Mário Cesariny, expressão do surrealismo português

por Lucas Brandão,    18 Novembro, 2016
Mário Cesariny, expressão do surrealismo português
Capa do livro

Mário Cesariny foi um dos maiores experimentalistas em plena criação artística. Natural de Lisboa, o autor deu azo aos ventos surrealistas que sopravam de leste e deu-lhes corpo em plena nação lusa. Não obstante os tempos trémulos e instáveis, Cesariny fez destes mote para corporizar uma literatura com engenho e arte, para além de esparsas pinturas que eventualmente elaborou. Toda a virtude fez-se construir a partir das funções de historiador e de compilador dos trabalhos surrealistas até aí desenvolvidos. A perícia de um mestre que ganhou voz ativa nas tradicionais tertúlias de café, onde do dilema se faz poema.

Mário Cesariny de Vasconcelos nasceu em Benfica, Lisboa, no dia 9 de agosto de 1923, sendo o mais novo de quatro filhos. O apelido Cesariny provém da mãe, de ascendência espanhola, e o Vasconcelos do pai, de origens corsas. A formação do futuro poeta passou pelo Liceu Gil Vicente, frequentando-o somente por um ano graças ao progenitor. Este, como pretendia que o seu filho seguisse a carreira de ourives, colocou-o num curso de cinzelagem na atual Escola Secundária António Arroio. No entanto, viria a conhecer nesta Artur do Cruzeiro Seixas, futuro companheiro artístico de Cesariny. Como o exercício da ourivesaria não lhe sossegou, o lisboeta frequentou ainda uma habilitação para Belas Artes e teve aulas de música gratuitas com o compositor Fernando Lopes Graça. O seu pai, todavia, emergiu como um empecilho na sua promissora carreira artística e musical e obrigou-o a emigrar em Paris. Tudo isto depois de redescobrir nos cafés de Lisboa o neo-realismo e o surrealismo em conjunto com outros contemporâneos seus, para além de Cesário Verde e de Fernando Pessoa entrarem como influências importantes.

Aos 24 anos, parte assim para a capital francesa, onde ingressou na escola de arte Académie de la Grande Chaumière. Durante este período, privou com um dos fundadores do movimento surrealista André Breton. Aliando a esta experiência as conversas e crenças partilhadas nas tertúlias lisboetas, foi responsável pela criação do Grupo Surrealista de Lisboa em 1947. Nomes como o também poeta Alexandre O’Neill, o escritor António Pedro e os pintores Cândido Costa Pinto e João Moniz Pereira fizeram parte do grupo fundador desta aglomeração. A Pastelaria Mexicana, na capital portuguesa, era o local onde estes nomes se reuniam para discutir e promover o seu processo criativo. O previamente considerado neo-realismo foi negado e o regime salazarista foi visado numa linha de expressão libertária através do sonho e do poder do inconsciente.

“Eu acho que se se é surrealista, não é porque se pinta uma ave, ou um porco de pernas para o ar. É-se surrealista porque se é surrealista!”

Mário Cesariny em Verso de Autografia (2004)

Na sucessão desta agregação, surgiu um outro grupo de dissidentes, no qual encabeçava a figura de Mário Cesariny. Denominando-se “Os Surrealistas“, partiu de algumas divergências conceptuais e por via do caráter inquieto do artista. Deste grupo, outros tantos fizeram parte, tais como o seu colega Artur do Cruzeiro Seixas, o escritor Pedro Oom e o poeta António Maria Lisboa. Tudo isto se consolidou no “Manifesto Abjecionista” (1949), este que advogava a insubmissão constante relativamente aos preceitos existentes. A diferença crucial de uma entidade para outra centrou-se na sua vocação, virando de uma plástica para uma mais literária e poética. Fruto de um contexto fortemente opressivo, as obras produzidas começaram a ser menos em quantidade e menos agrupadas, tornando-se mais isoladas. No que toca ao seu seio familiar, o seu pai emigra para o Brasil com uma amante, deixando a mãe e uma das irmãs a viverem juntas, motivando a aproximação de Cesariny a estas duas. Era em traduções avulsas de autores como Arthur Rimbaud ou Novalis que encontrava o seu ganha-pão, recolhendo premissas norteadoras do seu eu criativo.

