O adeus à infância em “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas”, de Tiago Guedes
O que é ser adulto senão acordar e vestir a farda que diz aos outros que também a vestem que temos tudo controlado? “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” é a desmistificação trágica e cómica da dor de crescimento que diz adeus à infância e olá à incerteza.
Não havia momento mais temível na escola que ir ao quadro ler uma composição. E não havia dilema mais complicado entre mentir e dizer que não tínhamos escrito nada – arriscando o também temível recado na caderneta – ou pegar na folha rascunhada, levantar e caminhar os dolorosos passos até enfrentar toda a turma, rezando que as palavras passassem rápido para voltar a sentar e desaparecer debaixo da carteira.
A típica vida adulta acaba por ser como uma ida ao quadro: levantar é doloroso, o caminho é penoso, e quando chegamos ao trabalho temos de suspirar e cumprir a ordem, ler o que nos pediram para escrever, ouvir o que nos dizem sobre o que fizemos quando, na nossa cabeça, já estamos no caminho de volta a casa, onde podemos desaparecer debaixo dos lençóis. E no dia seguinte há outra composição para ler.
“Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” é uma composição sobre a vida. Não a das girafas, mas dos adultos – como é dito a certo ponto, “o trabalho não é sobre as girafas, é sobre a razão de quereres falar delas”. Tiago Guedes capta a vida em filme na sua mais pura e teimosa dualidade, intimamente fundida: o yin e o yang da tristeza e da alegria, tão trágica quanto cómica em episódios do dia-a-dia ou em duras viagens ao passado.
A cena do filme em que Girafa grava (no “telemóvel da mulher que era minha mãe”) o pai a ler o significado da palavra “triste” no dicionário estando alegre e a definição de “alegre” estando triste é uma ilustração de baixa fidelidade do que Tiago Guedes tenta e certamente cumpre com a longa metragem: mostrar que rir na tragédia é tão natural quanto chorar de alegria.
“O abismo entre a vida e tentar inutilmente descrevê-la”
É o Discovery Channel que empurra Girafa e Judy Garland para a aventura, e mal eles sabem que esse é o canal de descoberta que vai mudar (ou mesmo fazer acabar) as suas vidas como as conhecem. As personagens do Velho, do Senhor do Banco, do Polícia, do Primeiro-Ministro e de Anton Tchekhov são cada um uma migalha no caminho da Girafa, que ela usa para regressar a casa e abrir a porta à compreensão do mundo adulto.
Girafa percebe que ser adulto – como “o Pai Natal, o teu banco ‘para todas as ocasiões’, as ilhas Maldivas ou os mapas” – é como uma mentira que um dia alguém criou e ninguém teve a coragem de desfazer, e então passeamos todos no palco da vida como marionetas de nós próprios. Percebe que, para ser adulta, tem que sufocar a sua essência de tábua rasa que é a infância e as suas simples inquietações como sufoca o urso de peluche.
Há uma citação retirada do filme que descreve muito bem a personagem de Tónan Quito, o adulto que veste de urso e que, sob lingo freudiano, é como que a personificação do id de Girafa: “as personagens menos credíveis são as pessoas mais interessantes”. Judy Garland, que preferia ser Spartacus ou Tchekhov, faz rir a cada palavrão – e são muitos – porque representa precisamente o que cada um de nós gostava de poder exteriorizar. Na definição do realizador, “o Judy representa tudo o que a Girafa reprime”. Quito é exímio numa personagem cuja vida é conter-se perante os outros, permitindo-se apenas ser ele consigo mesmo – ou seja, com Girafa, com quem há uma simbiose quase espiritual. Quando explode para os outros (que, de forma inteligente, não o conseguem ver) há o momento de ruptura no filme, onde Quito acaba mesmo por perder a vida, ou, como o próprio define: “uma merda de caminho sórdido numa floresta escura, e estamos sozinhos”.
O que é ser adulto senão acordar e vestir a farda que diz aos outros que também a vestem que temos tudo controlado? Sabemos onde estamos e para onde vamos e não fazemos birras, porque ninguém quer aturar infantilidades. Ser adulto para as crianças significa também vestir a pele pesada, mais experiente, da soma dos anos e das frustrações. Como nos explica Maria Abreu, a brilhante protagonista do filme de apenas 14 anos: “quando era criança, muito mais criança, dizia que o mundo dos adultos era muito mais fácil do que o nosso, mas hoje em dia digo o contrário. Digo que quando se é mais novo não se tem a noção da quantidade de maldade que existe perante nós. Mas diria que o mundo dos adultos tem muita confusão, tem coisas boas, tem coisas más. Tem problemas, tem soluções, tem isso tudo”.
