Kamasi Washington no Lisboa ao Vivo: a excelência tornada música
No passado dia 11 de Maio, a música de calibre veio à capital pela mão do virtuoso Kamasi Washington, saxofonista dotado e um dos mais interessantes porta-estandartes do jazz moderno. O Lisboa ao Vivo (LAV) recebeu a apresentação de Heaven and Earth, o mais recente álbum do músico, composta por temas e texturas sónicas que embalaram uma multidão muito bem composta, arrebatada pelo poderio musical de Washington e da sua banda. Acompanhado por dois bateristas (Tony Austin e Robert Miller), uma cantora (Patrice Quinn), um teclista (Brandon Coleman), um trombonista (Ryan Porter) e um baixista (Miles Mosley), o saxofonista proporcionou uma noite de jazz prodigioso que ficará na memória de todos aqueles que testemunharam o furacão musical que é o saxofonista.
Pouco tempo depois da hora combinada, o silêncio instaurou-se na sala antes da música de fundo voltar mais forte pela mão de soul energético que preparava o público para o que se avizinhava. Washington e companhia entraram na sala, com o líder da banda a envergar vestes largas e arejadas que infelizmente não afastaram a noite calorosa que se sentia no LAV. Mas pairava uma leviandade no ar, orquestrada primeiramente por “Show Us the Way”, a música que iniciou o espectáculo. A maneira como os músicos deslizaram pelo tema mostrou um profissionalismo invejável. Ouvimos um solo frenético de teclas adornado por um sorriso de orelha a orelha de Brandon Coleman, seguido de um turbilhão de notas sopradas a alta velocidade, cortesia do líder da banda.
Ao longo do espectáculo, Washington manteve-se estóico, qual maestro de um swing improvisado e ao mesmo tempo minuciosamente calculista. “Connections” prosseguiu a apresentação de Heaven and Earth ao público, e depois de um longo momento de solo dividido entre saxofone e trombone, aterrou suavemente antes de explodir outra vez com grande pujança. Todos os músicos estavam em sintonia, unidos sob a liderança de Washington, cada um mestre do seu instrumento, usando essa destreza para proporcionar um espectáculo harmonioso e absolutamente deslumbrante.
Washington deu espaço aos músicos que embarcaram com ele – e connosco – naquela viagem para serem eles mesmos, enquanto percorria a sua discografia. “The Rhythm Changes” transportou-nos de volta para o seu primeiro álbum por uma editora major, o grandioso The Epic, e trouxe também ao palco o seu pai, Rickey Washington. Sem tempo a perder, Rickey Washington mostrou que a música está nos genes da família, com um solo tresloucado de clarinete que foi assobiado com entusiasmo pelo público. Miles Mosley elevou ainda mais a fasquia, disparando notas no contrabaixo de forma imparável, num jogo de forças com Coleman nas teclas, perguntas e respostas com semínimas e colcheias no lugar de interrogações e esclarecimentos. Depois de toda a turbulência harmoniosa, as luzes escureceram, e esparsos raios iluminaram Kamasi Washington – todos se calaram para o ouvir cantar as bonitas e profundas notas no seu saxofone tenor.
A mestria é inegável mas mais do que excelentemente orquestrada, a música de Kamasi transpõe as suas notas e produz algo que é mais do que as somas das suas brilhantes partes. Por vezes, a mensagem é mais profunda que jazz de alto gabarito, como no caso de “Truth”, que trouxe o seu bonito EP Harmony of Difference para a actuação, e trouxe também uma mensagem de união e harmonia, uma celebração da diversidade que nos une a todos. Essa mensagem positiva foi espelhada fielmente pela música: ouvimos uma confluência de melodias diferentes, mas nunca sentimos que alguma estivesse fora da sintonia – tudo estava no sítio certo e tudo era diferente. Nas últimas notas, Washington apelou à acção entre todos ao soprar as últimas notas com um punho fechado no ar. Quem diz que a revolução social não pode ter groove?
Depois de um dos momentos mais inspiracionais do espectáculo, seguiu-se o momento mais acústico, patrocinado pelos dois bateristas de serviço, apresentados por Washington: “Se ainda não conseguiram perceber, eu gosto muito de bateria. Eu tocava bateria, quando tinha três anos, e ainda toco, quando ninguém está a olhar. Felizmente tenho a oportunidade de tocar com dois dos melhores bateristas do mundo. E agora vamos deixar-vos com um momento de conversa entre eles, ‘Bobby and Tony’s Day Off’”. O que se seguiu foi um espectáculo só por si, uma demonstração muscular de dois exímios intérpretes que conhecem cada bombo, tarola e prato do seu instrumento tão bem como mantêm o tempo. Os outros músicos sentaram-se e ao seu lado Kamasi observava, deliciado com um ou outro pormenor, completamente rendido ao talento dos seus colegas. A conversa assemelhou-se a uma competição mas no final os vencedores foram o público, que testemunharam dois bateristas no topo da sua forma.
“A próxima música é uma óptima música. Mas ninguém consegue perceber em que tempo está. Para todos os músicos aqui presentes, se conseguirem perceber eu prometo-vos um grande abraço e pago-vos uma cerveja”, foi assim que Kamasi Washington introduziu “The Psalmnist”, escrita por Ryan Porter, e se o funk dançável do tema não chegou para denotar o génio do músico, o seu solo de trombone consagrou-o definitivamente aos olhos da multidão. Brandon Coleman decidiu igualar a intensidade percorrendo a vasta panóplia de teclados que o rodeavam, e vimo-lo decidir em tempo real qual é que seria o próximo sintetizador que ia abençoar com a sua magia, sendo que nunca desapontou.
“Fists of Fury” terminou o espectáculo planeado e foi onde Washington se mostrou verdadeiramente como a força musical avassaladora que é de cada vez que sopra notas. É um deleite ouvi-lo, seja a disparar com critério ou de forma mais casual. Foi também onde ouvimos mais Patrice Quinn: a cantora manteve-se energética ao longo de toda a actuação, a dançar ao som dos temas e a acompanhar com a sua bonita voz as melodias dos colegas, dando poderio vocal e assemelhando-se mais a um coro do que a uma só pessoa. Mas no último momento do set Quinn mostrou-se verdadeiramente presente, a repetir o mantra da música com crescente intensidade, de mão no ar: “Our time as victims is over/ We will no longer ask for justice/ Instead we will take our retribution”. Mais uma mensagem potente que foi celebrada pelo público de forma expressiva.
Depois de uma pequena pausa, seguiu-se um encore “exigido” religiosamente pela multidão que ali estava – encantado com a prestação dos músicos – e “Street Fighter Mas” encerrou definitivamente a actuação, espelhando a energia que nunca deixou de se sentir ao longo da mesma. É algo caricato pensar que em mais de duas horas de concerto se ouviram “apenas” sete músicas. Mas é essa a maravilha do jazz: um tema nunca é o mesmo tema, há uma variação aqui, uma nota mais prolongada acolá e de repente há uma riqueza sonora que dificilmente será replicada mas facilmente será apreciada. Naquela noite calorenta, não foram só os inícios de um Verão prematuro que aqueceram o espaço. Foi o fogo do jazz, a chama da improvisação, as labaredas sonoras de uma banda e do seu líder, que nos arrebataram a todos com a sua excelência tornada música.