Mário Cesariny, expressão do surrealismo português
Mário Cesariny foi um dos maiores experimentalistas em plena criação artística. Natural de Lisboa, o autor deu azo aos ventos surrealistas que sopravam de leste e deu-lhes corpo em plena nação lusa. Não obstante os tempos trémulos e instáveis, Cesariny fez destes mote para corporizar uma literatura com engenho e arte, para além de esparsas pinturas que eventualmente elaborou. Toda a virtude fez-se construir a partir das funções de historiador e de compilador dos trabalhos surrealistas até aí desenvolvidos. A perícia de um mestre que ganhou voz ativa nas tradicionais tertúlias de café, onde do dilema se faz poema.
Mário Cesariny de Vasconcelos nasceu em Benfica, Lisboa, no dia 9 de agosto de 1923, sendo o mais novo de quatro filhos. O apelido Cesariny provém da mãe, de ascendência espanhola, e o Vasconcelos do pai, de origens corsas. A formação do futuro poeta passou pelo Liceu Gil Vicente, frequentando-o somente por um ano graças ao progenitor. Este, como pretendia que o seu filho seguisse a carreira de ourives, colocou-o num curso de cinzelagem na atual Escola Secundária António Arroio. No entanto, viria a conhecer nesta Artur do Cruzeiro Seixas, futuro companheiro artístico de Cesariny. Como o exercício da ourivesaria não lhe sossegou, o lisboeta frequentou ainda uma habilitação para Belas Artes e teve aulas de música gratuitas com o compositor Fernando Lopes Graça. O seu pai, todavia, emergiu como um empecilho na sua promissora carreira artística e musical e obrigou-o a emigrar em Paris. Tudo isto depois de redescobrir nos cafés de Lisboa o neo-realismo e o surrealismo em conjunto com outros contemporâneos seus, para além de Cesário Verde e de Fernando Pessoa entrarem como influências importantes.
Aos 24 anos, parte assim para a capital francesa, onde ingressou na escola de arte Académie de la Grande Chaumière. Durante este período, privou com um dos fundadores do movimento surrealista André Breton. Aliando a esta experiência as conversas e crenças partilhadas nas tertúlias lisboetas, foi responsável pela criação do Grupo Surrealista de Lisboa em 1947. Nomes como o também poeta Alexandre O’Neill, o escritor António Pedro e os pintores Cândido Costa Pinto e João Moniz Pereira fizeram parte do grupo fundador desta aglomeração. A Pastelaria Mexicana, na capital portuguesa, era o local onde estes nomes se reuniam para discutir e promover o seu processo criativo. O previamente considerado neo-realismo foi negado e o regime salazarista foi visado numa linha de expressão libertária através do sonho e do poder do inconsciente.
“Eu acho que se se é surrealista, não é porque se pinta uma ave, ou um porco de pernas para o ar. É-se surrealista porque se é surrealista!”
Mário Cesariny em Verso de Autografia (2004)
Na sucessão desta agregação, surgiu um outro grupo de dissidentes, no qual encabeçava a figura de Mário Cesariny. Denominando-se “Os Surrealistas“, partiu de algumas divergências conceptuais e por via do caráter inquieto do artista. Deste grupo, outros tantos fizeram parte, tais como o seu colega Artur do Cruzeiro Seixas, o escritor Pedro Oom e o poeta António Maria Lisboa. Tudo isto se consolidou no “Manifesto Abjecionista” (1949), este que advogava a insubmissão constante relativamente aos preceitos existentes. A diferença crucial de uma entidade para outra centrou-se na sua vocação, virando de uma plástica para uma mais literária e poética. Fruto de um contexto fortemente opressivo, as obras produzidas começaram a ser menos em quantidade e menos agrupadas, tornando-se mais isoladas. No que toca ao seu seio familiar, o seu pai emigra para o Brasil com uma amante, deixando a mãe e uma das irmãs a viverem juntas, motivando a aproximação de Cesariny a estas duas. Era em traduções avulsas de autores como Arthur Rimbaud ou Novalis que encontrava o seu ganha-pão, recolhendo premissas norteadoras do seu eu criativo.
