Kelsey Lu e Angélica Salvi ao vivo: a exploração de diferentes lados do etéreo
A terceira sessão das Jameson Urban Routes, no Musicbox, em Lisboa, foi marcadamente diferente da sua abertura. Foi uma noite de música mais etérea, mas não se cingiu apenas a esse espectro. Kelsey Lu regressou a Portugal na senda do lançamento do seu primeiro disco, Blood, que faz uma mistura inusitada do minimalismo hipnótico que infundia o seu primeiro EP Church com devaneios mais pop, cortesia de produtores reputados como Skrillex e Jamie xx. Antes disso, a harpista Angélica Salvi abriu a noite com a apresentação do seu álbum de estreia, Phantone.
Uma harpa e uns pedais: foi aquilo de que Angélica precisou para embevecer o público. As melodias delicadas da harpa sobrepunham-se – a certa altura, já nem sabíamos o que estava a ser tocado no momento ou não – num som sem dúvida impressionante. Assim, em silêncio, esperávamos enquanto as canções passavam de apontamentos suaves a monumentos melódicos envoltos numa cortina de fumo, cortesia de uma bela produção de palco. “Sinople” foi uma boa porta de entrada para esta forma de fazer música, tornando-se especialmente bela quando os arpeggios contrastavam com as notas graves que conferiam consistência à canção. Por esta altura, lembramo-nos de Filho da Mãe, cuja música é também cheia de camadas como estas, mas feita com outro instrumento de cordas: a guitarra.
À medida que o concerto ia avançando, as canções tornavam-se mais e mais etéreas, numa forma diferente de tocar harpa. Um pedal de eco engrandecia algumas das canções, que se tornavam quase fantasmagóricas, evocando o título do álbum. No final, “Indigo” lembrou-nos de Arca (principalmente na canção “Gratitud”), pela forma como as notas intensas, saídas da harpa quando tocada como uma guitarra, se amontoavam como chicotadas. O concerto foi bastante aplaudido, o que deixou a artista notoriamente satisfeita. Esperemos que a posterior actuação fogosa de Kelsey Lu não tenha apagado o belíssimo concerto de Angélica Salvi da memória do público presente.
Nos concertos de Kelsey Lu, as coisas acontecem muito ao seu ritmo. A forma lânguida como carregava o seu violoncelo, as suas intervenções quase sussurradas, a cerimónia com que as diferentes faixas vão surgindo; tudo isso é um reflexo da personalidade colorida de Kelsey – e talvez um pouco do seu estado de ebriedade, também. O início do concerto é, à semelhança da música de Angélica Salvi, feito de uma sobreposição de camadas. Aqui, essas vêm do violoncelo, usado para criar a atmosfera sufocante de “Dreams”. Vestida como uma ninfa do final dos anos 90 (com um fato “roubado a Naomi Campbell”, segundo a artista), a sua postura era quase a de uma criatura mítica, com uma voz que fazia jus a esta descrição.
A introdução feita com um par de canções do EP Church foi um preâmbulo para a exploração de Blood. Quando Kelsey refere o álbum, o público uiva de prazer – claramente foi bem recebido por estas bandas. A verdade é que é um álbum encantatório, misturando uma sensibilidade tranquila com uma boa dose de autoconfiança e atrevimento. Nas palavras de Kelsey Lu, proferidas no seu mítico concerto no NOS Primavera Sound em 2018: “como podem ver, a minha música não é linear”. Muita razão tem ela, e ainda bem. A dificuldade na sua definição torna-a numa artista essencial aos dias de hoje, em que as barreiras se dissipam e a música se torna cada vez mais fluida. Aliás, ainda nos faz confusão a sua falta de reconhecimento e o facto do Musicbox não ter estado completamente apinhado para a ver. Tornou-se numa experiência mais especial, é certo, mas a artista realmente já merece mais.
Apesar das suas capacidades de multi-instrumentista, o concerto acaba por tender mais para um espectáculo pop, com as faixas a surgirem dos pedais e computador que a artista tem em palco. O violoncelo inicial é abandonado, com a guitarra a surgir pontualmente, destacada em “Shades of Blue”, uma das suas canções mais belas – que deverá viver para sempre naquele vazio de canções sem álbum, um statement por si só. De resto, Kelsey fica satisfeita em exercitar a sua voz fenomenal e a servir umas doses de fabulousness – “yas, girl!” faz-se ouvir algumas vezes, vindo do público. Depois de algumas das canções mais reconhecidas, temos direito a algumas “surpresas”, com remixes das mesmas, durante as quais Kelsey canalizava vibes de “Survivor” ou outros estandartes de canções pop.
“Foreign Car” fez vibrar as paredes do Musicbox com o seu baixo potente, e o público vibrou também com o ambiente noir urbano que a música emana, repetindo o refrão como um hino (“Metal, metal, metal, metal / Pedal to the metal, make you work”). “Due West” é a sua música mais pop, infecciosa como as melhores canções pop sabem ser, com um refrão que cativa pela sua representação daquele lugar mágico: a Califórnia, onde todos já fomos, mesmo que nunca lá tenhamos estado fisicamente. “Poor Fake” põe toda a gente a dançar, mas a um ritmo diferente: o da disco. Mas o ápice é a parte spoken word em que Kelsey veste a pele de uma curadora de arte, que exclama sobre o quadro “mais refinado que havia visto”: “could this be… a forgery?!”, prolongando a sílaba final, saboreando-a e deleitando-se com a sua própria absurdez. É verdadeiramente gloriosa a forma como a sua própria música a faz sentir tanto, o que acaba por passar para o público também.
O público põe-se em sentido para a cover dos 10cc, “I’m Not in Love”, cuja versão é a sua música mais ouvida. A batida esparsa é elevada pela voz e pela performance teatral, num momento admirável. Um encore é, mais que pedido, exigido. Para tal, acabamos com “Too Much” – uma pequena canção sobre dar demais numa relação, um sentimento que muitos já terão sentido –, em mais um momento de conexão com um público atento, que partilha entre si, para além do sangue a correr pelas veias e alguns sentimentos comuns, uma admiração por esta artista que irá fazer muitas mais coisas formidáveis. Não digam que não vos avisámos.