “Fists of Fury”, que segue a norma da noite e logo se derrete numa derradeira jam entre os sete músicos.
No final declarado por palmas e woos, a promessa: “Porto, nós voltaremos”. Como Kamasi dirá dali a pouco, já sentado e refrescado, entre admiradores que trata como amigos de longa data: “a música é como uma corrente: tens uma e ela liga-te a outra”. Tivemos uma e já queremos outra.
Pelo tempo que medimos nos relógios, cada acto desta grande saga estendeu-se por bem mais que dez voltas do ponteiro. E nas nossas cabeças conquistadas pela música, este concerto foi uma viagem aos sete círculos do céu.