“Norman Fucking Rockwell!”: Lana del Rey ao leme da pop
O lançamento de Norman Fucking Rockwell! (NFR!) é um dos acontecimentos musicais do ano: marca o momento em que uma das artistas pop mais disfóricas e controversas da década lança o seu primeiro álbum universalmente aclamado. É injusto, contudo, considerar-se que o génio da sua mais recente obra é algo inédito no contexto da discografia. O talento de Lana del Rey – voz, letras, e canções (embora quase sempre em parceria com outros compositores) – está mais ou menos à vista desde o seu primeiro trabalho (Lana Del Ray A.K.A. Lizzy Grant, de 2010), ou pelo menos desde a edição de Born to Die, em 2012. Se dúvidas restassem, dois anos depois Ultraviolence nascia com um crivo de qualidade ainda maior, símbolo de uma pop mal compreendida e vítima de desproporcionais e frequentemente injustos julgamentos. Mas, mesmo apreciando muito o segmento inaugural da sua carreira, há que admitir que estes dez anos foram palco de maturação para a voz e a sensibilidade da cantora. Hoje, mais do que nos primeiros álbuns, a vulnerabilidade de Lana é possante e tem peso; sente-se rumo e controlo nas emoções da sua voz.
Uma coisa parecia mais ou menos evidente desde o princípio: a sonoridade global de cada álbum da artista era mutável. Sem nunca largar o leme da sua carreira, Lana del Rey confiou-se a diferentes ventos: em produtores com quem decidiu trabalhar ao longo dos anos injectaram diferentes intuições sobre a sua música, e levaram-na a diferentes portos. Talvez por neste caso o toque da produção ser especialmente evidente (a par de Ultraviolence, produzido por Dan Auerbach dos The Black Keys), é por aí que devemos começar. Foi Jack Antonoff o convidado a tomar os comandos neste disco; nos últimos anos, Antonoff ofereceu bons contributos aos mais recentes trabalhos de Lorde e St. Vincent, mas NFR! está, a meu ver, noutro patamar de sofisticação. Dá-se a feliz coincidência da produção mais inspirada com que Lana já trabalhou se encontrar com muitas das melhores composições da sua carreira. Essa conjunção brilhante faz de NFR! um poço de coisas boas.
Comecemos pelo pontapé de saída mais óbvio: embora não seja a primeira faixa do disco, “Venice Bitch”, que surge em terceiro lugar no alinhamento, é o maior statement de NFR!. Lançada no outono de 2018, quase um ano antes do lançamento do álbum, é o tema instrumentalmente mais disruptivo e ambicioso da sua discografia. Músicas longas funcionam quando dão espaço a si próprias, quando se deixam explorar com o devido tempo, quando ainda revelam surpresas ao oitavo minuto. É o caso desta. A coda instrumental de “Venice Bitch” amplifica as emoções que a primeira secção apresenta; nas suas reviravoltas sonhadoras e ansiosas, expressa coisas que as palavras teriam dificuldade em dizer. Não consigo expressar o quão bem funcionam as modulações do sintetizador agudo que flutua e se contorce como serpente, emaranhando-se com as restantes frequências, ecos, guitarras e distorções que se desenrolam ao longo da canção. É uma experiência sónica que não deixa de me surpreender, mesmo ao cabo de várias dezenas de audições. Um momento triunfante na carreira de Lana del Rey, que consegue ser expansivo e contido em igual medida.
Alternadamente, um piano, uma guitarra ou uma orquestra de câmara dão o mote aos temas de NFR!. O piano é aquele que mais vezes casou com a voz da artista na maior parte da sua discografia; talvez por isso soem especialmente frescos os momentos em que é a guitarra a acompanhá-la com maior destaque. Os efeitos que Antonoff vai buscar à guitarra são óptimos pretextos de visita, pontos de interesse num trabalho cheio de ricos apontamentos. A marca de Antonoff na maior parte destes temas é tão forte que um ouvinte que desconhecesse os créditos de cada canção conseguiria provavelmente detectar, à primeira audição, qual a música que interrompe a sequência inicial que tem mão do produtor. “Doin’ Time”, cover dos Sublime que Lana torna sua, chega mesmo a pecar um pouco ao nível da equalização – os coros e alguns detalhes não são exactamente condizentes, em termos de assinatura, com o restante álbum. É uma música que vem abanar a primeira metade do álbum, mas que funciona muito melhor de forma isolada do que na estética e na sequência de NFR!.