“Existe um certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser e não deixam de ser apercebidos contraditoriamente.”

Passagem do “Segundo Manifesto Surrealista” (1930), de André Breton e selecionada por Mário Cesariny para integrar o “Manifesto Abjecionista”.

Já nos anos 50, o artista foca-se na sua criação artística, nomeadamente na poesia e na pintura, chegando a expor algumas em exposições pontuais de cariz surrealista. Para isso, colabora na revista Pirâmide por dois anos, vindo a incompatibilizar-se com o seu editor Luiz Pacheco nos anos sucessivos. Escrevendo nomeadamente em cafés públicos, seria alvo de atenções redobradas por parte das forças de segurança do regime. Tudo isto devido à sua homossexualidade declarada e assumida, sendo interrogado de forma regular e sujeito a deslocações embaraçosas por “suspeita de vagabundagem”. Este figurino só mudaria a partir do 25 de abril, data que marcou a viragem política portuguesa. Paralelamente a isto, era com dificuldades financeira que o artista vivia, não obstante a virtude do seu talento escrito. Assim, dedicar-se-ia quase em exclusivo à pintura para garantir o mínimo suporte.

Faz-se luz

“Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca.”

Mário Cesariny em “Pena Capital” (1957)

Já nos anos 80, a sua poesia seria reeditada por Manuel Hermínio Loureiro e dada a conhecer a uma emergente gama de leitores numa época de franca produção lírica. Nomes como Herberto Hélder, Al Berto e os compositores Carlos Paião e Zeca Afonso pontificavam com uma dimensão ludicamente profunda, semanticamente requintada e subtilmente intervencionista. Foi muito isto que Cesariny partilhou na sua poesia, que, à imagem da sua pintura, procurando um equilíbrio entre as sensações mais térreas e as alucinações mais surreais. Assim, trata-se de um registo essencialmente surreal sustentado em jogos verbais, trocadilhos, paródias, humor negro, nonsense e enumerações infindáveis. A sua bibliografia foi vasta, contando com as seguintes obras:

  • Corpo Visível (1950);
  • Manual de Prestidigitação (1956);
  • Nobilíssima Visão (1959);
  • As Mãos na Água a Cabeça no Mar (1972);
  • Burlescas, Teóricas e Sentimentais (1972);
  • Titânia e a Cidade Queimada (1977);
  • Primavera Autónoma das Estradas (1980);
  • Fernando Pessoa Explicado às Criancinhas Naturais & Estrangeiras (1989).

Numa fase mais amadurecida, entregou-se a uma dinâmica de transformações do dia-a-dia, originando colagens com uma plenitude de símbolos e de elementos. O ramo plástico da sua produção artística contou também com a produção de sonografias e de cadavre exquises, isto é, de subversões ao normais padrões da composição visual e lírica. Tudo isto integrava aquilo que era Cesariny como pintor. Um autor espontâneo e insurgente que bebia do misticismo e da magia das suas influências, dando primazia à cor e à anarquia figurativa.

Este é o meu testamento de Poeta, 1994 - Mario Cesariny

“Este é o meu Testamento de Poeta” (1994)

A 26 de novembro de 2006, vítima de um cancro na próstata, Mário Cesariny partiu aos 83 anos. Dois anos antes, abriu as portas aos meios de comunicação e deu azo à produção do documentário “Autografia”. O seu espólio foi todo para a Fundação Cupertino de Miranda e deixou um milhão de euros à Casa Pia. Também antes de partir, foi condecorado pela Presidência da República com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade em 2005.

Mário Cesariny foi um artista que andou sempre às avessas com as convenções. Nunca as seguindo, preferiu trilhar um rumo muito singular e fiel à sua personalidade criativa. Criou assim um legado diferenciado e plurifacetado, tanto a partir da forma como da palavra. Toda a envolvente da representação passou pelo génio artístico do português, dando volume e diversidade a um repertório vasto e repleto de experimentações. Foi à base de uma toada surreal que se compôs uma elementar figura da cultura portuguesa. Mesmo perante opressões e dispersões, superou-as sem ter levantado voo definitivo das suas raízes lusas e alimentou-se destas para corporizar o seu ideal final. O tal que, respeitante à sua felicidade, se entregou a uma tão delirante e marcante realidade.

 

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