NOS Primavera Sound (dia 2): energia para combater o frio
Depois de um primeiro dia chuvoso e de alguns percalços, o NOS Primavera Sound finalmente foi agraciado com o sol que normalmente caracteriza o certame. O frio primaveril continuou a fazer-se sentir e provavelmente terá inspirado os festivaleiros a agitar-se mais para não se deixarem afectar pelo mesmo. Se havia algum dia para isso, terá sido certamente este, com os seus concertos de octanas elevadas.
No entanto, o início do festival, para nós, foi exactamente o oposto. À frente do palco NOS já se tinha formado uma pequena massa (da qual fazíamos parte) para ver Aldous Harding, que lançou recentemente o excelente álbum Designer. A artista fez o festival adaptar-se ao seu próprio ritmo. Apareceu cinco minutos depois da hora marcada, fez longas pausas entre canções e não se deixou amedrontar pelo bulício festivaleiro, equilibrando o seu estilo folk por vezes meditabundo, por vezes mais animado, mas quase sempre lento. A sua personalidade quirky e expressiva não pareceu forçada, apenas característica de alguém com uma visão muito bem definida, talvez até com laivos de genialidade. Percorreu o reportório do mais recente álbum, das quais se destacam a emotiva “Treasure” e a alegre “The Barrel”. A intromissão do ruído dos coreanos Jambinai, que actuavam no palco SEAT, levou a que avançasse para terrenos mais movimentados, nomeadamente demonstrando uma nova canção, “Old Peel”, bem ritmada e diferente do que fez até então. O final de tarde assentou-lhe bem, mas um palco mais intimista e isolado teria sido mais adequado.
Mesmo ao lado, no palco Super Bock, actuou mais uma promessa feminina da música de guitarras contemporânea. Com apenas 22 anos, Nilüfer Yanya fez virar muitas cabeças com os seus singles e EPs ao longo dos últimos anos, que ansiavam o lançamento do primeiro álbum. Esse chegou este ano, com mais distorção do que esperado, mas também com algumas guitarras nocturnas que puxam ao som do conterrâneo King Krule. Nilüfer confessou-nos estar a sentir-se doente, algo que se notou na sua voz e retirou um pouco de confiança e extravagância ao concerto. Ainda assim, instrumentalmente, não há falhas a apontar. Passando tanto pela sensualidade de “Safety Net”, como navegando pela expansiva “Baby Blu”, a guitarra com a quantidade de reverberação certa soou sempre bem. Ainda assim, sem desmérito para a artista, preferimos vê-la no seu melhor.
Assim, fomos ao palco Pull&Bear finalmente deitar-nos na relva, ao sol, e ouvir um outro lado da música londrina. A cena de jazz com influências africanas que rebentou no ano passado tem dado muitos frutos, bem exemplificados na colectânea We Out Here, na qual se inclui Nubya Garcia. A saxofonista uniu-se a uma banda completa para alguma improvisação rítmica e melódica, mas sempre agradável e sofisticada, desenvolvendo-se ao longo de longas composições com espaço para solos de contrabaixo e do próprio saxofone de Nubya. Como ouvimos alguém dizer no autocarro a caminho de casa, foi jazz, “mas não daquele complicado, ’tás a ver?” Foi o pano de fundo ideal para o entardecer.
Continuando na vaga feminina, regressámos ao maior palco do festival para rever a australiana Courtney Barnett. O entusiasmo não era muito, pois a artista pareceu ter perdido o ímpeto que os seus primeiros dois lançamentos criaram, desaparecendo um pouco dos píncaros da música rock. No entanto, para alívio nosso, admoestámo-nos por termos perdido a fé nela, pois ao vivo é sempre entusiasmante. Abriu o concerto com “Avant Gardener”, relembrando-nos do seu estilo de cantar pausado e das melodias soalheiras que a caracterizam, assim como da sua personalidade carismática e simpática. Com receio de cair na redundância, o início prometeu mais um excelente concerto de final de tarde, mas já puxando aos ritmos da noite. No entanto, não ficámos por lá para confirmar.
