MEO Kalorama (dia 3): a solenidade de Nick Cave, a irreverência de Peaches e a festa de Disclosure
Já a acusar algum cansaço, chegámos ao Parque da Bela Vista para o último dia de estreia do festival MEO Kalorama. Apesar de alguns problemas logísticos que se foram sentindo, característicos de uma primeira edição ainda a encontrar a sua voz, a aposta num cartaz de qualidade foi ganha. Sentiu-se isso num primeiro dia maioritariamente dedicado à electrónica de peso e num segundo dia com o regresso glorioso dos Arctic Monkeys a Portugal, entre outros óptimos nomes. Soubemos que o festival estará de regresso a Lisboa no próximo ano, entre os dias 31 de Agosto e 2 de Setembro.
O terceiro dia começou com um forte foco na música portuguesa, algo que nem sempre é comum em grandes festivais de Verão. Para além da abertura com a curadoria da associação Chelas é o Sítio (que inaugurou cada dia de festival), houve concertos do badalado cantador Tiago Bettencourt, dos novatos Grand Pulsar e do mais recente projecto de Tó Trips e de João Doce (dos Wraygunn), Club Makumba, assim como da electrónica dançável de Moullinex.
Ainda assim, a jóia da coroa nacional eram os Ornatos Violeta, que subiram ao palco MEO para o segundo concerto deste ano. Depois de anos sem se reunirem, os últimos anos (subtraímos os anos de pandemia) têm sido prolíferos em concertos dos Ornatos, o que, mesmo para fãs históricos da banda portuense, já começa a ameaçar a banalidade. Sentimos saudades de ter saudades de ver a banda a tocar as canções que nos marcaram tanto nos finais do século passado. Mas depois de os Ornatos subirem ao palco do último dia do MEO Kalorama, começaram a tocar as músicas quase todas d’O Monstro Precisa de Amigos e os astros alinharam-se para um concerto mítico de Manel Cruz e camaradas.
Com direito a crowdsurfing e subidas e descidas da escadaria colocada para Nick Cave, que tocaria duas horas mais tarde, milhares de pessoas acompanharam a banda no arranque falhado de “Dia Mau” e entoaram “Ouvi Dizer” e “Capitão Romance” a uma só voz. Poderia ser só mais um concerto de Ornatos Violeta, mas foi um concerto em que tudo estava certo e tudo deu certo.
Para algo completamente diferente, a canadiana Peaches tomou de assalto o Palco Colina com as suas mensagens directas, imagética sexual e electroclash delirante, que surpreenderam o público mais incauto, que se foi pondo mais à vontade juntamente com Peaches e os músicos e dançarinos que a acompanhavam. É que este concerto é uma festa de libertação sexual, em que os limites são delineados apenas para serem ultrapassados e questionados. Foi assim na última vez que Peaches esteve em Portugal, no NOS Alive de 2017, em que levou um gigante pénis insuflável, no qual entrou para caminhar sobre o público; foi assim em 2022, nesta adiada tour de celebração dos 20 anos de The Teaches of Peaches, o seu álbum de estreia como Peaches, lançado a 5 de setembro de 2000.
Salientando a passagem do tempo, Peaches entra em palco em cosplay de pessoa idosa, caminhando de andarilho, com as mamas de fora e envergando o já famoso chapéu em forma de vulva. Os trajes vão mudando ao longo do concerto, até que tanto a artista como a sua equipa se encontram praticamente nus. A crua performance é consistentemente hilariante mas não menos relevante por causa disso, num mundo ainda pejado de misoginia e ataques aos direitos das mulheres — a certa altura, Peaches revela um body em que se lê “Thank God for abortion”, numa clara referência à reversão do caso Roe v. Wade.
A música é minimalista, ancorado em batidas sujas de uma drum machine, completas com um baixo pré-gravado, guitarra elétrica com distorção a dar para os lados do hard rock e ritmos de bateria práticos e mecânicos. Passamos por todas as canções de The Teaches of Peaches, como não podia deixar de ser, incluindo “Rock Show” (perdão ao Legendary Tigerman, mas este foi o concerto mais rock ‘n’ roll do festival), “Lovertits” e a incontornável “Fuck the Pain Away” a fechar o alinhamento. “Boys Wanna Be Her” foi outro grande momento, em que Peaches assume uma posição de poder absoluto e concentra em si todas as atenções de quem a vê. “Pussy Mask” é uma antecipação do eventual sétimo álbum da artista, com referências à pandemia e uma actuação ainda mais explícita que tudo o que veio antes. Enfim, este concerto foi o elemento estranho do dia de festival e, por isso, ainda se tornou mais fascinante. Longa vida a Peaches!
