O caminho de Alan Watts na divulgação do Oriente no Ocidente
Alan Wilson Watts nasceu a 6 de janeiro de 1915 e faleceu a 16 de novembro de 1973, vivendo somente 58 anos. Porém, foi uma vida rica, repleta de partilhas e de conhecimentos, para além de experiências que o fizeram compatibilizar-se com o Oriente e com as suas formas de pensamento e cosmologias. Escreveu mais de duas dezenas de livros sobre o seu caminho de descoberta, para além de se tornar bastante conhecido após a sua morte. Watts é, ainda hoje, mais do que um pensador, um divulgador de referência nas religiões a Oriente, sendo por via dele que muitos dos interessados por outras formas de conceber e de interpretar o mundo começam a sua descoberta.
Alan Watts nasceu no seio de uma família de classe média em Kent, a sudoeste de Londres. O seu pai trabalhava na empresa de pneus Michelin e a sua mãe era doméstica, embora tenha tido grande influência no caminho de Watts, já que o avô tinha sido missionário. Os meios financeiros da família não eram muitos e Watts era filho único, vivendo numa casa modesta numa zona rural. Foi aqui que entrou num contacto direto e personalizado com a flora e a fauna da região, descobrindo o nome das flores e das borboletas. O seu interesse por fábulas e romances do “misterioso” Oriente levaram-no a separar-se da visão cristã vigente no seu país e no seu continente, abrindo as portas ao místico. A arte chinesa e japonesa invadiam-lhe os sonhos, abrindo as portas para uma relação mais participativa das pessoas na Natureza.
Era o começo de um percurso que culminou na célebre obra “O Budismo Zen”, publicada em 1957, que se dividiu em duas secções. A primeira, dedicada ao estudo das origens e da história do Budismo Zen, abordava-o como uma mistura do Taoísmo e do Budismo Mahayana – um budismo motivado pela prática espiritual e pela motivação desta ordem. Este percurso do budismo opõe-se ao Vajrayana, mais esotérico, alicerçado em técnicas tantra (rituais e meditações ancestrais e codificados), embora ambos partilhem da intenção de procurar a iluminação total, de todos os seres vivos. Cada ser humano neste caminho de iluminação (o bodhisattva) procura, assim, ser um Buda iluminado, buscando poder estabelecer o dharma (a lei cósmica universal de ordem) com essa disciplina rumo a essa ascensão. De igual modo, existe o caminho Sravakayana, o último dos “yanas” budistas, em que o caminho é feito com os ensinamentos de um samyakasmbuda (de alguém que já atingiu essa ascensão).
Assim, Watts procura cruzar o taoísmo, nomeadamente com o princípio da não-ação (o wu wei) e com o da aceitação do caminho da natureza das coisas, com o percurso do meio budista (que procura o meio-termo com as diferentes visões metafísicas, visando alcançar o estado do nirvana, em que as aparentes dualidades do mundo não mais são do que ilusões). É um caminho de extrema moderação, que implica o seguimento do Nobre Caminho Óctuplo, dividido em oito etapas: a compreensão correta, o pensamento correto, a fala correta, a ação correta, o meio de vida correto, o esforço correto e a correção de consciência e a de concentração. Todas elas devem estar alinhadas com as Quatro Nobres Verdades do Budismo: a realidade do sofrimento (dukkha), em que se reconhece que tudo é sofrimento; a realidade da origem do sofrimento (samudaya), onde se aponta para o desejo da obtenção de prazeres sensoriais e para o desejo de ser e de existir; a realidade da cessação do sofrimento (nirodha), a renúncia e a libertação do desejo; e, por fim, a realidade do caminho (magga), onde se enquadram as oito etapas e o Nobre Caminho Óctuplo na iluminação.
É aqui que se procura alcançar e reconhecer o anatman, ou seja, o “não eu”, sendo todos os fenómenos do universo desprovidos de substancialidade, de existência, em que todas as coisas estão em impermanência e em constante fluxo. Na segunda parte do livro, Watts abre as portas às práticas efetivas do Budismo Zen, orientadas para a contemplação do vazio e do maravilhoso, seguindo o princípio da não-ação, sem nada fazer, em estado de contemplação. De igual modo, apresenta o zazen (o somente sentar, em observação dos pensamentos) e o koan (as narrativas ou afirmações que têm elementos inacessíveis à razão, que contribuem para a iluminação espiritual de quem faz estas práticas).
