NOS Primavera Sound: festival molhado, festival abençoado
Tantas previsões, tantas esperanças, tantas surpresas, e afinal foi o último dia de Primavera Sound que trouxe a chuva imparável. Depois de um dia nublado e outro mais soalheiro, o terceiro completou o ciclo da Primavera, demonstrando todas as suas faces. No entanto, apesar do dia miserável, o público não se amedrontou e, armado com guarda-chuvas e impermeáveis amiúde, enfrentou a chuva e o frio insistentes. O festival comportou-se à altura, sem problemas de maior, mantendo o foco naquilo que levou ali magotes de gente: a música.
Uma das mais belas surpresas deste cartaz foi Oso Leone. Depois de terem sido resgatados pela obscuridade pelo Paredes de Coura em 2014, nunca mais ouvimos falar deles, até aparecerem nas letras pequenas do Primavera Sound. A banda espanhola fez jus à recordação que tínhamos da sua música cálida e embrumada, começando o concerto com “Alçaria”, de Mokragora, álbum lançado em 2013. De resto, as canções apresentadas provavelmente pertencerão a um trabalho a ser editado em breve; estas levam a visão da banda mais à frente, mantendo aquele ambiente atmosférico característico, mas de uma forma mais concisa e talvez mais apelativa. A voz de Xavier Marin vibrava e o seu timbre fundia-se com a guitarra tocada apaixonadamente, espalhadas sobre batidas quentes que impeliam o pouco público presente a serpentear o corpo. Se calhar um fim de tarde com sol teria sido ideal, mas a música dos Oso Leone adapta-se a vários ambientes, sempre com o objectivo de relaxar quem a ouve. Talvez por isso a música dos australianos Rolling Blackouts Coastal Fever – que actuavam no palco SEAT – não tenha caído tão bem depois disto. Eles, que fazem indie pop de altas octanas, encontravam-se divertidos a tocar as suas canções e o público pareceu aderir bem à sua sonoridade despreocupada, que ao fim de algumas canções acabou por soar repetitiva.
De volta ao palco Super Bock, Kelela tentou afastar a chuva que por esta hora se começava a impôr no Parque da Cidade. O seu R&B aguerrido e electrónico lembrou o concerto de Sampha decorrido neste mesmo palco, no ano passado, mas a energia da cantora norte-americana transpareceu muito mais que no espectáculo do britânico. A actuação foi aquosa, em espírito com o clima, com batidas estimulantes que escorregaram pelos intervalos da chuva e chegaram aos ouvidos do público, que se mantinha entusiasmado face à meteorologia. “Eu não sou boa a cantar enquanto choro”, disse depois de se enganar inocentemente num dos temas, por estar tão emocionada pelo facto do público estar a suportar a chuva para a ouvir. A cantora manteve-se sempre energética e agradeceu com sinceridade o apoio do público, surpreendida pela recepção que recebeu numa cidade em que nunca tinha actuado. As músicas de Take Me Apart, álbum lançado o ano passado, não conseguiram trazer o sol, mas ficou claro que Kelela bem tentou.
O mar de impermeáveis fornecidos pela NOS rivalizava com o mar que caía lentamente do céu quando Metá Metá se apresentaram ao público do Parque da Cidade. Numa primeira fase, apenas o trio original composto por Juçara Marçal (voz), Kiko Dinucci (guitarra) e Thiago França (saxofone) se apresentou em palco, mas depois de uma introdução atmosférica – adequada ao céu tristonho – entraram em palco o baterista e o baixista. Trouxeram a sua música brasileira para o chuvoso tempo português e, durante mais de uma hora, o seu jazz pintalgado de rock por malhas potentes de baixo e guitarradas com funk à mistura entreteve o esparso público que ali se mantinha. Interagiram pouco com a multidão, agradecendo de música em música mas sem dizerem muito mais, concentrados em tocar com pujança e com critério. Apesar de cativarem pouco, conseguiram durante a sua actuação fazer com que a chuva parecesse tropical.
Noutra repescagem da edição de 2014 do Paredes de Coura, tivemos os Public Service Broadcasting. Desta vez, já se apresentaram com as suas próprias vozes e não através de softwares informáticos, com um carisma britânico castiço. A música cinemática da banda é composta por samples de filmes, discursos e outras gravações, que completam os ritmos dançáveis e mecânicos, unidos a guitarradas que até nos lembraram os Franz Ferdinand, a certa altura. A banda dá um concerto divertido, com referências às eras industriais e do advento da comunicação social, do cinema e do marketing, mas também acaba por cansar ao fim de um bocado, por isso fomos para outras paragens.