Continuando na senda do jazz londrino, o conjunto Sons of Kemet continuou o trabalho iniciado por Nubya Garcia, mas com mais toneladas de energia e ritmos incríveis. Quatro (!) baterias ladeavam o saxofone e tuba de Shabaka Hutchings e Theon Cross, respectivamente, reproduzindo as canções do terceiro álbum Your Queen is a Reptile, puxando sempre mais ao lado dançável da coisa. “My Queen is Anna Julia Cooper” levou a melodia reconhecível do saxofone até um clímax bem ancorado no som grave da tuba, com uma competição sonora entre as baterias, em que o maior vencedor foi o público. O infeliz cancelamento do concerto de Mura Masa levou a que muitos festivaleiros acabassem neste concerto, engrossando assim a massa de corpos dançantes que ali descobriram um som fresco e entusiasmante. Esse aumento de público também se revelou nas conversas paralelas, que retiravam o foco de momentos mais introspectivos. No final, Shabaka inspirou-nos a lutar pela construção de uma melhor utopia, porque as coisas não estão no bom caminho. No entanto, com música assim, é fácil levar o país para a frente, como urgem em “My Queen is Doreen Lawrence”.
Depois, chegou a hora do nome que muita controvérsia gerou nesta edição do festival: J Balvin. Um dos nomes maiores do reggaeton hasteou a sua bandeira sonora colombiana no Parque da Cidade e, a julgar pela quantidade de gente em frente ao palco, muita gente foi ao festival para a saudar. O início foi feito de alguns dos seus hits mais reconhecíveis, fornecidos numa quantidade que chegou a ser impressionante, para quem talvez não tivesse noção da omnipresença de J Balvin no panorama mainstream actual. “Machika” e “Con Altura” foram duas das primeiras, esta última sem a presença tão esperada de Rosalía, que apenas actuaria no festival amanhã, mas que será a figura máxima desta edição, com o seu espectro sempre a fazer-se sentir. Os visuais coloridos e trupe de dançarinos ajudaram à experiência do concerto, cujo objectivo é simplesmente o divertimento baseado na repetição do ritmo do reggaeton, sempre igual, mas também compulsivamente dançável.
Quem se livrou de preconceitos musicais, terá dançado e divertido-se despreocupadamente. Quem não o fez, tinha ao seu dispor os concertos de Liz Phair, rainha do lo-fi e precursora de muitos nomes actuais, e o hardcore dos Fucked Up. De Phair, apenas apanhámos o solo final, com pena nossa, mas Fucked Up claramente mantiveram o nível de decibéis elevado que se fez sentir ao longo de todo o dia no Palco SEAT.
Entrando mais no domínio da música electrónica, David August tomou o palco Pull&Bear com a sua parafernália sintetizadora. Com alguns momentos de música ambiente, o início do concerto foi uma construção de um clímax que parecia nunca vir, principalmente pelo burburinho que se ouvia em todo o festival e não dava espaço para grandes concentrações em paletes de som mais abstractas. No entanto, esse clímax acabou por chegar, sob a forma de carcaçadas techno que exercitaram o baixo das colunas para os concertos que se seguiriam nesse mesmo palco. No final, até tivemos direito a acompanhamento de guitarra, num momento reminiscente de Darkside, mas nunca com a classe do projecto de Dave Harrington e Nicolas Jaar.
Quatro anos depois, os Interpol voltaram a Portugal e ao NOS Primavera Sound e, a julgar pela plateia cheia do palco SEAT, já havia muitas saudades. Com o álbum Marauder, editado no ano passado, os Interpol doseiam bem as canções que os consagraram com outras que não têm lugar nas playlists radiofónicas. Paul Banks, Daniel Kessler e Sam Fogarino subiram ao palco com poucas palavras e para arrebatarem o público com uma setlist mais focada nos primeiros dois álbuns da banda. Como é habitual nos Interpol, não há grande interacção com o público, mas este parece não se preocupar com isso, com explosões de gáudio com aqueles temas que nos fizeram estar ali para os ouvir. Parece que é agora, muitos anos depois da saída de Carlos D., que os Interpol se sentem melhor em palco, honrando o legado e abrindo a porta a novas incursões e novas experiências sonoras, como pudemos já vislumbrar em Marauder e na versão ao vivo de “Fine Mess”, que dá nome ao EP lançado há semanas. Aguardamos um concerto em nome próprio, sem cumprir horário e, talvez, menos apressado. Quanto às palavras, ficamo-nos pelo universo das letras de Paul Banks.
