Luedji Luna e Marina Sena mostraram as várias facetas do Brasil no Ageas Cool Jazz
Já perto do final de Julho, o Ageas Cool Jazz regressou ao Parque Marechal Carmona e ao Hipódromo Manuel Possolo, em Cascais, para uma noite maioritariamente dedicada à música brasileira, com o destaque partilhado pela baiana Luedji Luna e pela mineira Marina Sena. A aposta no Brasil é certamente inspirada na grande afluência de imigrantes brasileiros em Portugal, que acorreram em força ao festival para celebrar dois dos maiores talentos em ascensão do país.
Antes das atrações principais da noite, o festival começou no palco Cascais Jazz Sessions, localizado no anfiteatro do parque, com a banda lisboeta Samalandra. Débora King (teclas e voz), Tiago Martins (baixo e samples) e João Neves (bateria) navegaram por um jazz progressivo e com laivos espaciais, que vai beber também à fonte do hip hop, ocasionalmente lembrando-nos de uma das referências contemporâneas nessa miscelânea de estilos: os BADBADNOTGOOD. A música oscila entre o desafiante e o puramente agradável, com tempos brincalhões que nos mantêm em suspenso na sua imprevisibilidade e outros momentos mais plácidos, perfeitamente adequados à lindíssima e verdejante envolvente natural do parque. Canções como a inédita “Nawi” (o nome do animal de estimação que inspirou o nome da banda) ou “Grafititi” pintaram o cenário de um jazz interessante e moderno, que merecerá a devida atenção nos próximos tempos.
Entretanto, para algo mais ancorado no jazz clássico, Luedji Luna apresentou a sua MPB com ginga e uma postura mais que comparável às grandes do jazz vocal, como Nina Simone — que teve direito a uma homenagem por parte de Luedji, sob forma de “Ain’t Got No”, versão que incluiu em Bom Mesmo é Estar Debaixo d’Água, disco lançado em 2020. O seu vestido prateado brilhou, mas não mais que a sua personalidade carismática. De voz tranquilizadora e aveludada, Luedji estava sempre pronta para celebrar os seus grandes feitos, sem falsas modéstias e com um amor-próprio refrescante.
Esse amor-próprio reflecte-se numa celebração inerente da negritude, muitas vezes presente na sua música, ao fazer-se acompanhar de duas impecáveis cantoras de apoio com penteados afro como o seu e celebrar Chaka Khan (“uma inspiração”) e Dino d’Santiago, artistas que passaram pelo mesmo palco meras semanas antes, também neste Cool Jazz. Só foi pena Dino não ter subido ao palco com Luedji para, em conjunto, apresentarem a canção que partilham: “Oh Bahia”, lançada há três meses.
As suas canções regem-se quase sempre pelo tema do amor, aquilo de “que precisamos”, diz-nos logo após a romântica “Enquanto Durmo” e antes de se atirar a uma versão de “Pétala”, composição do “grande professor sobre o tema do amor”, Djavan. Desde o início que as suas canções tratam esse tema, como nos conta ao apresentar a primeira canção que alguma vez escreveu, aos 17 anos, após o seu primeiro beijo, evento marcante esse que, nas suas próprias palavras, a mobilizou muito. Essa canção é “Pele”, que incluiu na versão deluxe de Bom Mesmo…, lançada em 2022 e que mostrou ao público versões trabalhadas de músicas com muita história para a artista.
Já perto do final, o seu maior êxito, “Banho de Folhas”, é tocado numa versão funky digna do Baile Charme, festa carioca onde se toca música negra e se dançam os “passinhos” sincronizados. O público cascalense acompanhou Luedji e banda nessa coreografia e no aquecimento para a subsequente agitação de Marina Sena. Ainda antes de abandonar o palco, Luedji exclamou palavras de ordem como “justiça”, “igualdade”, “amor” e “axé”. Os seus desejos são simples e mais importantes que nunca, e felizmente vivem na sua música. Que privilégio podermos ouvi-la ao vivo neste nosso cantinho.