Já o trio seguinte de temas é um deslumbre harmónico constante. A orquestra de cordas assume um lugar especialmente proeminente – o som sustentado dos arcos é processado de uma maneira não óbvia, assombrosa. Em “Love Song”, por exemplo, parece que os violinos e violoncelos se encontram espalmados, como se não lhes fosse permitido dominarem o espaço. Essa contenção resulta em vagas suaves e tristes. Ainda neste mesmo tema, atente-se na voz de Lana, assim como nos coros também interpretados por ela: não há comparação possível com “Doin’ Time”; há aqui um outro envolvimento, a produção une os elementos e ata-os de maneira mais orgânica. A magia volta a reproduzir-se em “Cinnamon Girl” e “How to Disappear”, embora sempre com novas faces a destacar neste poliedro de ideias fervilhantes. Mas nem todos estão de acordo com esta apreciação.
Uma das críticas mais apontadas a NFR! é a da similaridade dos seus temas. É um pau de dois bicos – aquilo que aos ouvidos de uns parecem ser composições parecidas e desinteressantes, aos meus soam-me como uma base sólida de constante qualidade, sob a qual múltiplas experimentações acontecem, de maneiras discretas mas emocionalmente eficazes. Embora eu já tivesse um histórico de apreciação positiva da música da Lana del Rey, este álbum precisou ainda assim de meia-dúzia de audições para se abrir de forma mais evidente. O primeiro single, “Mariners Apartment Complex”, que já passava nas rádios desde o verão anterior ao lançamento do disco, só me convenceu ao ser ouvido no contexto de NFR!, e é hoje um dos meus temas preferidos. Há variações sobre este quadro, e vale a pena procurá-las com ouvido atento.
Queria dedicar algumas palavras a um tema lírico que se destaca no disco: a força. No contexto das suas relações românticas, Lana del Rey questiona com frequência, ao longo do álbum, quem é o mais forte. Não é um pormenor de somenos no contexto da poesia de Del Rey, que desde o seu primeiro disco deixou bem evidente que se sentia uma mulher desprotegida nas mãos de homens que a dominavam (facto que, importa explicitá-lo, parecia agradar-lhe tremendamente). Em NFR!, estas convenções são subvertidas, revelando que algo mudou na atitude interpessoal da artista. É uma mudança bem-vinda, que abana paradigmas. “You don’t ever have to be stronger than you really are when you’re lying in my harms“, canta Lana em “California”. E vai mais longe em “Mariner’s Apartment Complex” – “I ain’t no candle in the wind / I’m the board, the nightning, the thunder / (…) Your’re lost at sea, then I’ll command your boat to me again / (…) I’m your man“. Ao tecer as palavras desta forma, coloca simultaneamente em cima da mesa duas perspectivas importantes: a independência, a liderança e a força da mulher; mas também um reconhecimento cru e sensível da vulnerabilidade do homem. Pela voz de Del Rey, evidencia-se uma vez mais que, mais do que os papéis que tantas vezes nos representam, somos acima de tudo humanos; quem não cuida e não sei deixa cuidar fecha-se à possibilidade de uma relação honesta e aberta. Não era dela que esperávamos esta chamada de atenção.
A segunda metade do álbum não me atinge com a mesma força que a primeira. Ainda assim, momentos como “The Greatest” e “Hope is a dangerous thing for a woman like me to have” são destaques evidentes, de elevado fulgor, que conduzem o disco a um digno encerramento. A verdade é que a ambição de Lana del Rey foi frutuosa, e levou-a a bom porto, depois de os seus últimos dois trabalhos terem sido, a meu ver, mais desinteressantes que a sua restante carreira. NFR! é uma promessa de coisas boas, e eleva a fasquia do seu futuro artístico – as perspectivas são animadoras para os fãs da artista, que confessou recentemente que se sente bastante inspirada, e prometeu o lançamento de um novo disco em 2020.
Em “The next best american record”, ouve-se a história que conduziu a este disco: “we were so obsessed with writing the next best american record / that we gave all we had ‘til the time we got to bed ‘cause we knew we could“. Esta dedicação e entrega ao trabalho criativo em que a dupla Del Rey e Antonoff mergulharam é mais que audível. E o disco só não é melhor american record do ano porque Weyes Blood lançou “Titanic Rising” meses antes. Mas NFR! é a coroação da música de Lana; e ela merece-a de forma absoluta.