Maya Angelou: um dos maiores nomes da literatura afro-americana
Marguerite Annie Johnson. Nascida a 4 de abril de 1928, faleceu 86 anos depois, a 28 de maio de 2014. Destacada poeta, alcançou a consagração do público enquanto escreveu sobre a sua vida: a sua infância marcada pelo abuso sexual do seu padastro e pelas vicissitudes inerentes à questão de ser de etnia negra; a sua adolescência de superação dos seus tramas e de se concretizar como mulher de sete ofícios e de sete almas; a sua adultidade, onde revelou coragem e distinção na forma como revelou todo o seu passado num presente que lhe embrulhava um futuro de admiração. Com os livros, fez poesia, ensaios e prosa que plasmaram as suas causas de vida, causas essas que a honraram como uma figura marcante na sociedade norte-americana.
Nascida no estado de Missouri, nos Estados Unidos, os seus dezassete anos foram contados na autobiografia da autora, que lhe eternizou na amplitude da literatura norte-americana: “I Know Why The Caged Bird Sings”, de 1969. É uma obra que, nos seus sete volumes, revela a sua mudança para o estado de Arkansas, ainda mais aprofundado na segregação racial, ao lado do seu irmão. Passaram, assim, a viver com a sua avó, num período relativamente cómodo. No entanto, o regresso ao Missouri foi marcado pelo abuso sexual perpetrado pelo namorado da sua mãe, nomeadamente na forma de violações. Este acabaria morto quando Marguerite tinha só dez anos, dois depois destas ocorrências, presumivelmente por familiares da futura autora. Acreditava ela que a sua voz era arma de fogo, que tinha o poder de matar e, como tal, emudeceu durante alguns anos. Isto porque ela havia contado ao seu irmão o sucedido, sendo que este partilharia com o resto da família o sucedido.
O seu reencontro com a felicidade dar-se-ia na escola, de perto com a descoberta da literatura, de autores influentes de língua inglesa, mas também de escritoras negras, que davam a sua vida como frente de contestação em relação às discriminações raciais e sexuais, como Frances Harper ou Anne Spencer. Porém, as circunstâncias da vida forçá-la-iam a mudar de ares de novo, desta feita para o Oeste, para a Califórnia. Aqui, tornou-se na primeira taxista negra de San Francisco, o primeiro de tantos e tantos ofícios que viria a assumir, desde a cozinha, o jornalismo, a representação, mas também a prostituição. Foi um período conturbado que a gravidez, aos 16 anos de idade, não ajudou a estabilizar. O seu complexo de inferioridade, que sentia desde bem nova, começou, no entanto, a ser transformado numa sensação crescente de autoestima e de valorização pessoal, capaz de identificar e de fazer frente às agruras que a vida lhe havia deixado.
Seria James Baldwin, assim como o editor Robert Loomis, o grande impulsionador da escrita dessa sua autobiografia, tinha já Marguerite pouco mais de 40 anos de idade. Na bagagem, trazia as causas da luta pelos direitos civis das comunidades afroamericanas, para além da necessidade dos valores de família e da maternidade negra, mas também de autodeterminação e de independência. É, assim, este pássaro que tenta escapar da gaiola na qual está aprisionado e à qual o título do livro se refere, uma metáfora que alude à resistência e à emancipação. E foi essa história que a sua vida, continuamente, contou. De volta aos anos 50 do século XX, Marguerite havia casado com o grego Tosh Angelos e via na dança uma nova paixão. A dança moderna, que a levou a atuar em vários clubes da vida noturna de San Francisco e na qual se encontrou com o seu nome artístico, Maya Angelou, que era influenciado pela música calypso que dançava, música essa com raízes nas ilhas caribenhas e nas suas comunidades negras.
Seria a dança que lhe levaria a conhecer a Europa pela primeira vez, desta vez com a ópera “Porgy and Bess”, cujo libreto foi escrito pelo compositor George Gershwin. Maya apanhou a manha de vários dos idiomas europeus e, também, já no regresso, o contacto com alguns escritores emergentes naquela já década de 1950. Com o coração da literatura norte-americana a impelir para Nova Iorque, foi para aí que Angelou se mudou no final dessa década, juntando-se à guilda (um grupo) de escritores de Harlem, onde começou a desenvolver a sua primeira relação íntima com a causa formal dos direitos civis das comunidades afroamericanas, acompanhando de perto a emergência da figura de Martin Luther King, que conheceu no ano de 1960. Angelou também aliou a causa católica à da luta social e cívica e tornou-se parte da coordenação da Conferência de Liderança Cristã do Sul (SCLC).
