Miguel Torga, o lírico das serras
A partir da expansiva vegetação e das extensas formas de vida das serras transmontanas, deu-se à luz Miguel Torga. Pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, Torga deu origem a um corpo de escrita inspirada e referente à coesão entre o ser humano e a natureza, coesão essa que se diluiu. Foi na urgência de a retomar que Torga nunca se coibiu de expressar com um lirismo pouco habitual para um médico de profissão. As obras escritas e deixadas para as seguintes gerações tornaram-se incontáveis, tais como as espécies das tão suas serras do norte de Portugal.
Nascido em São Martinho da Anta, no distrito de Vila Real, a 12 de agosto de 1907, cedo emigrou para o Brasil, onde trabalhou na fazenda do seu tio desde os 13 até aos 18 anos. Esta precoce viagem e estadia foi motivada pelo desgosto nutrido pelo jovem enquanto frequentava um seminário católico. Filho de um casal de lavradores, já havia exercido a função de moço de recados na cidade do Porto, à distância de uma viagem de comboio com o Rio Douro à vista. Na sucessão desta experiência, nasceu uma parte substancial da sua série autobiográfica “Criação do Mundo” (1981-2000). No seu regresso, e com o aval financeiro do seu emigrante tio, ingressa na Universidade de Coimbra para estudar Medicina e, na convivência com outros alunos, colabora na revista Presença (1927-1940) com escritores como José Régio, Fernando Pessoa, Vitorino Nemésio, João Gaspar Simões ou Aquilino Ribeiro. No entanto, e em 1930, assina com Edmundo de Bettencourt e Branquinho da Fonseca uma carta de dissensão e funda com estes as temporárias “Sinal” (1930) e “Manifesto” (1936). Em paralelo com esta atividade cooperativa, e ainda assumindo o seu nome real, desenvolveu algumas coletâneas em que a tónica assenta no dramatismo retórico.
Assim, e para que se compreenda a sucessão dos passos seguintes da vida e obra de Torga, importa compreender o pseudónimo assumido por este. O nome “Miguel” associa o autor a uma corrente de nomes espanhóis de vulto, tais como Miguel de Cervantes ou Miguel de Unamuno, cujo trabalho privilegiava os valores da identidade espanhola e essa apetência para o pensamento ousado, humanizado e irreverente. Já o apelido “Torga” refere-se à raiz da urze, arbusto belo e firme que providenciam um modelo para o autor seguir na sucessão da sua realização. Este apontamento imprime também a importância para o português da consistência e do respeito pelas origens a manter perante a variedade e a relatividade dos contextos em que vive. Estes princípios líricos seguem explanados em várias obras do repertório de Torga, tais como:
- “Lamentação” (1934),
- “O Outro Livro de Job” (1936),
- “Libertação” (1944),
- “Odes” (1946),
- “Nihil Sibi” (1948),
- “Cântico do Homem” (1950),
- “Penas do Purgatório” (1954),
- “Orfeu Rebelde” (1958),
- “Câmara Ardente” (1962),
- “Poemas Ibéricos” (1965)
Numa fase em que era propícia a associação por parte dos autores a correntes literárias, Torga sempre se afirmou como independente a quaisquer uma destas. As suas composições poéticas revelaram-se desde cedo como estreitas em relação ao bucolismo da sua Natureza natal, para além de contemplar algumas reflexões existenciais e sociais sobre a justiça, a morte, o ser português e os seus vícios. Os primeiros segmentos da sua obra primavam desde já pela alusão à aliança entre o homem e a terra da qual o mesmo provinha, como solo e como natureza. Esta espécie de pretensão de alcançar o absoluto não se opõe, porém, à ideia de felicidade no relativo de Torga. O relativo dizia respeito à contradição, à luta no sentido de uma “esperança desesperada”. Nesse sentido, e para compreender a pluralidade de caminhos que poderiam ser seguidos, o registo assumiu uma via introspetiva e proativa perante a vida e a sua decorrência.
Chegando a uma das suas obras mais conotadas (“Bichos”, de 1940), assiste-se à composição em prosa de uma nova sociedade entre homens e animais, na qual todos os ideais advogados pelo autor saltam para uma realidade que revoluciona e impressiona toda a visão cultural nacional. De forma implícita, apresenta-se um apelo de transcendência do leitor, incentivando-o a regressar às origens do seu ser e à plataforma mais intrínseca da Natureza. A discussão das questões prementes da sociedade é catapultada pela pureza animal e pelas vicissitudes que esta possui no reverso da sua existência. Uma viagem que procura a ressurgência dos instintos na expressão humana, remetendo-o à posição de igualdade na Natureza e perante toda a sua fraternidade.
“Os poetas são loucos.
E poucos
Acreditam
Que a loucura
É o dom do eterno em cada criatura.”Miguel Torga em “Flor Preservada” (excerto). Coimbra, 16 de Outubro de 1958
Também os dezasseis volumes de “Diário” (1941-1999) refletiram algumas das premissas dessa ótica tão sui generis do autor, cruzando também vários géneros e aspetos histórico-culturais, para além de notas adicionais tomadas nas suas viagens dentro do país. Já a intervenção cívica deixou-a para um tipo literário bastante profícuo nesse aspeto, sendo este o teatro. Torga compôs quatro peças onde reforçou de novo os seus ideais inovadores, pondo a sua figura em cheque perante o regime e levando-o a conhecer o sabor da proibição da publicação dos seus trabalhos. Tudo isto enquanto exercia medicina na especialidade de otorrinolaringologia numa clínica na região transmontana. No rescaldo da queda do Estado Novo, opunha-se à azáfama publicitária e ao bulício daí advindo, não obstante manifestar publicamente o seu apoio à candidatura de Ramalho Eanes à presidência da República. Como descendência, deixou uma filha de nome Clara, fruto do matrimónio que contraiu com a belga Andrée Crabbé. No final da sua vida, em 1993, Torga padece de cancro e parte dois anos depois, a 17 de janeiro de 1995. Ao lado do lugar onde jaz, reluz uma torga plantada e erigida em tributo à sua vida e à obra onde proclama a virtude dessas serras e das suas origens.
Miguel Torga exibiu-se como um dos nomes grandes da literatura portuguesa. Foi a sua singularidade que lhe conduziu o Prémio Camões (1989) e lhe proporcionou a nomeação a Prémio Nobel da Literatura por duas ocasiões (1960 e 1978). Uma unicidade que muito se debateu perante o melhor da vida e do país, do seu Portugal e das suas serras. A linguagem viva, colorida e espontânea com a qual redigiu grande parte das suas obras deu a oportunidade dos teóricos o associarem ao modernismo e ao presencismo inerente a este. Perante a presença, desejava ajudar e ser ajudado pelas suas serras em horas de produzir literatura. Era esta a medicação que trazia na mente para toda a humanidade, como médico de profissão que era. Na essência, trazia o humanismo a pulsar no verdejante das suas raízes. Um cantar poético e cósmico mas sem nunca prescindir da sinceridade que tão bem e tão oportunamente caraterizava a sociedade.
“Sobretudo, não desesperar. Não cair no ódio, nem na renúncia. Ser homem no meio de carneiros, ter lógica no meio de sofismas, amar o povo no meio da retórica.”
Miguel Torga em “Diário” (volume de 1947)