Linus Pauling: a ciência em prol da humanidade
Quando alguém fala ou tenta descrever um cientista, surge, no imaginário de cada um de nós (ou em grande parte do imaginário comum), uma figura excêntrica e altamente fascinada pela descoberta e pelo modo como consegue ser tão hábil ao desvendar os segredos e as complexidades do mundo da ciência. Possivelmente vemos nessa mesma figura, dada a sua excentricidade, alguém desligado da realidade ou daquilo que se passa fora das quatro paredes do seu laboratório, facto esse que grande parte das vezes não é verdade. Os cientistas gostam de se interessar pelas coisas mais banais de um mundo em constante mudança, sendo esta uma condição que é cada vez mais evidente nesta profissão. Haver a possibilidade de conjugar ciência com uma enorme porção da condição humana é algo possível e que, nos dias de hoje, é cada vez mais necessário.
A ética e os princípios humanísticos são vertentes que têm de continuar a ser incutidas nos cursos de ciência, pois só assim é que esta continuará a ser feita de modo responsável tendo em conta o presente e as gerações que farão parte do futuro. Foram muitos os cientistas que, ao longo de toda a história da ciência, dadas as suas qualidades humanas tornaram-se, também, em activistas. A luta contra o desarmamento nuclear, por exemplo, após o lançamento de duas bombas atómicas sob as cidades de Hiroxima e Nagasaki no Japão, foi algo que moveu uma luta por parte, não só na sociedade, mas também diversos cientistas.
Se precisássemos de encontrar um único cientista que tivesse conseguido a proeza de ter sido um dos maiores nomes da ciência, mas também uma das maiores vozes no que toca ao pacifismo na ciência, esse cientista seria, sem dúvida, Linus Pauling, cujas enormes qualidades multifacetadas na química valeram-se o prémio Nobel da Química em 1954, dado o seu contributo no estudo da natureza das ligações químicas, e, mais tarde, o prémio Nobel da Paz em 1962, dada a sua luta no combate ao desarmamento nuclear. Em mais de um século de história do Prémio Nobel, existem outros três laureados com o Nobel por duas vezes: Marie Curie (Física em 1903 e Química em 1911), John Bardeen (Física em 1956 e em 1972) e Frederick Sanger (Química em 1958 e em1980). De todos estes, Linus Pauling foi um único que foi laureado das duas vezes sem a partilha do prémio, o que não o torna maior ou mais genial do que os restantes, mas sim um caso único na história da ciência do século XX.
Num ano em que se assinalam os 150 da primeira versão da tabela periódica dos elementos químicos e o centenário da IUPAC (International Union of Pure and Applied Chemistry), falar de Linus Pauling é um óptimo motivo para relembrar, mais do que um ilustre químico multifacetado e com um espírito de humanismo que poucos possuem, o modo como a ciência e a humanidade se podem conjugar de uma maneira simples e espontânea como dois líquidos altamente miscíveis ou como dois átomos que juntos formam uma molécula altamente estável.
Linus Pauling nasceu a 28 de Fevereiro de 1901 no seio de uma família de origem alemã, sendo o primeiro filho de Henry e Lucy Pauling que mais tarde, já com duas filhas mais novas, se mudam para Oregon. Quando tinha apenas 9 anos, o seu pai, na altura farmacêutico de renome, acabaria por falecer vítima de uma úlcera no estômago, ficando Linus juntamente com as duas irmãs mais novas aos cuidados da mãe. Desde muito cedo que mostrou um enorme fascínio pela leitura e pela ciência, em especial pela química: durante a sua juventude, construiu um pequeno laboratório juntamente com um seu amigo seu, onde realizou as suas primeiras experiências, numa altura em que os seus interesses pela química começam a ser cada vez mais evidentes. Em 1917, Pauling ingressou na Oregon State University para estudar engenharia química onde, inicialmente, arranjou diversos trabalhos para ajudar a família e pagar os seus estudos. Já quase no final do curso, Pauling estudou o conhecido trabalho de Gilbert Newton Lewis e Irving Langmuir sobre a configuração electrónica dos átomos, assim como a forma como estes se interligavam e formavam moléculas através de ligações químicas.