“E à minha volta tudo vai ter luz”
A ritmar todo o filme das melodias mais subtis mas impactantes está o Bandido de Manel Cruz, cujo universo Tiago Guedes imaginou para o filme assim que adaptou a peça de Tiago Rodrigues. Não se estranham temas como “Quando Eu Morrer”, “Sempre-a-pensar” ou “O Mergulho de Regresso” num fio narrativo que embrulha a morte e outras inquietações sobre o pano de fundo da infância. Disse o músico à CCA que “as coisas fazem um match quando efectivamente passamos pelas coisas e entendemos também de uma forma sensorial aquilo que já sabíamos”, o que no fundo resume a decisão de Girafa ao final do filme, depois da aventura e dos testemunhos dos adultos que encontra pelo caminho e que a ensinam a crescer. Seja crescer espantar um pedófilo com cheiro a formigas mortas ou coagir um bancário a dar-nos dinheiro.
Falando em dinheiro: é tristemente comum ver cinema português e lamentar: “houvesse mais financiamento e este filme ficava mesmo bom”. Não sentimos isso com “Tristeza e Alegria”, apesar de ter sido gravado em três semanas e de ter sido co-financiado pelos autores, actores e restantes intervenientes no filme, bem como da bondade dos donos dos cenários e até da Assembleia da República, onde é gravada uma das mais longas e engraçadas cenas do filme.
Influenciada ou mesmo propositada pela produção D.I.Y., a câmara acompanha a ação da forma mais simples e real possível. A coabitação entre o mundo interior de Girafa, com Judy Garland, e o exterior, com o contacto com todas as outras personagens masculinas, é perfeitamente delimitado para quem vê quando, na verdade, não o é em cena. Só mais um fator que abona à visão do mundo de Girafa, dividida entre os impulsos no desejo pelo Discovery Channel e as limitações da vida regrada dos adultos a quem pede ajuda.
Maria Abreu, filha do realizador Tiago Guedes, entra na pele da Girafa só para o filme, ao contrário dos restantes personagens que em 2011 levaram ao palco do Culturgest a peça de Tiago Rodrigues. No teatro, a criança foi interpretada por uma mulher adulta (Carla Galvão), o que se imaginaria dificultar o trabalho de Maria Abreu, na altura com 14 anos – 10, como Girafa. Como conta o filme, a alcunha veio da mãe porque a menina tinha “corpo e espírito gigantes para a idade”. A estes dois acrescentam-se talento; supõem-se os obstáculos vindos das falas complexas no guião da Girafa, mas a interpretação de Maria Abreu torna-os irrelevantes, acrescentando a dimensão invisível (mas que bem se sente) da passagem difícil de criança para o que quer que venha com o abdicar dela.
Costuma-se dizer que temos uma criança dentro de nós, e Girafa já tem uma adulta dentro dela. A maturação acaba por acontecer de dentro, a partir do que está fora. Com o desaparecimento da mãe, com a forma que o pai lida com isso, com as figuras que se cruzam na aventura por Lisboa e com o dicionário, a exteriorização da pesada forma objetiva com que Girafa vê e fala a vida. Mas “a vida não é encontrar palavras no dicionário, é escolher os sinónimos”. Girafa não vê o copo meio cheio nem meio vazio; pesa o copo.
“Se puderes, não envelheças”
É provavelmente a mais pesada fala do filme. É o sempre certeiro Miguel Guilherme que a diz, depois de um monólogo triste de tão real (ou real, de tão triste), um testemunho comum num país em austeridade. O Velho – não chegámos a saber o nome da personagem – assume o primeiro contacto de Girafa com o mundo além da família e do espaço que conhece. O Velho entrega-lhe uma nota de 50 e uma primeira lição da vida adulta, que, no desfecho, Girafa consegue assumir com maturidade impressionante. Como define Manel Cruz, é “perder a inocência de forma bonita”.
“Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” é uma composição sobre “a violência que é crescer” – como definiria Tiago Guedes na estreia – o desencantamento com a vida adulta e as responsabilidades que nos fazem sentir perdidos. Mas, como Judy Garland grita a pulmões cheios algures em Lisboa, nem ele próprio sabe onde, para a dona, a única que a ouve, é que “não é tão bom ter medo?!”. Ao mostrar o peso de ser adulto, pagar contas, comprar sopa, ir ao banco e seguir as regras, o filme dá leveza a esse peso ao mostrar que as tais marionetas vagueiam perdidas porque não há outra forma de vaguear – aquele fraco consolo de que estamos todos na desgraça juntos. Ser adulto é assim perceber – e nem sempre da melhor forma – que “para se fugir de uma coisa não é preciso estar à procura de outra”.
Tónan Quito reflete: “os adultos deveriam ver o filme, para perceberem também a relação que nós temos com as crianças, com os nossos filhos e com o mundo à nossa volta, com as nossas incapacidades e frustrações e até que ponto não passamos essas incapacidades e frustrações para outros”. Este é um filme com ursos de peluche, mas não é para crianças; é um filme para os adultos não se esquecerem das que vivem dentro deles.
“Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” estreia hoje, 21 de Novembro, nas salas portuguesas.