Alan Watts entraria neste caminho já após ter entrado em contacto com o cristianismo, que sentia ser-lhe incutido como se de uma doutrina se tratasse. Entretanto, e após algumas férias em França, na companhia de um indivíduo, de seu nome Francis Croshaw, com uma forte crença no pensador romano Epicuro – defensor da ausência de medo e de dor na procura de uma vida simples, sustentada em prazeres moderados. Não obstante, era alguém que havia explorado o Budismo e partilhou esse “bichinho” com o seu compatriota. Desta forma, Watts começou a explorar diferentes bibliotecas e, após optar pelo budismo, procurou encontrar uma plataforma onde prolongar esse caminho. Assim o fez na Sociedade Budista, em Londres, onde pôde, para além dos ensinamentos dessa filosofia, aprender métodos de meditação.
Alan Watts viria a falhar o acesso à Universidade, apesar de ser dos melhores alunos da sua turma. Decidiu, assim, investir no conhecimento, nomeadamente nas áreas da história, da psicologia, da filosofia e da sabedoria oriental. Era, denotadamente, um autodidata, embora aceitasse, como o seu guru, o sérvio Dimitrije Mitrinovic, um académico que se havia interessado pela psicanálise e pelo esoterismo. Para além disso, fez questão de entrar em contacto com muitos escritos de teor espiritual, com quem esteve na Sociedade Budista. Aos 21 anos, em 1936, esteve no Congresso das Crenças do Mundo, na Universidade de Londres, e foi com a audição de uma palestra do japonês Daisetsu Teitaro Suzuki, um dos grandes ensinadores do budismo no Oriente, nomeadamente da fusão do Budismo com o conceito de zen (do chinês chan, em sânscrito, estado meditativo). Foi o despertar que precisava para direcionar ainda mais o seu caminho para a literatura fundamental destas filosofias do Extremo Oriente, incluindo o confucionismo, e da Índia.
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A simbiose da vertente espiritual e tradicional com a prática permitiu-o aprofundar a sua vida espiritual, embora ainda muito assente nas visões de Suzuki, então o grande nome conhecido na divulgação destes modos de pensamento orientais. “O Espírito do Zen”, de 1936, é o seu primeiro livro, embora ainda muito revisionista em relação a essas visões daquele que o havia realmente direcionado. Watts casar-se-ia com a novaiorquina Eleanor Everett, filha de Ruth Fuller Everrett, alguém muito ligada ao budismo e que também se casaria, mas com Sokei-an Sasaki, um dos amigos e mentores do inglês, um monge que tinha fundado a Sociedade Budista dos Estados Unidos. Watts mudar-se-ia para os Estados Unidos em 1938, tornando-se seu cidadão em 1943.
Apesar desta sintonização com o caminho do Budismo Zen, não se ordenou como monge e entrou num seminário no estado do Illinois, seminário esse da Igreja Anglicana. Foi assim que estudou as escrituras, a teologia cristã e a história da Igreja, de forma a tentar fazer uma mescla do pensamento cristão com as filosofias orientais. A sua tese (“Behold the Spirit”, publicada em 1947) acaba por mostrar essa tentativa de, numa perspetiva pessoal, abrir portas à teologia anglicana (assente nas escrituras e nos apóstolos) para uma postura mais mística, influenciada pelo estudo do budismo. Seria ordenado padre em 1945, com 30 anos, embora resignasse cinco anos depois, depois de uma relação extraconjugal que levou à anulação do seu casamento.
