Manuela C. Afonso: ‘As mulheres estiveram sempre no centro do meu olhar’
Oriunda de uma família tradicional e com valores salazaristas, Manuela C. Afonso diz ter saído do baralho e desde tenra idade que procurou afastar-se do modelo de opressão estatal. De bagagens prontas e projetos a fervilhar, já viveu em Itália, S. Tomé e Príncipe, e na Escócia. Com a causa feminista a correr-lhe nas veias, exerceu várias profissões, desde o ensino até à animação sociocultural, tendo tido sempre as mulheres como centro do seu olhar. Numa descontraída entrevista, Manuela C. Afonso esteve à conversa connosco sobre aquele que é um dos assuntos mais falados do momento: o feminismo.
De que forma é que o feminismo apareceu na sua vida?
Penso que nasceu comigo. Mas o estar atenta às pessoas, sobretudo às relações entre homens e mulheres, até na própria casa, contribuiu para isso. Depois, mais tarde, apercebi-me que sempre que havia dificuldades as mulheres eram as grandes sofredoras dessas crises. Com as mulheres com que trabalhei ao longo da minha vida, senti que elas estavam sempre ocultas no cenário, sem voz e até por vezes maltratadas, muito descriminadas, o que continua a acontecer ainda hoje.
Como é que era ser-se uma jovem mulher no Estado Novo?
Eu era de uma classe média, estudei num colégio e, como mandava o figurino, pertenci à mocidade portuguesa. Deus, Pátria e Família, comandava como ideologia. Era tudo muito a condizer. Um modelo “muito feminino“ como conceito e expressão de uma sociedade patriarcal, com uma igreja católica que a apoiava e que tinha como objectivo formar mulheres para serem “boas donas de casa”, boas mães, servidoras alegres e “bem comportadas”. Eram o “cimento” que o sistema conservador idealizava para o seu próprio bem estar.
Ao longo de 4 verões, a Manuela deu aulas nos campos de férias da mocidade portuguesa. Sendo uma feminista e anti-salazarista assumida, não lhe fazia impressão integrar um projeto como este?
Naquela altura, como professora mas não sendo efectiva, não nos pagavam o tempo de férias. Tinha de trabalhar para viver. As jovens que iam a esses programas vinham de meios sociais e económicos muito diversos. Considerava este trabalho uma oportunidade para as ajudar a pensar de maneira diferente, mesmo que apenas um pouco.
As raparigas estavam enraizadas nas tradições do regime ou mostravam uma vontade de mudança?
O modelo era o de aquário… Viver era seguir as instruções do regime e da cultura vigente. Não havia muitos espaços para pensar diferente ou ser diferente. Não são assim todas as situações de opressão? Havia quem fazia a diferença sim, muito poucas desejavam a diferença, mas já as havia, aquando mulheres na literatura, na música e mesmo na política.
É co-autora do livro “Caminhos silenciosos da mudança” que nos transmite histórias de vida de várias mulheres. Pode contar-me o que está por detrás desta obra?
Esta obra resume-se a dois anos de investigação – 1971-1972 – e mais dois – 1981-1982 – de trabalho junto de mulheres, e jovens em geral, provenientes de quatro aldeias portuguesas. Ao longo desse tempo eu vi e senti a profundidade da opressão em que essas mulheres viviam diariamente. Numa história de vida, a mulher conta tudo, desde a relação sexual à vida dela em criança. Realmente, o que chamamos escravatura e violação… era permanente naquilo que parecia uma vida familiar normal. Então, quais são os espaços para estas mulheres poderem tomar consciência de si e fazerem alguma coisa? Numa parceria com jovens universitários, alguns criaram o grupo de teatro Fatias de Cá de Tomar. Todas as semanas, as mulheres reuniam-se para contarem histórias e as discutir. Algumas eram a sua própria história, com outros nomes. Posteriormente, essas histórias de vida eram usadas para a criação de folhetins. Este trabalho criou em nós laços de amizade que ainda hoje nos unem. Repare, esta concentração de mulheres, no mesmo espaço, na altura do Estado Novo, foi algo inovador para a época – e criou frutos. Ao ganhar poder de consciência, essas mulheres começaram a fazer grupos de teatro, para depois fazerem reflectir outras mulheres. Esta foi, sem dúvida, uma das grandes e bonitas experiências em que eu me empenhei.
O teatro e as artes são importantes para a propagação da causa feminista?
Sem dúvida. Esta ação levou-me a perceber que o teatro é muito importante na intervenção com mulheres que vivem oprimidas. É uma linguagem que toca o real e o simbólico. É o poder de sonhar, e nós precisamos disso. O teatro e as artes podem ser um grande meio de libertação e, ao mesmo tempo se completam. Para o nosso país, neste momento, seria uma boa decisão política e cultural – estimular as expressões artísticas, pois elas estimulam a criatividade de que tanto necessitamos.
Já depois do Estado Novo, a Manuela foi para África através do CIDAC – Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral – com o objetivo de criar o serviço de segurança social e a formação de quadros. O que retira dessa experiência?
Foi uma experiência giríssima, e paralela às outras funções de assessoria. Em São Tomé e Príncipe um homem podia ter várias mulheres e vários filhos; mas depois só uma mulher é que era considerada com direitos legais de herança e de tutela dos filhos do marido. A minha equipa tentou – e acho que conseguiu – pôr em questão a legislação. Que começassem a pensar em alterações à mesma; o sentido da paternidade e maternidade reconhecida a quem o era de facto, assim como a responsabilidade para com todos os filhos. Fizemos um trabalho de consciencialização muito interessante, o que levou a ainda hoje sermos amigas.