“Existe um certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser e não deixam de ser apercebidos contraditoriamente.”
Passagem do “Segundo Manifesto Surrealista” (1930), de André Breton e selecionada por Mário Cesariny para integrar o “Manifesto Abjecionista”.
Já nos anos 50, o artista foca-se na sua criação artística, nomeadamente na poesia e na pintura, chegando a expor algumas em exposições pontuais de cariz surrealista. Para isso, colabora na revista Pirâmide por dois anos, vindo a incompatibilizar-se com o seu editor Luiz Pacheco nos anos sucessivos. Escrevendo nomeadamente em cafés públicos, seria alvo de atenções redobradas por parte das forças de segurança do regime. Tudo isto devido à sua homossexualidade declarada e assumida, sendo interrogado de forma regular e sujeito a deslocações embaraçosas por “suspeita de vagabundagem”. Este figurino só mudaria a partir do 25 de abril, data que marcou a viragem política portuguesa. Paralelamente a isto, era com dificuldades financeira que o artista vivia, não obstante a virtude do seu talento escrito. Assim, dedicar-se-ia quase em exclusivo à pintura para garantir o mínimo suporte.
Faz-se luz
“Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homemPor outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca.”Mário Cesariny em “Pena Capital” (1957)
Já nos anos 80, a sua poesia seria reeditada por Manuel Hermínio Loureiro e dada a conhecer a uma emergente gama de leitores numa época de franca produção lírica. Nomes como Herberto Hélder, Al Berto e os compositores Carlos Paião e Zeca Afonso pontificavam com uma dimensão ludicamente profunda, semanticamente requintada e subtilmente intervencionista. Foi muito isto que Cesariny partilhou na sua poesia, que, à imagem da sua pintura, procurando um equilíbrio entre as sensações mais térreas e as alucinações mais surreais. Assim, trata-se de um registo essencialmente surreal sustentado em jogos verbais, trocadilhos, paródias, humor negro, nonsense e enumerações infindáveis. A sua bibliografia foi vasta, contando com as seguintes obras:
- Corpo Visível (1950);
- Manual de Prestidigitação (1956);
- Nobilíssima Visão (1959);
- As Mãos na Água a Cabeça no Mar (1972);
- Burlescas, Teóricas e Sentimentais (1972);
- Titânia e a Cidade Queimada (1977);
- Primavera Autónoma das Estradas (1980);
- Fernando Pessoa Explicado às Criancinhas Naturais & Estrangeiras (1989).
Numa fase mais amadurecida, entregou-se a uma dinâmica de transformações do dia-a-dia, originando colagens com uma plenitude de símbolos e de elementos. O ramo plástico da sua produção artística contou também com a produção de sonografias e de cadavre exquises, isto é, de subversões ao normais padrões da composição visual e lírica. Tudo isto integrava aquilo que era Cesariny como pintor. Um autor espontâneo e insurgente que bebia do misticismo e da magia das suas influências, dando primazia à cor e à anarquia figurativa.
“Este é o meu Testamento de Poeta” (1994)
A 26 de novembro de 2006, vítima de um cancro na próstata, Mário Cesariny partiu aos 83 anos. Dois anos antes, abriu as portas aos meios de comunicação e deu azo à produção do documentário “Autografia”. O seu espólio foi todo para a Fundação Cupertino de Miranda e deixou um milhão de euros à Casa Pia. Também antes de partir, foi condecorado pela Presidência da República com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade em 2005.
Mário Cesariny foi um artista que andou sempre às avessas com as convenções. Nunca as seguindo, preferiu trilhar um rumo muito singular e fiel à sua personalidade criativa. Criou assim um legado diferenciado e plurifacetado, tanto a partir da forma como da palavra. Toda a envolvente da representação passou pelo génio artístico do português, dando volume e diversidade a um repertório vasto e repleto de experimentações. Foi à base de uma toada surreal que se compôs uma elementar figura da cultura portuguesa. Mesmo perante opressões e dispersões, superou-as sem ter levantado voo definitivo das suas raízes lusas e alimentou-se destas para corporizar o seu ideal final. O tal que, respeitante à sua felicidade, se entregou a uma tão delirante e marcante realidade.