A última vez que Nick Cave e os seus Bad Seeds estiveram em Lisboa foi em 2008. Depois de cancelado o concerto em nome próprio que marcaria o regresso à capital, foi finalmente ontem que Nick Cave voltou a pisar um palco a sul do Mondego. Três meses depois de actuar no NOS Primavera Sound, onde iniciou a digressão semanas depois de perder o segundo filho, Nick Cave não apresentou um alinhamento consideravelmente diferente na noite passada. Mas, se no Porto acusámos alguma frieza por parte do músico australiano, com uma rigidez quase de sobrevivência só quebrada pelo aflitivo “Just breathe” repetido até perder o fôlego e que terá levado muitos às lágrimas naquela noite, ontem assistimos a um Nick Cave mais solto, mais leve, com o seu humor tão bruto como carinhoso.
Nas duas horas e um quarto de duração do concerto, começando com “Get Ready for Love”, Nick Cave revezou-se entre a plataforma e o palco na habitual dança de mãos e de olhares entre público e artista, ser humano com ser humano. Passando por quase todos os álbuns lançados com os Bad Seeds, não esquecendo Carnage, que compôs com Warren Ellis, Nick Cave contrabalançou a rispidez de “From Her to Eternity” com a vulnerabilidade de “I Need You”; o diabo de “Red Right Hand” com Lucifer de “Higgs Boson Blues”.
Do álbum Abbatoir Blues tivemos, entre outras, “O Children”, que Nick Cave dedicou a Paula, a aniversariante da primeira fila. No início do encore, Nick Cave dedicou “Into My Arms” a Beatriz Lebre, depois de a mãe de Beatriz ter escrito para os Red Hand Files, plataforma onde Nick Cave responde a experiências de vida que os fãs partilham com ele. E foi neste momento que nos apercebemos, mais uma vez, do quão universal é a dor da perda. A fase actual de Nick Cave pode não reunir o consenso entre os fãs mais antigos, mas a sua dedicação, a sua entrega e partilha são as de sempre — viscerais.
Apesar de a grande enchente do dia ser devida a quem queria ver Nick Cave and the Bad Seeds, a chusma de gente que enchia o desnível em frente ao controverso Palco Colina comprovou que o regresso de Chet Faker a Portugal ao fim de três anos também era um dos eventos do dia. Depois de uns anos a passar por Nick Murphy (entre os quais se contou um melhor concerto que o de ontem no Festival Paredes de Coura), o heterónimo mais popular regressou por força do público, que aplaudiu profusamente o downtempo electrónico feito pelo artista.
O concerto manteve-se num registo mais clubbing durante uma boa parte de tempo, mantendo uma batida constante que o pobre sistema de som não ajudava. O pouco carisma de Chet Faker também não conferia um grande dinamismo à actuação, que acabou por cair numa modorra pouco cativante. Confessamos que não nos interessou muito, assim como não tinha interessado há sete anos, no NOS Alive. Parece que há coisas que não mudam.
Preferimos ir experimentar algo diferente, como o jazz de tons ciganos da chanteuse francesa Zaz. Os tons animados de café parisiense de “Comme ci, comme ça”, covers de Charles Aznavour e Maurice Chevalier, e até o funk roqueiro de “On s’en remet jamais” chamaram-nos mais a atenção. Apesar de tudo, não ficámos para assistir à longa setlist, que até contou com um dos poucos encores do festival, pois queríamos preparar-nos para a festa de encerramento do festival.
Essa veio com o duo britânico Disclosure, que trouxeram um espectáculo híbrido entre DJ set e live set, adicionando alguns sons e extra profundidade ao som clássico que tem definido os seus lançamentos desde o influente Settle, de 2013. Há uma espécie de inconfundível batida cafeinada e saltitante que os irmãos Guy e Howard Lawrence cunharam e refinaram, que é francamente cativante e dançável, tornando os seus sets numa explosão de energia ao vivo. Nota-se que os anos de estrada lhes fizeram bem para apurar o sequenciamento e a melhor maneira de manter o público cativado. Um bom exemplo foi a (ligeira) quebra de energia da mais recente “In My Arms”, que os Disclosure aproveitaram para tornar num momento de comunhão com o público, instando-nos a baixar todos até ao chão para depois saltarmos num momento libertador que impressionou até o duo.
Por entre as clássicas “White Noise”, “F for You” e “When a Fire Starts to Burn”, passámos pelas colaborações de peso com The Weeknd (uma ida ao espaço com “Nocturnal”) e Aminé e Slowthai (na suja e frenética “My High”), assim como pelas mais recentes “Waterfall” e “You’ve Got to Let Go If You Want to Be Free”. Já perto do final, “Latch” demonstrou que foi uma canção feita para ficar no acervo da música de dança para sempre, cantada em uníssono pelo público a queimar os últimos cartuchos de festival.
Depois desta libertação de energia mais que perfeita para fechar o festival, revivemos nas nossas mentes os momentos passados ao longo deste Verão de regresso de festivais de música e dar graças pela oportunidade de poder voltar a passar por tudo isto de novo. Só nos resta esperar pelo próximo ano. Até então!
Texto escrito por Bernardo Crastes e Linda Formiga.