Luís Severo em boa companhia no aquário da ZDB
A noite previa-se de celebração – da música portuguesa, da poesia e da amizade. Eis a premissa do Super Ballet, que marcou a rentrée da Galeria Zé dos Bois. Tendo por cabeça de cartaz um concerto muito especial de Luís Severo, o artista de Odivelas que este ano lançou o seu segundo e aclamado álbum homónimo. Ia ser um espectáculo diferente: em cima do palco, consigo, estariam a totalidade dos músicos que marcaram presença nas gravações do disco. Isto é, uma dezena de convidados. O público reagiu à altura: um dos grandes álbuns portugueses do ano ia ser interpretado de uma forma única. E a ZDB esgotou com alguns dias de antecedência.
Primeiro, foi tempo de escutar o artista que ia inaugurar o Aquário. Que o Filipe Sambado impressiona onde quer que vá, não é novidade para ninguém; uma postura que extravasa confiança, geralmente combinada com uma unha pintada ou com roupas convencionalmente mais femininas. Mas se disto já estávamos à espera, qual não é o nosso espanto quando o cantautor, de costas para o público, se despe ao entrar no palco da ZDB. Ali permanece, no canto da sala, durante toda a actuação. No centro do palco, lugar convencional, encontra-se em seu lugar um manequim a fazer figura.
A sua nova pele é certamente fruto do último vídeo que lançou para a música “Ass Ambado”, em que, também de costas, dança nu para a câmara. Na noite de sexta-feira, Sambado apresentou o seu novo álbum, a ser lançado no decorrer do próximo ano. Iniciou a performance com temas mais calmos, e terminou-a com algumas das canções que já tem vindo a tocar nos últimos meses, como a incansável “Deixem lá” ou o hit bilingue cujo refrão culmina de “I just want you / to suck my dick”.
Com vozes do público a fazerem-se ouvir durante os temas mais conhecidos, ficou demonstrado o desejo pelo antecipado álbum; e provou-se que, não sendo Sambado já um artista de aberturas, tem já tanto gabarito como o seu sucessor. Trouxe boa música e a necessária energia à sala, ao início de noite.
Seguiu-se a entrada de Luís Severo em palco. Sorridente, avança para o piano na lateral do palco, entre múltiplas meias-vénias discretas; olhar e postura de quem se sente agradecido pela bonita recepção do público da ZDB. É sozinho ao piano que começa por interpretar quatro canções do seu repertório mais antigo: ‘Daqui a nada já vem aí mais gente’, partilha. ‘Vida de Escorpião’ e ‘Cara D’Anjo’, do seu primeiro álbum; e ainda músicas de outros projectos dos quais fez parte, como os Flamingos ou enquanto Cão da Morte. Uma delas, confessa, já não interpretava desde 2013; mas hoje apetecia-lhe cantá-la. Despidas, as canções ao piano expõem ao mínimo denominador comum o trabalho de composição de Severo.
Pouco a pouco, vão subindo ao palco os primeiros colaboradores de Severo. Começam por ocupar os lugares do contrabaixo, da bateria, e da flauta: juntos, ainda com Severo no piano, interpretam “Meu Amor”; balada cuja melodia se desenrola de forma inspirada. Segue-se “Lamento”. E é a partir daqui que o concerto começa a aquecer. Deixam de ser quatro em palco e passam a uma dezena, e é difícil para o próprio Severo apresentá-los a todos: naquela noite, estão ali na qualidade de amigos, formam um colectivo orgânico que anima (e de que maneira) as canções do mais recente álbum do músico.
É nesse aconchego, humano e musical, que acolhemos com alegria esta palete de sons provindos de múltiplos instrumentos. As teclas, o baixo, as guitarras, a percussão, o violino, e as quatro vozes do coro são presença constante a partir de dado ponto. “Boa Companhia” sabe tão bem como ao ouvir o disco; “Olho de Lince”, a canção com dois actos e meio, mora no sítio certo, nesta Lisboa que inspirou o mais recente trabalho de Severo; e “Escola”, a canção que nos habituámos a ouvir dia e noite em repeat na Vodafone FM, soa mais orgânica nesta versão ao vivo. Talvez seja do largo sorriso com que Severo nos presenteia a cada instante; sente-se à distância que o músico está verdadeiramente feliz. Ouvimos o disco na integra, com passagem pela canção preferida do compositor, “Planície (tudo igual)”.
Assistimos ainda a um último momento mágico. Luís Severo à guitarra, e os nove músicos lado a lado e atrás dele. Os microfones são empurrados para o lado. Depois de um concerto em que pareceu-nos sentir na sala a mesma energia e emoção que os Arcade Fire convocavam nas íntimas performances dos seus primeiros anos, eis que nos é apresentada uma proposta que prova que o Aquário da ZDB foi o melhor sítio para acolher este acontecimento. Severo interpreta, sem amplificação, o closer do seu primeiro álbum. As palavras de “Lábios de Vinho” fazem do encore aquele que terá sido o momento mais emocionante da noite. Os coros de fundo – desta vez improvisados, e com uns toques do próprio público – ajudaram a preencher a alma dos presentes. A boa companhia, só por si, já teria valido a pena. Mas a música levou-nos ainda mais longe.
Artigo redigido por Sara Costa Dias e Tiago Mendes. Fotografias de © Ana Viotti / ZDB