É nesse momento que decide prosseguir com uma carreira de investigação, concentrando-se na compreensão da relação da estrutura atómica da matéria e das suas propriedades físicas e químicas, o que o levaria a tornar-se num dos pioneiros da química quântica, numa altura em que a mecânica quântica estava a ter um impacto gigantesco no modo como se poderiam interpretar fenómenos à escala atómica. Parte mais tarde para a Califórnia e ingressa no California Institute of Technology, onde conclui o seu doutoramento em química física com base no estudo de técnicas de difracção de raio-x para determinação da estrutura molecular de compostos. Viaja para a Europa, onde percorre vários países ao trabalhar com nomes sonantes da ciência, como Arnold Sommerfeld, Niels Bohr e Edwin Schrodinger, tendo estes dois últimos ganho o Prémio Nobel da Física em 1922 e 1933, respectivamente. Regressa novamente aos Estados Unidos com uma enorme bagagem científica tornando-se professor em Caltech. É nesta altura que Linus Pauling inicia um trabalho de investigação a fundo sobre as questões da electronegatividade, construindo uma escala com os elementos químicos da tabela periódica que ajudasse a entender este conceito.
Para além disso, formulou, no que toca à distribuição electrónica nas orbitais dos átomos, o chamado Diagrama de Pauling (que resulta da aplicação do Princípio de Aufbau), sendo este um dos conceitos mais importantes e um dos alicerces da química contemporânea, que permite, ainda hoje, ter uma noção ampla de como os electrões se distribuem em cada orbital. Dado os seus conhecimentos profundos de mecânica quântica, aventura-se a explorar a natureza das ligações químicas, criando o conceito de hibridação, um dos conceitos mais bem conhecidos da química, com grande exemplo para as ligações do carbono nas moléculas, sendo este um dos grandes alicerces da própria química orgânica. Publica The Nature of the Chemical Bond, em 1939, sendo considerado, ainda hoje, como um dos mais importantes trabalhos da química contemporânea. Todos estes feitos levaram a que a Academia Sueca lhe atribuísse o Prémio Nobel de Química em 1954, pelas suas investigações sobre a natureza das ligações químicas e na determinação da estrutura de substâncias complexas.
Numa altura em que os seus trabalhos na investigação prosseguiam, e ainda antes de ter ganho o Nobel da Química, Pauling foi convidado pelo seu amigo Robert Oppenheimer a ingressar na secção de química do Projecto Manhattan, um projecto que visava explorar os testes nucleares e as suas eventuais potencialidades. A possibilidade da Alemanha Nazi estar com grandes avanços no desenvolvimento da bomba atómica, durante a II Grande Guerra, faria com que os Estados Unidos apostassem fortemente nas investigações que permitissem a sua execução. Dadas as suas convicções enquanto pacifista, e tendo em conta o risco que o projecto viria a ter perante o mundo, caso este não fosse conduzido da melhor maneira, Linus Pauling rejeitou o convite, tornando-se uma das vozes mais críticas no uso de armas nucleares. O resultado verificou-se mais tarde, em 1945, quando as duas bombas atómicas arrasaram com as cidades de Hiroxima e Nagasaki no Japão.
Linus Pauling fora uma das vozes mais sonantes no combate ao desarmamento nuclear, tendo feito parte do Comité de Emergência de Ciências Atómicas (do qual Albert Einstein era presidente), conseguindo ganhar uma entidade de cientista humanista como nunca antes nenhum outro teria conseguido. Durante a década de 1950, Linus Pauling e a sua esposa Ava Helen conseguiram reunir assinaturas de mais de onze mil cientistas, apelando às Nações Unidas para que fossem banidos os ensaios nucleares. Tais feitos nessa luta pela pacificação foram mais do que suficientes para que lhe fosse atribuído o Prémio Nobel da Paz em 1962, tornando-se assim o único vencedor de dois Prémios Nobel sem ser compartilhado com outro laureado. No ano seguinte, Linus Pauling consegue aquilo que tanto ambicionou: a assinatura de um tratado de proibição de testes nucleares à superfície entre Estados Unidos, União Soviética e Grã-Bretanha, algo que seria ainda o princípio dos progressos no desarmamento nuclear.
