Nicolas Jaar põe-nos num estado de trance em “Cenizas”

por Bernardo Crastes,    1 Abril, 2020
Nicolas Jaar põe-nos num estado de trance em “Cenizas”
Capa do álbum
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Ainda nem estamos a um quarto de 2020, e Nicolas Jaar já lançou o seu segundo álbum do ano. Não obstante, Cenizas é um álbum bastante diferente de 2017 – 2019, o segundo álbum do seu alter ego mais orientado às pistas de dança, Against All Logic, lançado há pouco menos de dois meses. Não que os dois sejam propriamente a noite e o dia, mas se 2017 – 2019 é a rave que se dá na hecatombe do nosso caos contemporâneo, Cenizas é o cenário pós-apocalíptico, quando as cinzas da revolução ainda estão quentes. No entanto, ambos os discos foram gravados ao longo do mesmo período de tempo. O sucinto press release para este último descreve-o como a representação da vida e criação artística de Nicolas entre 2017 e 2019 — nem mais nem menos.

O álbum abre de forma lúgubre, com o drone vibratório de “Vanish” e um clarinete funéreo a trazer à mente uma espécie de música new age distorcida. A adicionar à desolação, a voz de Nicolas multiplica-se num coro que entoa “say you’re coming back”. Nestes tempos de isolamento social e estranheza, soa quase a um apelo a que as coisas voltem à normalidade. No geral, a toada não especialmente rejubilante mantém-se ao longo de todo o disco. A música do artista chileno-americano sempre teve algum negrume, mas Cenizas abraça-o na totalidade.

O conceito é bem representado na canção homónima, uma slow burner com uma melodia verdadeiramente desoladora, a voz ecoante de Nicolas e uma atmosfera pesada de sons que, estendendo a ideia sugerida pelo título, trazem à mente cinzas fustigadas pelo vento. A canção apresenta ainda a primeira batida compassada do disco, já 10 minutos depois de o mesmo ter começado. O ritmo arrasta-se por entre os sons, com algumas chicotadas de percussão e um baixo bem pronunciado. Uma belíssima elegia em espanhol, cantada na voz profunda de Nicolas.

A sua voz impressiona ainda, por exemplo, quando se eleva no clímax emocional de “Mud”, uma canção com um ritmo midtempo hipnótico e produção suja, que seguramente se tornará numa das favoritas de quem procura o artista pelo seu lado mais acessível. No entanto, a voz habita o disco para além das palavras, contribuindo para as harmonias com uma presença espectral, moldando-se e estendendo-se para criar o ambiente fantasmagórico que se vive em muitas das suas composições.

Para além do drone envolvente das notas sustidas, a produção imersiva do álbum revela-se ainda nas texturas de alguns sons, numa componente quase indutora de ASMR. “Gocce” une sons irregulares, que parecem ser feitos por um pica-pau nervoso, a uma base rítmica varrida e cordas de piano espiraladas, numa composição jazz bem nocturna. Um estridente saxofone e cliques subaquáticos competem pela nossa atenção em “Rubble”, enquanto umas teclas suaves unem tudo. Novamente pegando na voz, em “Sunder”, Nicolas sussurra-nos sensualmente aos ouvidos, subindo pela parte de trás da cabeça até aos centros de prazer do cérebro. Para quem se vê em isolamento social e romântico, isto é o mais perto de sexo que se pode ter.

“Hello, Chain” reutiliza a melodia de “Faith”, de 2017 – 2019. No meio do trance obscuro que Cenizas suscita, é uma agradável surpresa que se compara a rever um estranho na ressaca do after depois de o ter visto pela primeira vez na discoteca. Apesar da aparente seriedade de alguma da sua música, Nicolas Jaar deixa sempre levantar um pouco o véu de algumas brincadeiras estilísticas — nem que seja apenas um pequeno piscar de olho, como esta auto-referência.

Mais perto do final, “Garden” alumia a escuridão de rompante com uma tristeza de poucos artifícios, que chama a atenção pela forma directa como é exprimida, através de uma melodia de piano reminiscente das composições da caixa de música de Aphex Twin. A fechar, “Faith Made of Silk” depura os diversos elementos do álbum numa embalagem concisa e directa, muito pela batida electrónica leve e sedosa sob a superfície, que segura a percussão dispersa em ritmo jazz, que prossegue em aceleração contínua até à velocidade do breakbeat. A melodia e algo que se assemelha a um refrão vão inchando até ao final repentino, em que algo renasce das cinzas, num flash de som. O minuto de silêncio que se segue permite-nos completar a narrativa na nossa imaginação.

Em primeiras audições, é fácil perder muitos dos detalhes de Cenizas. Aliás, este é um álbum que requer atenção indisputada, mas a recompensa do trance que induz é enorme. O seu tom melancólico talvez não seja o mais adequado ao estado de espírito sorumbático que se vive nestes dias. Mas para quem se sentir capaz de lidar com estas sensações, é um álbum talhado para se ouvir na reclusão das nossas casas.

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