Ainda bem que o fizemos, pois Kelsey Lu foi certamente a surpresa do festival. A artista americana entrou no palco Pitchfork com movimentos delicados e subtis, os mesmos que a acompanharam durante toda a performance, e conquistou imediatamente o público com o primeiro tema, “Morning After Coffee”, do seu álbum de estreia Church. Só com guitarra e drum machine, Lu conseguiu encher o palco com a sua enorme voz, que fez esquecer o sangramento de som que vinha do palco Super Bock. O set oscilou entre o minimalismo das músicas antigas e o lado mais experimental das novas – como “Shades of Blue” -, instrumentalmente mais cheias e sonicamente mais densas, como inferido pelas mudanças nas luzes. Findo o espetáculo, Lu distribuiu as estrelícias que levou consigo para o palco – das suas favoritas, disse-nos – encantando por uma última vez uma audiência embevecida.
A par de Jay Som, os canadianos Wolf Parade foram os artistas a quem coube a difícil tarefa de servir de alternativa ao gigante Nick Cave – ou a um lugar protegido da chuva que continuava a cair regularmente. Nós estivemos no concerto destes últimos. Imaginem um concerto repleto de gente, à qual retiram aqueles ouvintes casuais e pessoas que estão ali para fazer tempo: o que resta é o sumo dos fãs. Não imaginávamos que houvesse tantos fãs da banda em Portugal – e mesmo assim são apenas poucas centenas de almas – para os quais a banda deu um dos concertos mais sentidos do festival. O facto de ter aquele aglomerado de pessoas a aguentar estoicamente a molha que o Porto lhes fornecia inspirou a banda, que carregou bem nas guitarras e na bateria intensa. Só queríamos ter ouvido melhor a voz de Spencer Krug – também conhecido como Moonface – mas as suas melodias tocadas nas teclas, que já são estandartes do som da banda, soaram épicas como sempre. O concerto foi mais focado no seminal álbum de estreia Apologies to the Queen Mary, mas “You’re Dreaming” e “Baby Blue”, do mais recente Cry Cry Cry, foram das melhores canções que se ouviram ao longo de todo o festival.
Sentia-se entre o público aquele frenesim que antecipa o cabeça de cartaz – não do dia, mas de todo o festival. Assobios, palmas, palco montado para a chegada dos The Bad Seeds e do seu líder – Nick Cave, lenda da música, influência transversal ao longo das últimas décadas. Ainda debaixo de chuva, embora os aguaceiros variassem de intensidade, somos sugados pela voz e pela presença do músico, que passeia pela boca do palco com ímpeto e intenção. Quem lhe agarra as mãos, na fila da frente, fá-lo por todo o público. É uma das grandes capacidades de Cave: unir; assim como emocionar.Ao longo da noite, a banda interpretou três canções do assombroso álbum mais recente do artista, Skeleton Tree; assim como outras três do clássico Let Love In. Mas houve ainda espaço para “Tupelo”, uma canção sobre tempestades, vivida debaixo da chuva insistente; para “The Weeping Song”, durante a qual Cave caminhou pelo público até chegar a uma plataforma no meio de todos. De lá, qual maestro absolutamente carismático, comandou as palmas ritmadas e a banda, numa construção progressiva de êxtase colectivo.
Mas dois dos grandes destaques da noite foram os dois temas de Push the Sky Away: “Jubilee Street”, sozinha, serviria para definir a palavra “música” numa enciclopédia audiovisual. O crescendo emotivo, a injecção de instrumentos e pormenores melódicos; tudo à mostra, com a qualidade de som do Palco NOS a fazer jus à entrega da banda. E, a encerrar, “Push the Sky Away”, momento de comunhão exacerbado pela presença de vinte de nós em palco, junto daquele que é, provavelmente, o maior frontman vivo. Encharcado, como nós, abandonou o palco, deixando para trás um rasto transformador, que dificilmente iremos esquecer. Um concerto absolutamente memorável.