Maya emigraria pela primeira vez nestes anos 1960, já bem depois de se ter divorciado (1954), levando o seu filho, Guy, consigo para o Egito. Lá, trabalharia como editora de um jornal e conheceria e teria uma relação íntima com o ativista sul-africano Vusumzi Make, que a estimularia, ainda mais, o instinto revolucionário. Do Egito, foram para o Gana, onde Angelou colaborou de perto com a Universidade de Acra, a capital do país, mas também com a comunicação social, escrevendo e participando em diversos dos seus programas. Nesta cidade, conheceria Malcolm X, com quem esteve na fundação da Organização da Unidade Afroamericana, no ano de 1964, um ano antes de Angelou regressar aos Estados Unidos, mais concretamente para Los Angeles (sozinha, já que o seu filho havia ficado na faculdade, depois de ter sobrevivido a um aparatoso acidente). Neste regresso, reforçou as amizades (ou quase irmandades) com James Baldwin e com Rosa Guy, que havia conhecido em Nova Iorque. Aliás, seria Baldwin que a ajudaria a reerguer-se e a ser a tal porta-voz da luta racial e anti-discriminatória depois dela ter visto, tanto Malcolm, como Luther King, perecerem, assassinados. Para além da sua biografia, já mencionada acima, devotou a sua carreira a quebrar estereótipos e estigmas, a unir e a congregar, a abrir horizontes literários, musicais e cinematográficos para as gentes de etnia negra.
Exemplo disso é o filme “Georgia”, de 1972, realizado pelo sueco Stig Björkman para o qual escreve o argumento, sendo o primeiro escrito por uma mulher negra para o cinema. No ano seguinte, casar-se-ia com o galês Paul du Feu, de quem se divorciaria em 1981. De toda a sua participação literária, também muita televisão foi feita por Angelou, como na participação em “Roots” (minissérie de 1977), para além de colaborar de perto com artistas, como Roberta Flack, e também em encenações dramáticas, como “Moon on a Rainbow Shawl” (1988), baseada na obra de Errol John, em Londres. Fez, também, uma amizade profunda com a apresentadora Oprah Winfrey, que se tornou numa pupila sua.
Angelou, dos anos 80 em diante, destacar-se-ia nas inúmeras palestras que ia dando, mais ou menos informais, abordando temas sociais, mas também artísticos, literários e até filosóficos, recebendo, de igual forma, várias condecorações de diferentes universidades. Vários dos seus poemas seriam recitados em momentos relevantes do quotidiano norte-americano, como tomadas de posse de presidentes ou aniversários de grandes instituições internacionais. Angelou realizaria, ainda, um filme, de seu nome “Down in the Delta” (1998), abordando uma família afroamericana com diversos problemas, à procura de um novo alento num verão no estado do Mississippi. A escritora também declararia o seu apoio público nas primárias presidenciais em 2008, pelo Partido Democrata, a Hillary Clinton.
No que toca mais em concreto à sua carreira literária, desenvolveu, ainda, mais um conjunto significativo de autobiografias. Em 1974, “Gather Together in My Name” traz a sua experiência pessoal, após ter sido mãe, numa vida turbulenta, entre vários empregos e vários relacionamentos, de forma a prover subsistência para o seu filho. É um processo de autodescoberta e de auto-revelação o que se assiste, desta feita tendo como palco a sociedade e os seus membros. A descoberta de uma identidade que volta a fintar o racismo patente e que se afirma como um conjunto de viagens interiores e exteriores nesta sociedade pós-Segunda Guerra Mundial. Dois anos depois, “Singin’ and Swingin’ and Gettin’ Merry like Christmas” aborda a ligação desse período mais complicado e instável até à sua entrada no mundo da representação e do espetáculo, sem deixar de perder de vista o peso do racismo e da maternidade, mas abrindo portas a uma maior cosmopolitização, com mais experiências em mais lugares, com mais gentes de diferentes lugares.
Em 1981, “The Heart of a Woman” abriga a sua estadia em África, a sua dedicação à literatura e ao seu recém-envolvimento no movimento dos direitos civis. O trama acaba aquando da ida do seu filho para a faculdade, deixando-a às portas de um novo período de descoberta e, por sua vez, de liberdade, já sem as responsabilidades prementes da educação e do cuidado. É, talvez, o mais introspetivo dos períodos narrados, já que, por mais que viaje para fora, aquilo que a sua vida lhe proporciona implica mais transformações internas e mais revelações. É o que “All God’s Children Need Travelling Shoes” (1986) evidencia, até na própria forma como redige e como decide expandir os limites deste género literário. Entre os seus dilemas pessoais vigentes, procura encontrar humor e novidade, frutificando uma identidade afroamericana ainda mais forte e vincada, agora com o conhecimento das suas raízes africanas, enquanto vive no Gana. Angelou procura encontrar o seu sentimento de “lar”, à volta desta questão da herança genética, mas também do caminho que precisa de fazer para o achar.
