Mais do que um épico de guerra, “1917” é um triunfo do cinema moderno
O novo filme de Sam Mendes, 1917, estreia-se a 23 de janeiro nas salas portuguesas. O épico de guerra é inspirado nos relatos verídicos do avô do realizador luso-descendente e é um dos melhores filmes dos últimos tempos.
Existem fórmulas que nunca falham para tornar um filme um sucesso de crítica. A primeira é ter Meryl Streep no elenco. A segunda, é fazer um filme sobre uma das Guerras Mundiais. Com falhas ou não no plot, os épicos de guerra normalmente são aclamados sem grande esforço. Aliados às grandes tecnologias que os estúdios de cinema permitem, o cinema de Hollywood nunca falha quando tem de representar uma guerra em termos visuais. Porém, a nível de história, nem sempre as apostas se concretizam naquele que poderia ser o melhor resultado possível. Um exemplo disso é Dunkirk. O filme de Christopher Nolan é uma obra prima visual e técnica, mas deixa muito a desejar no requisito do storytelling. Mas ainda bem que há filmes como 1917.
Focado na história de dois soldados a quem é atribuída a árdua missão de transmitirem uma mensagem a um dos batalhões, para impedir um ataque britânico que estava há muito a ser previsto pelas tropas alemãs, 1917surpreendeu na passada semana ao conquistar dois Globos de Ouro nas categorias de Melhor Filme de Drama e Melhor Realizador, para Sam Mendes. Com os Óscares à porta, o filme do luso-descendente começa a ser tido como um dos grandes nomeados. E, no meu entender, é o mais merecedor de todas as apostas.
Não posso mentir e dizer que parte de mim não é fascinada por épicos de guerra. Schindler’s List, Saving Private Ryan ou a série Band of Brothers são alguns dos produtos de ficção que mais me marcaram, dentro da categoria. No entanto, não posso deixar de elogiar 1917, mesmo que a temática não seja inovadora.
Há algo de diferente no filme de Sam Mendes, e não falo só dos aspectos técnicos que são para lá de incríveis. Desde a banda sonora – também ela nomeado aos Golden Globes, pelo trabalho magnífico de Thomas Newman (já nomeado para 14 Óscares) – à fotografia, 1917 desencadeia-se entre vários acontecimentos que nos são mostrados através de dois grandes planos de sequência, dando-nos a sensação que a edição do filme nunca sofre cortes.
Os minutos iniciais de The Revenant já haviam explorado esta técnica sequencial, assim como Rope de Hitchcock (que utiliza, em todo o filme, uma câmara imóvel enquanto filma as personagens dentro de um apartamento). No entanto, com o filme de Mendes, há um triunfo técnico que não havia nunca sido conseguido com tanta maestria como até aqui.
Parasitas, de Bong Joon-ho, é para mim, um dos grandes filmes de 2019. Tal como Joker, que anteriormente defendi como sendo um dos melhores filmes da década que agora terminou. Não altero a minha opinião, mas acrescento-lhe algo: 2019 trouxe-nos filmes inesquecíveis e fechou com chave de ouro a década de 2010. São vários os filmes que marcaram e que impactaram as audiências, mas 1917 é, sem qualquer espaço para dúvidas, o meu favorito.
A história é simples. Não há muito para além da parceria dos dois soldados que são postos à prova durante a Primeira Guerra Mundial, mas a forma como a emoção é retratada por Sam Mendes é, no meu entender, o que torna 1917 tão bom.
Saving Private Ryan é um filme emocional, não tem como o negar. Tom Hanks apresenta-nos uma das suas melhores atuações e existem diversas sequências no filme que não se esquecem, mas 1917 mostra-nos a humanidade que é tão facilmente esquecida nos vários épicos de guerra. É fácil cair na tentação de mostrar grandes efeitos especiais e reconstruções de batalhas dos períodos sangrentos dos embates mundiais, mas fazê-lo com uma associação digna a um pathos bem trabalhado não é tarefa fácil.
Christopher Nolan caiu nessa tentação, há três anos. Apresentou uma obra magnífica na perspetiva técnica, o que é indiscutivelmente fundamental, pois ajuda-nos a recriar o cenário da guerra, mas deixou de lado a essência humana que Sam Mendes foi capaz de capturar. O filme de Nolan não lida com o choque, com o inesperado ou com a morte da mesma forma que Mendes foi capaz de realizar. Há um mar de diferença entre ambos. Dunkirk é vazio, 1917 é um triunfo completo.
Roger Deakins, responsável pela fotografia de 1917, tem mostrado cartas toda a sua carreira. Nomeado também ele 14 vezes ao Óscar, Deakins venceu-o em 2018 pelo seu trabalho na cinematografia de Blade Runner 2049.
Ao longo das duas horas, 1917 segue um ritmo intenso, em especial causado pela forma como é realizado no plano de sequência, que nos aproxima às personagens e nos faz sentir como parte da história, e não tanto como um simples voyeur. A tensão no ar sente-se a cada perigo que desperta e mais do que acelerado, o coração cai-nos nas mãos. A tensão e a ação conjugam-se numa harmonia que de harmoniosa não tem nada, ao deixar-nos electrizados pelos constantes estímulos violentos que o filme nos apresenta. É uma experiência sufocante e de tirar o fôlego.
Em nenhum momento, 1917 se torna cansativo. A narrativa segue sempre interessante ao longo das duas horas, à medida que grandes nomes do cinema nos vão sendo apresentados, como Colin Firth, Mark Strong ou Benedict Cumberbatch, que apesar das suas rápidas participações, roubam as cenas em que aparecem.
Em suma, 1917 é um triunfo do cinema moderno. Sam Mendes entrega-nos uma vitória técnica ao mais alto nível, com cenas marcantes e inesquecíveis, aliadas a uma grande cinematografia e banda-sonora, sem nunca abandonar a história que nos faz chorar o coração.
Esta crítica foi escrita por Miguel santos e originalmente publicada em Espalha Factos.