Mister Ilitch

por Leonardo Cruz,    3 Julho, 2022
Mister Ilitch
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“Estar deitado não era para Iliá Ilitch uma necessidade, como um doente ou como uma pessoa que quer dormir, nem como se estivesse cansado, nem por deleite, como um preguiçoso: era esse o seu estado normal.” (Oblomov, página 13, Ed. Tinta-da-china)

Interrompo a leitura para um “ALERTA INFORMAÇÃO A MAIS”: no outro dia fui à casa de banho para fazer número 1 e, distraído, acabei por desapertar as calças. Já que me encontrava desbarrigado, aproveitei para me lançar ao número 2. De outra forma voltaria a abotoar as calças sem qualquer aproveitamento prático. Satisfeito com a inteligente decisão, enviei mensagem a um neurocientista amigo questionando o nome desta capacidade de rápido raciocínio com benefício imediato. A leve esperança de um elogio desvaneceu-se na resposta, que veio em forma de link para um dicionário.

pre·gui·ça
(latim pigritia, -ae, lentidão, vagar, preguiça)
nome feminino
1. Propensão para não trabalhar. = INDOLÊNCIA, MANDRIICE, ÓCIO, VADIAGEM
2. Gosto de estar na cama ou de se levantar tarde.
3. Demora ou lentidão em agir. = VAGAR
4. Pau grosso… (…).

Incrível, pensei, sou a personificação do conceito: cumpro três em quatro dos primeiros significados.

Tão antiga como a humanidade, a preguiça tem representação na mitologia grega pela divindade Aergia, que também simboliza a ociosidade, a indolência e o cansaço. A sua figura (que também pertence à história dos deuses romanos com o nome Socordia) é representada, segundo a wikipedia, com “o rosto sonolento, uma capa de teias de aranha e junto a rocas quebradas, símbolo de sua aversão pelo trabalho”. Ou, como se diz em minha casa, “espelho”.

Apesar de, na Grécia Antiga, o ócio ser visto como essencial ao pensamento e à reflexão filosófica, hoje em dia esta condição, patológica para este que vos escreve, é bastante desconsiderada pela sociedade. Antes de mais, a preguiça é um “pecado capital”, proibidíssimo pelos costumes católicos (ai, ai, está ali um preguiçoso, o pecador!). A tradição trata de incutir logo às crianças que é má: desde a fábula da cigarra e da formiga aos provérbios populares (“a preguiça é a chave da pobreza”, “a quem dorme ou preguiça, nunca lhe acode a justiça”, etc).

Pois bem, se não me der muito trabalho, pretendo aqui apresentar a minha relação com a preguiça tentando que me aceitem como sou e, já agora e se não for pedir muito, espoletar um subsídiozinho do Estado (ou privado, tanto faz) que me sustente enquanto eu faço pouco mais que nada.

Para começar, gostava que valorizassem a minha inação como vantajosa: não chateio ninguém, gosto de estar em casa a ver televisão ou ouvir música (sempre em aceitável volume de som, não tanto para não incomodar os vizinhos como para precaver-me de ir à porta se vierem reclamar). Gosto de ler, o que não molesta os demais, e só consigo fazê-lo em silêncio — curiosamente duas das minhas personagens literárias preferidas são Bartleby (“preferia não o fazer”) de Herman Melville e Oblomov, de Ivan Gontcharov. Por vezes encontro-me a jogar no computador, interpretando um virtual abnegado treinador de futebol (uma amiga diz-me que o Football Manager é o videojogo dos mandriões: “até no computador não jogas, mandas jogar”, valha-lhe Eusébio pela ignorância).

Por via da minha inércia natural, não consta que tenha contaminado alguém com covid. Fui dos primeiros a aceitar com bravura os acatamentos da DGS. Quando apelaram aos portugueses que ficassem em casa, eu respondi sem hesitar: “OK”.

Contribuo para a sustentabilidade do planeta, tento dormir até tarde o mais que posso, e poupo ao máximo as solas dos sapatos. Só não ajudo mais a humanidade com a minha inação porque não me deixam.

Sou pacato, rejeito qualquer tipo de fundamentalismo. A minha veia agnóstica talvez tenha surgido nas missas a que me obrigaram a frequentar em criança, no preciso momento em que o padre mandou levantar os fiéis. Já vi jogos de ténis ao vivo a olhar apenas para um dos jogadores, e em jogos de futebol do meu clube desejei secretamente que não marcássemos mais golos, só para poder ter mais um pouco de sossego.

Outros, coitados, pensarão de forma diferente. O homem que capturou Bin Laden, o almirante americano William H. McRaven, diz no seu livro motivacional “Faz a Tua Cama” que, para mudar o mundo, devemos começar o dia realizando pequenas tarefas como arrumar o quarto. Em primeiro lugar, senhor almirante, não tenho tempo para mudar o mundo: tenho demasiadas coisas para procrastinar e outras para evitar. Em segundo, William, se quiseres podes começar por minha casa todos os dias. Travo sérias lutas com a consciência por não interiorizar o conceito de iniciar algo que será desfeito de seguida. Considero pura perda de tempo, por exemplo, fazer a cama, lavar o carro, etc. Por essa lógica, cogitará o leitor, nem sequer tomo banho. Mas não é o caso, sou bastante lavadinho. Até porque cheirar mal afasta as pessoas e eu preciso delas para que façam as coisas por mim. Tomo banho todos os dias, sim, senhores. Mas não me esfrego muito.

Uma coisa vos garanto, com pouca certeza. O mundo seria um lugar melhor se existissem mais madraços. Se Putin, antes de invadir a Ucrânia, dissesse para o seu ministro da defesa: “talvez amanhã”. Ou Hitler só fosse responsável por um holocausto nos seus sonhos. Se Pinto da Costa se decidisse a tirar a hegemonia do meu clube, apenas quando tivesse tempo.

Enfim, muito mais haveria a dizer sobre este tema, mas não me apetece. Vou só ler mais um pouquinho do Oblomov, que hoje ainda tenho que assegurar que os rapazes do Bournemouth não me deixam ficar mal na terceira eliminatória da FA Cup. Caramba, que dia.

“Depois de uma dolorosa reflexão, agarrou numa pena, puxou do canto um livro e quis ler, escrever e pensar numa hora tudo o que não lera, não escrevera nem pensara durante dez anos.

O que devia fazer agora? Avançar ou ficar parado? Esta pergunta oblomoviana era para ele mais profunda do que a hamletiana. Avançar significa despir o amplo roupão não apenas dos ombros, mas também da alma, juntamente com o pó varrer ao mesmo tempo as teias de aranha dos olhos e recuperar a vista.” (Oblomov, página 244, Ed. Tinta-da-china)

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