“A Song Flung Up to Heaven”, lançada somente em 2002, absorve as perdas de Malcolm X e de Martin Luther King e as transformações políticas, sociais e culturais que vivenciou na primeira pessoa, que contribuíram para a sua transformação das suas relações pessoais e profissionais. É precisamente sobre uma relação pessoal que o próximo livro se foca, “Mom & Me” (2013): a relação com a sua mãe, que a havia abandonado e ao seu irmão e que havia sido negligente perante o seu companheiro, que havia abusado de Angelou. Acompanha-se, aqui, a transmutação de um ressentimento e de uma desconfiança latentes para uma sensação de paz e de aceitação e, enfim, de amor, após a sua mãe ajudá-la com o parto do seu filho e de estar lá, presente, para a acudir nos seus desamores conjugais e na sua monoparentalidade.
Na poesia, também são vários os seus marcos. “Just Give Me a Cool Drink of Water ‘fore I Diiie” (1971) abrange, na sua maioria, letras de canções compostas por Angelou e que, como tal, se encaixam na estrutura das canções dos blues e do jazz. O amor e a perda (deste mesmo) são os temas que permanecem bem vivos e que dialogam com a experiência de superação das comunidades afroamericanas perante uma sociedade castradora e discriminatória. Evocado é o vernáculo destas mesmas comunidades, num sentido pungente de identidade e de expressão validada, para além de uma ironia rasgada com humor que lhe permite codificar o seu ataque e a sua reação aos obstáculos sociais.
Com “Oh Pray My Wings Are Gonna Fit Me Well” (1973), o verso leve e fino procura fazer do mundano o universal, pegando no mais ínfimo objeto e fazer dele símbolo representador de emoções profundas, capazes de saber o que é o amor e a tensão, para além das já recorrentes temáticas raciais. Cinco anos depois, “And Still I Rise” é um cântico de superação das dificuldades tão rebatidas e do desconcertante desencorajamento que vai exprimindo, fazendo da sua voz e da sua força as armas das comunidades oprimidas e a sua resiliência. De 1983, “Shaker, Why Don’t You Sing” já mostra um tom diferente, de maior conformismo em relação à inevitabilidade do amor vacilar, assim como dos próprios sonhos; mas também dos perigos e das limitações que a liberdade pode ter subjacentes a si. Uma outra coleção, entre outras, deste seu caudal poético, que absorve todos estes predicados já mencionados é, de 1990, “I Shall Not Be Moved”. Trata-se de uma poesia no plural, que evoca a força do trabalho duro, relembrando as experiências opressoras da escravatura e das amarguras dos seus e dos descendentes, para além de procurar, a partir da universalidade, criar um discurso coerente e uno, que faça do amor a maior das forças nesta elevação humana.
São temas que também discute em ensaios seus, escritos, principalmente, já na década de 1990. “Wouldn’t Take Nothing for My Journey Now” (1993), inspirado no poema “On the Pulse of Morning”, da sua autoria, e que alavanca a sua argumentação de forma mais limpa, coerente e até científica, depurando os seus argumentos dos habituais recursos literários. São quase meditações aquelas que se apresentam e que abordam os temas da sua vida: a raça, o género, a maternidade, mas também outros, como a moda e a sensualidade da mulher negra. Questões mais existencialistas, entre a vida e a morte, são tocadas ao de leve, subtilmente entregues para mais tarde da sua carreira e vida. “Even the Stars Look Lonesome” (1997) desdobra sobre as origens da sua ancestralidade, que apontam para África, mas também para outras nuances, como o sexo, a independência emocional e logística e a violência. Em suma, um diálogo aprofundado entre a vida e a arte, entre um encontro com Deus e com a realidade humana, entre aquilo que é o achado da divindade no mais comum da vida. Por fim, “Letter to My Daughter” (2009) é o seu work in progress, sem, todavia, beliscar a sua sabedoria literária e até filosófica. É um produto literário dedicado e direcionado à filha que nunca teve e, como tal, faz questão de se debruçar sobre as mulheres da sua vida, dos seus ensinamentos e das suas aspirações e inspirações.
Maya Angelou é um dos casos em que a literatura não é um mundo de ficção. É, em si mesmo, a sua própria vida, a sua própria mundividência. Está ali, vertida, a sua realidade, aquilo que viveu e não tanto o que poderia ter sido. É um exercício que se desdobra numa extensa caminhada de escrita, mas que não o seria sem a sua força motriz, a vida. Um exercício que assumiu diversas formas, com as suas peculiaridades, mas sem perder a sua essência: o valor de ser mulher, negra, mãe, independente emocionalmente. Angelou fez de uma infância traumática e tumultuosa um caminho de uma luz gradual, que foi iluminando o seu caminho na sua descoberta pelas curvas e pelas lombas da vida, por mais acidentadas. No fim, uma inesquecível memória que, felizmente, não será apagada e que ficou, quase toda, imortalizada. É assim que Maya Angelou continua a pulsar, a respirar, a encontrar-se e a descobrir-se. Numa vida que a literatura lhe permitiu continuar a viver.