Achávamos que a bitola já estava bastante elevada, mas Marina Sena conseguiu suplantar as expectativas que o público havia criado sobre a sua actuação. Com o “Vício Inerente 2.0”, uma versão amadurecida do espectáculo que apresentou em Braga e Lisboa no ano passado, a artista trouxe uma intensidade inesperada às suas canções, apresentadas quase sem pausas. Logo de início, Marina marcou a diferença no alinhamento do festival, com “Dano Sarrada” a mostrar a sua faceta mais electrónica e néon. Mas que os puristas do festival não achem que o instrumental era pré-gravado só por ser pop, pois a banda de Marina Sena estava lá ladeando o palco e engrossando os clímaces das canções, como foi o caso de “Pra Ficar Comigo”. O final roqueiro ficou completo com o rodar de cabelo da cantora e cortes rápidos do vídeo que passava nos ecrãs laterais do palco, numa demonstração da produção apurada que apenas a experiência pode trazer.
Na véspera, Marina Sena havia publicado no seu Instagram uma publicação, onde a vemos acompanhada de artistas como Ana Moura, MARO ou Nenny, com a legenda “compor do outro lado do oceano tem um jeito diferente e eu gostei”. “Estou apaixonada por Portugal!”, exclamou neste concerto no Cool Jazz, referindo depois a música que tem composto nesse período em que esteve cá. O entusiasmo foi crescendo pela perspectiva de mais uma ponte musical Brasil-Portugal, que ainda para mais envolve artistas com tamanha qualidade. Segundo Marina, cá “a música sai diferente” e, quando vem para cá, sabe mais aquilo que a torna a si mesma diferente e conhece-se melhor a si mesma.
Depois desta conexão com o público português, foi tempo de outro momento especial, já reconhecido dos seus concertos recentes. Ao som da versão acústica de “Mande Um Sinal”, tocada na guitarra pela própria artista, Marina fez-se acompanhar de uma fã que fez uma ligação de vídeo com um amigo, também ele fã, mandando assim “um sinal” para João Pessoa, no estado brasileiro de Paraíba. Ainda na guitarra, depois foi tempo de homenagear Gal Costa, com uma interpretação de “Vapor Barato” que demonstrou os impressionantes dotes vocais de Marina Sena. A versão incluiu até os característicos gritos de Gal, mas sem perder uma gota do seu carisma próprio.
Foi impressionante ver como o público reconhecia praticamente todas as canções da artista, provando o quão acarinhada é. Mesmo as canções não tão populares eram cantadas a plenos pulmões pelos fãs, como “Cabelo” ou o reggae de “Temporal”. Ao largo de todas elas, é de notar que o som do concerto foi absolutamente irrepreensível, permitindo-nos ouvir cada detalhe com vividez. Por exemplo, era como se o titular instrumento de “Tamborim” estivesse a ser tocado junto dos nossos ouvidos, sem uma parafernália de cabos pelo meio.
Eventualmente, chegou a parte mais pagodeira do concerto, com a bem sucedida versão piseira de “Dano Sarrada” e a já clássica “Ombrim” (“ai, que delícia o Verão!”), canção original da sua antiga banda, os Rosa Neon, cantada aqui em duas versões diferentes. Depois deste aquecimento, ficaram reservados para o final os seus dois maiores êxitos, “Voltei Pra Mim” e “Por Supuesto”, o final épico que envergonharia qualquer encore que viesse — e que, sem surpresas, acabou por não acontecer. Mas não tem mal, porque o concerto que a artista que entrevistámos há dois meses apresentou no Hipódromo Manuel Possolo foi um dos concertos mais impressionantes de que temos memória nos últimos tempos. Foi uma autêntica mostra de visão criativa, flexibilidade musical e auto-confiança que, ainda para mais, contém algumas das músicas mais entusiasmantes vindas do outro lado do oceano nos últimos anos. Se ainda havia dúvidas, este concerto dissipou-as todas: Marina Sena veio para ficar.
Para fechar a noite, a DJ e produtora portuguesa Sónia Trópicos manteve o tema da noite, com a sua mistura arrojada e sempre surpreendente de funk brasileiro e electrónica, temperada com kuduro e até referências a Romana ou Darude. O set, infelizmente curto, deixou-nos com água na boca e os pés irrequietos no regresso a casa ou na continuação dos festejos de sábado. Foi o final ideal para uma noite de música no Ageas Cool Jazz que teve um tempero especial.