Com a revolução do 25 de abril, o que mudou significativamente no dia-a-dia das mulheres?
Quando se está preso, e de repente se pode falar… é muito complicado gerir essa liberdade. Houve uma grande euforia depois do 25 de abril. Uma liberdade dada de pacote não significa que as pessoas a usem da melhor maneira. Aconteceu um pouco isso, não houve uma preparação prévia. A liberdade é responsabilidade, mas se não estivermos preparadas não resulta. Vejamos: poderemos dizer que as mulheres portuguesas, hoje, vivem em condições de igualdade e paridade como sugere uma democracia?
E atualmente, como olha para a condição feminina?
Com alguma apreensão. Encontra-se muito à procura de si. Em que modelos se inspira? Onde se empenha, que ações promove? Que estilos de vida deseja? Como promovem a liberdade responsável de serem e fazerem diferente com outras mulheres? Ainda estamos na caverna em muita coisa, mas posso afirmar que estamos vislumbrando alguma luz. O termómetro da condição feminina de hoje irá dizer-nos que futuro podem esperar as mulheres e as futuras gerações.
Comparando a violência exercida sobre as mulheres na altura do Estado Novo com a situação atual, os seus contornos mudaram?
Continua bastante igual, com uma agravante: os meios de comunicação social; difundem a violência como notícia, mas acabam por estimular o conhecimento e a predisposição para a violência. Os meios de comunicação têm feito muito mal às mulheres, devido à forma como divulgam as coisas. É quase doentio. Antigamente não se matava tanto, embora houvesse mais violência psicológica e emocional. Hoje a publicidade estimula o haver mais casos de mortes devido à violência.
E a luta feminista?
Não estamos a dar a contribuição necessária. As mulheres ainda não acordaram para lutar por algumas causas que considero essenciais. Apesar, de, ao mesmo tempo, estar a ser tomada uma maior consciência. Eu tenho esperança; vejo que há uma real frente de luta feminista. Mulheres que no mundo actual realizam ações significativas no domínio de uma ecologia integral. Esta inclui o saber porque lutamos. Começam a surgir mulheres extraordinárias no planeta, ligadas à ciência, às artes, e a novas causas. Desejaria ver muitas mais, em grupos e em rede, a liderar muitas outras ações.
Comparando Portugal com o resto do mundo, o feminismo no nosso país tem as mesmas linhas de orientação?
O feminismo em Portugal é um feminismo de Estado, não é um feminismo como encontramos na Inglaterra e nos Estados Unidos. Depois do 25 de abril, há a tentativa de integrar na questão do olhar das mulheres a diversidade sexual. É limitativo se uma grande parte das questões das mulheres ficar sob esse rótulo. E criam-se organismos que mudam a lei a bem de algumas coisas. Em Portugal, o feminismo está muito preso ao Estado, pois é este que em grande parte o subsidia. Não o considero um feminismo genuíno, temos ainda um longo caminho pela frente.
O que podemos fazer para que a luta seja intensificada?
Acho que precisamos de nos reunir, de tomarmos consciência de quais são os obstáculos que nos estão a colocar. Em conjunto, temos que perceber qual o nosso papel, e colocar em marcha um trabalho estratégico. Deveriam ser criados mais grupos de mulheres em vários sectores da sociedade.
Os homens são feministas?
Eu tenho boa experiência em França. Por exemplo, quando a pílula e o planeamento familiar começaram a ser discutidos, eu estava lá nessa altura e, realmente, dava gosto ver os homens empenhados na causa feminista, eram verdadeiros e empenhados.
Em Portugal, quando estive a animar a 1º edição do fórum social, reparei que estavam lá alguns homens, porque eram “bastante femininos”, mas que acabaram por não fazer grande diferença. No nosso país, não sei se os homens lutam verdadeiramente pela causa das mulheres, isso ainda não vi, mas gostava de ver. Creio que no futuro próximo surgirão mais homens, com uma consciência mais liberta das heranças que nos tolhem, e que se interessam pelo feminismo, que o estimulam e o apoiam. Não estamos nós a lidar só com o que é diferente, mas é também uma parte de cada um de nós?
O futuro da sociedade está presente nas camadas jovens. Sente que os jovens aderem à causa feminista?
Há jovens que sim, outras que não… É um evoluir muito lento. O que está a acontecer, e o que me dá muita esperança, é que realmente há imensa gente que tem uma postura ativa, e o desejo de realmente criar transformação em si; face a um maior bem, o bem comum. Há uma parte da geração que se acomoda, como é óbvio, mas haverá sempre camadas jovens que querem algo de melhor e mais justo para tod@s, e que darão a vida por isso.
Que conselho dá a estes jovens?
Crescer em consciência ética, procurar o melhor para si sem esquecer o bem comum. Ter coragem para não ser consumista modelado pela publicidade; ser coerente. Criar laços sem fronteiras e redes que operem por um outro viver mais justo.
Como é que vê a situação da mulher daqui a 20 anos?
Eu só posso desejar. Na fase da civilização em que estamos… Uma coisa sei: nas mulheres está uma chave do futuro da humanidade. Se nós conseguimos agarrá-la e usá-la… aí já não o sei dizer. Os problemas do ser humano e do planeta daqui a 20 anos vão ser demasiado complexos e imprevisíveis. Não sei se falaremos enquanto mulheres ou seres humanos, que se interrogam nas n opções que se lhes deparam. Haverá sempre espaço para os grupos que acreditam que existimos para ser felizes, e que nunca o seremos completamente enquanto outros ao nosso lado o não forem. Estarão as mulheres a colocar esta questão nessa altura?
Entrevista realizada por Liliana Pedro