Achámos que a JPEGMAFIA tinha calhado a infeliz tarefa de actuar ao mesmo tempo de James Blake, mas, a julgar pela quantidade de gente que foi ver o concerto do rapper, não parece ter sido uma tarefa infeliz. Com um simples computador portátil — que não escondeu do público, virando-o até para ele — JPEGMAFIA clicava no play e berrava por cima dos seus beats quebrados, lembrando um pouco Death Grips e outros projectos que cruzam o rap com música mais extrema. Certamente não era um concerto para toda a gente, mas, para fãs de electrónica e rap, as batidas frenéticas de “Real Nega” ou a massagem auditiva de “Thug Tears” terão sido belas oferendas. Ainda ouvimos a bela “How to Build a Relationship”, canção colaborativa com Flume, antes de irmos espreitar o palco principal.
Aí, James Blake explorava a sua recentemente encontrada alegria no amor, com as canções de Assume Form, o seu último álbum. Como de costume, foi um concerto que merecia um contexto mais intimista, pela natureza das canções do britânico. No entanto, continuou a encher a encosta do palco NOS com os seus jogos vocais que bebem da soul. Quando as canções não dependiam da voz, James fazia render as batidas profundas, como no segmento dançável que incluiu uma “Voyeur” estendida e “CMYK”. Entre canções, o artista nunca se mostrou tão expansivo na sua interacção com o público, vocalizando mais que uma vez o quão grato estava pela recepção calorosa do público. Mesmo durante as actuações, sentiu-se que havia uma maior leveza na sua postura, coadunando com a sua forma quase improvisada de tocar piano, que dá às suas canções aquele toque imprevisível. Assume Form já encontrou o seu lugar no coração dos fãs, que demonstraram muito entusiasmo ao ouvir a dulcíssima “I’ll Come Too” e a fantasmagórica “Barefoot in the Park” (mais uma vez, sem Rosalía), mas a canção mais celebrada foi mesmo “Retrograde”. O refrão que abre com “suddenly I’m hit” tem aquela linha de sintetizador que nos enche os ouvidos e nos eleva, e continua a ser uma das melhores coisas que James Blake já fez. Queríamos mais, mas, “contratualmente”, não podia ser. É sempre um prazer ouvir a sua voz, sr. Blake.
Antes da noite terminar com Helena Hauff, no palco Primavera Bits, SOPHIE redimiu-se do fraco set que fez no NOS Alive. Iniciando com paisagens ambiente mais contemplativas, preocupámo-nos que acabasse por ser demasiado abstracto, mas parece que SOPHIE estava realmente mais numa de se divertir e fazer com o que o público dedicado se divertisse também. O concerto foi uma destilação dos momentos mais catárticos do álbum OIL OF EVERY PEARL’S UN-INSIDES, com a explosão de “Whole New World”, a crocante “Ponyboy” e a fenomenal “Faceshopping”, que foi estendida, quebrada, retrabalhada e absolutamente destrutiva. SOPHIE transformou-se num ícone da cultura queer e a sua música é um reflexo disso, pegando em influências da bubblegum pop ou do house underground dos anos 90, vestindo-as com uma roupagem mais extrema muito actual. No final do concerto, SOPHIE trouxe a sua namorada ao palco, para um momento terno e jubiloso ao som de mais um banger, apto para fechar um concerto surpreendente e de muita qualidade.
As nuvens voltaram para o último dia de certame, que trará alguns dos nomes mais cobiçados da música, como Rosalía, Erykah Badu ou Snail Mail.
Texto escrito com contribuições de Linda Formiga.