“Manhã e Noite”, de Jon Fosse: o crepúsculo do Homem
Um livro pequeno, pensamos, quando tomamos nas mãos a edição da Cavalo de Ferro de “Manhã e Noite”. São 111 páginas de prosa poética, sem estéreis efeitos prosódicos.
Jon Fosse (N.1959, Strandebarm) conta-nos o caminho de dois homens numa linguagem elevada a elemento principal, uma linguagem que rivaliza com o debate interior de Johannes, no limiar da vida, e com o do seu pai, quando assiste ao parto de um mundo novo. Filosofia, teatro, poesia, ensaio (registos tão do gosto do autor) misturam-se num texto que tem corrente interior ainda mais rica do que a ondulação das palavras.
Peter e Johannes são dois homens cuja vida foi feita em partilha. Cortavam o cabelo um ao outro há muitos anos, sabiam dos rituais que os moldavam. Por isso, Johannes não estranhou a presença do amigo na barca depois de acordar sem os habituais vómitos. Somente o viu mais magro e se preocupou com o tamanho do cabelo. Tenho de ir a casa dele para lho cortar, pensou num assomo de cuidado enraizado em muitos anos.
“O cabelo cresceu-te tanto, dá-te pelos ombros, diz Johannes
Devias, sim, diz Peter
e Johannes vê Peter levar o seu velho cachimbo à boca
Há já muitos anos que cortamos o cabelo um ao outo, diz Johannes
Estou a tentar fazer o cálculo, diz Johannes, penso que já terão passado
Sim, já terão passado perto de quarenta anos, diz Peter”
Peter estava ali para Johannes. Embarcaram para viajar pelo rio de margens cada vez mais difusas.
Entrando no “Dicionário dos Símbolos” (de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant) para nos ajudar a compreender, chegamos à ideia de a barca ser muito mais do que um meio de transporte.
“A barca é o símbolo da viagem, de uma travessia efectuada pelos vivos, seja pelos mortos”.
Símbolo presente em todas as civilizações, a barca pode ser a garantia de segurança, depois de ambos terem navegado por uma vida dorida e atribulada.
Um e outro, na vida e na morte, ajudam-se mutuamente.
Sobre a água do rio, vão de margem a margem. A água, como símbolo, resume-se a três temas dominantes: fonte de vida, meio de purificação, centro de regenerescência. Nas tradições judaica e cristã, a água simboliza a origem da criação.
Esta forma de amor entre amigos nem a morte desenlaça. Este tipo de amizade — um dos três tipos de “Philia” referidos por Aristóteles em “Ética a Nicómaco” — é acarinhada entre homens de bem:
“Estes querem-se bem uns aos outros, de um mesmo modo. E por serem homens de bem são amigos dos outros pelo que os outros são. (…) Tais amizades são, de facto, raras porque são poucos os homens desta estirpe. Além do mais, é preciso tempo e cumplicidade, pois, tal como diz o provérbio, não é possível que duas pessoas se conheçam uma à outra sem antes terem comido juntas a mesma quantidade de sal”. (edição da Quetzal,2009; trad. António de Castro Caeiro).
Jon Fosse contrapõe Eros e Thanatos numa prosa de filigrana, sensível como um poema. Dá-nos a conhecer os extremos da vida de Johannes. Vemo-lo a nascer, vemos o desconcerto dos pais na génese de uma vida. É um amor diferente aquele que une pai e mãe na violência inoculada pela vida a florescer. Na outra margem, o desconcerto no abandono da vida incorporada e a espera de quem partilhou a mesma quantidade de sal. Saiu do nada, saiu do não-lugar onde não há corpos nem palavras, para o não deixar desamparado na transição.
O escritor manteve-se na essência, sem palavras espúrias, nem divagações snobs. Em “Manhã e Noite” (Trad. do inglês de Manuel Alberto Vieira), o leitor reconhece as suas margens e percebe que um dia terá de chegar àquela onde o esperam. No entanto, uma forte luz na penumbra, este optimismo do autor norueguês, deixa-o a desejar, quando chegar ao fim do caminho, por um amigo como Peter, um amigo que o leve a bom e luminoso porto de desembarque.
Este livro tem tanto em si. Clama à releitura.