As suas qualidades enquanto cientista permitiram ainda que desenvolvesse trabalhos na descoberta do DNA, quando desenvolveu uma enorme parecia com biólogos em Caltech, ainda nos anos 30. Pauling chegou mesmo a competir, indirectamente, com Francis Crick e James Watson nessa descoberta, ao propor a hélice-alfa através do estudo da estrutura das proteínas pela difracção de raio X e pelos seus estudos teóricos com base em pressupostos da química quântica. Dadas as suas posições a nível político, o passaporte foi-lhe confiscado durante esta altura. Na opinião de alguns historiadores da ciência, tal facto impediu Linus Pauling de progredir nas suas investigações na estrutura do DNA, o que lhe poderia valer-lhe um terceiro prémio Nobel (da Fisiologia, que fora ganho por Crick e Watson em 1953), um feito que enalteceria por completo as suas vertentes enquanto cientista e ainda mais as suas qualidades únicas enquanto ser humano.
Depois desta era intensa, Linus Pauling ainda se dedicou a outros estudos, como a aplicação das energias alternativas face à poluição, que atingiria proporções gigantescas durante a segunda metade do século. Fê-lo ao explorar as aplicações dessas mesmas energias na execução de protótipos de automóveis movidos a partir de energia eléctrica, que poderiam ter um impacto considerável no futuro, e que, curiosamente, é algo que se encontra em crescimento nos dias de hoje. Investigou, ainda, as propriedades enzimáticas no corpo humano e na actividade cerebral, em especial para o estudo do efeito de doses elevadas de ácido ascórbico (vitamina C) em doentes com cancro em fase terminal, estudos esses que causaram grande controvérsia e foram, pela comunidade científica, considerados, até mesmo, “falsa ciência”, apesar de terem despertado o interesse de alguns cientistas. Provavelmente, esta foi a vertente que manchou o seu invejável currículo científico, cujos resultados foram sempre encarados como casos típicos do chamado efeito placebo. Contudo, e apesar deste deslize, Linus Pauling demonstrou sempre uma enorme motivação em fazer ciência, conseguindo também tirar proveito ao máximo das suas enormes qualidades humanas ao longo da sua vida.
A 19 de Agosto de 1994, Linus Pauling acaba por perder a batalha contra um cancro, partindo com 93 anos repletos de aventuras, descobertas, lutas e acima de tudo um enorme espírito humanista que ainda o hoje o torna eterno no mundo da ciência. Para além de ter deixado quatro filhos e treze netos, deixou também um legado muito importante para a ciência, sendo um exemplo máximo de que é possível ser-se multifacetado e ter um interesse por um pouco de tudo. De igual modo, deixou o exemplo para o ser humano comum, que procura, no seu dia-a-dia e na sua profissão, dar um pouco do seu contributo para uma sociedade que necessita, cada vez mais, do espírito verdadeiro da condição humana.
Num ano em que se assinalam os 26 anos da sua morte, e 119 anos do seu nascimento (curiosamente tantos anos como o número de elementos presentes na tabela periódica), Linus Pauling continua a ser uma figura altamente marcante na química, na ciência, e, sobretudo, uma referência para humanidade que testemunhou os nossos poderes de auto destruição. Hoje, os métodos científicos e o acesso à informação são outros, a ciência terá aprendido com os erros do passado e precisa de estar atenta aos erros que poderá cometer, eventualmente, no futuro. Se há vertente mais bela que a ciência possui, está nas pessoas, que lhe dão um pouco de si todos os dias, de forma a embelezar um mundo que não seria o mesmo sem o progresso científico. O espírito humanístico é uma dessas vertentes e, hoje, a ciência tem mais cor, mais poesia e mais humanidade graças a cientistas que tiveram a proeza de dar tanto de si e do seu humanismo como Linus Pauling o tivera.