No palco ao lado, a nave espacial de Nils Frahm esperava que a multidão que assistira a Nick Cave pudesse redistribuir-se. O cenário, com os múltiplos teclados e restante maquinaria forrados em tons de castanho, assemelha-se a uma confortável e futurista sala de estar. Eis que Nils entra: sorriso humilde, vénias acentuadas, gratidão desde o primeiro minuto. O que se segue é uma hora de magia – com quase todos os truques à vista. De olhos abertos, assistimos ao processo: o músico, envolvido e empenhado, chega a correr de um lado para o outro, à medida que acrescenta apontamentos neste ou naquele teclado. Mas, se fecharmos os olhos, embarcamos num mundo absorvente, indescritível e absurdamente belo. Na segunda metade do concerto, senta-se ao piano de cauda – pianista clássico de formação, passeia-se pelas camadas de electrónica que desenha com o seu génio criativo, num deleite rítmico, harmónico e melódico. Rimos muito durante o concerto. De pasmo e incompreensão. A beleza quer salvar-nos; que bonito, a música ser um meio de transcendência tão directo e acessível para nos comover e transformar.
Reza a lenda que os War on Drugs não são uma boa banda ao vivo. Por entre o vocalista Adam Granduciel cantar de forma desinspirada – não coadunando com as performances aguerridas que dá em álbum – e solos improvisados intermináveis, os concertos costumam desiludir aqueles que apreciam a sua música. No entanto, desta vez, a banda norte-americana deu provas em contrário; e que belas provas! “Strangest Thing”, música de viagem melancólica, não perdeu a sua capacidade de comover, principalmente quando as luzes permitiam vislumbrar a chuva a ser levada pelo vento agreste, num mini-cataclismo adequado à força emocional da banda. “An Ocean in Between the Waves” e o seu ritmo apressado foram bastante celebrados pelo público, que saltava e perdia-se por entre os riffs de guitarra que não têm outro epíteto senão o de épicos. Para o final, “Under the Pressure” foi das canções mais celebradas, principalmente pelo final intenso que culminou em Granduciel a atirar a sua guitarra ao chão, num gesto de libertação adequado ao crescendo emotivo que foi o concerto dos War on Drugs. Parece que as lendas nem sempre estão certas.
Ao longo de um dia recheado de óptimos concertos, esperava-se mais do fecho do palco NOS, que ficou a cargo dos Mogwai. O género em que se movem, o post-rock, é um que já não reserva muitas surpresas. As canções começam lentas e crescem até ao clímax pesado, em que o som já não aguenta mais, distorcendo-se numa intensidade brutal. Até a forma de agradecer da banda era sempre feita na mesma toada, fazendo-nos sentir como se estivéssemos a ouvir a mesma canção uma e outra vez. Não que a banda não soe bem, também pela sua enorme competência, mas simplesmente já não é uma sonoridade tão desafiante como se espera.
“Arca, precisamos que venhas actuar no NOS Primavera Sound.” “Está bem, a fazer o quê?” “Qualquer coisa.” Imaginamos que assim tenha nascido o espectáculo com que Alejandro Ghersi presenteou o público do palco Pitchfork: parte performance artística, com spoken word; parte experimentação sonora reminiscente dos seus primeiros dois álbuns; parte DJ set errático; arranjando ainda espaço para expor brevemente a sua voz angelical, como faz no seu mais recente álbum homónimo. Tudo isto é completado por uma componente visual caricata e pelo carisma de diva de Ghersi, que explora as fronteiras da androginia, numa atitude não conformativa, espelhada no seu outfit meio BDSM, meio drag queen. Foi algo inenarrável; uma performance caótica, cheia e desafiante, que decerto não terá deixado ninguém indiferente.
Assim se deu por terminada mais uma edição do NOS Primavera Sound, que enfrentou o desafio deste tempo invulgar de final de Primavera, saindo vitoriosa, graças à boa organização do festival, cujas alterações de disposição provaram ser bem sucedidas, resultando num espaço amplo, diverso e funcional. No entanto, está claro que o factor de maior peso é mesmo a qualidade do cartaz, que deu azo a concertos fenomenais, consolidando a posição do festival nos palmarés dos melhores eventos de música feitos em Portugal.
Artigo escrito com contribuições de Bernardo Crastes, Miguel Santos, Sara Miguel Dias e Tiago Mendes.