Watts vai em busca de fazer o mesmo com a Igreja Católica Romana em 1953, com o livro “Mito e Ritual no Cristianismo”, embora se sinta cada vez mais crítico da militância assente na culpa e na severidade da doutrina das religiões ocidentais, assim como do próprio Islamismo. Também isto contribuiu para que Watts abdicasse da sua missão pastoral na Igreja Anglicana e para que fosse para a Califórnia, onde deu aulas na Academia Americana de Estudos Asiáticos, tendo chegando a dirigi-la alguns anos depois. Tendo contactado com uma série de professores vindos do Japão, foi onde voltou a encontrar o amor na poeta Jean Burden, alguém a quem, desde então, atribuiu uma grande importância no seu futuro. Watts empenhou-se no estudo da caligrafia chinesa e da sua escrita, para além de explorar as áreas da cibernética, da física quântica, da história natural, da antropologia da sexualidade, da filosofia do processo (um entendimento da realidade com horizontes mais metafísicos que o normal), e da escola Vedanta do hinduísmo. Esta, profundamente orientada pelos manuscritos “Upanishads”, parte das escrituras Shruti, que proporcionam a base desta religião, dedica-se ao conhecimento e à obtenção de todo ele até ao caminho da descoberta da verdadeira natureza da realidade (o brahma, onde se encontra a realidade, a consciência e a beatitude).
Após a breve carreira académica, Watts dedicou-se à rádio, onde teve alguns programas que contribuíram para que ganhasse um assomo de interessados pelas suas visões e pelos seus estudos. Deu, daí em diante, numerosas palestras e vários seminários, tendo ajudado ao seu sucesso literário com “O Budismo Zen”, de 1957. Para além das noções acima exploradas, em especial referentes ao budismo e ao taoísmo, o inglês encontra analogias nas áreas da cibernética e da semântica geral (uma área orientada para a regulação dos hábitos mentais e dos comportamentos dos seres humanos) para a explicação desta dimensão cosmológica oriental, em muito nova para muitos que o liam.
Watts voltou à Europa, tendo viajado por diferentes países e tendo conhecido diferentes indivíduos de referência, como o psiquiatra suíço Carl Jung. No regresso, para além da rádio e das palestras, apresentou uma série de televisão em “Sabedoria Oriental e Vida Moderna”, para o canal KQED. Os padrões de acontecimentos da Natureza foram a sua fonte de fascínio subsequente, em especial a forma como se repetiam em diferentes escalas. O inglês voltou a dar aulas pouco tempo depois, lecionando Filosofia Comparada no Instituto de Estudos Integrais da Califórnia e o seu prestígio passou a ser crescente, tanto para o público em geral, como na própria academia, onde se tornou membro da Universidade de Harvard e estudioso na de San Jose.
A descoberta das drogas psicadélicas seria o passo seguinte, através do qual descobriu “a nova alquimia”, que deixou por escrita em 1958. Experimentou mescalina, marijuana e LSD, que via como meros instrumentos para apoiar a experiência mística. Foi nesse sentido que a amizade com Aldous Huxley, o célebre autor seu compatriota, se fortaleceu, em especial com a partilha de preocupações sobre o ser humano e sobre a sua crescente alienação. A influência do grupo de Druid Heights foi ganhando ênfase, tratando-se uma comunidade sintonizada com o movimento hippie, com o movimento feminista e com a geração beat de escritores, que, bebendo desta contracultura que emergia no final dos anos 1960, tinha grande preocupação artística, pelo cuidado das suas casas e dos seus espaços. A meta de Watts era, agora, a de poder, com os seus ensinamentos, ajudar o mundo a melhorar-se. Para além disso, era defensor de uma estética mais apurada em tudo o que era feito, valorizando o belo nas suas casas, na sua cozinha e na sua arte. Apelava a essa renovação cultural, sustentada na fusão de diferentes realidades culturais.
O seu último livro, que seria de lançamento póstumo, foi escrito nessa sua última fase de vida, e o seu título seria “Tao: O Curso de Rio”. É um livro substancialmente acerca do taoísmo, abrindo espaço a que esta filosofia se tornasse mais conhecida, sempre sustentada com fontes históricas primárias. Esse enriquecimento só pôde ser feito com a formação exaustiva que Watts teve na caligrafia e ortografia chinesas, e era um enriquecimento similar àquele que o taoísmo poderia proporcionar à civilização ocidental. O “tao” – o caminho – não funcionaria de forma diferente do da água, entregando-se à fluidez da ordem natural do Universo, em que a espontaneidade e a simplicidade caraterizam essa rendição à realidade. Nesta fase, sentia-se, também, uma maior empatia de diferentes indivíduos, desde arquitetos, agricultores, construtores, físicos, artistas e até gestores, pela prática destas filosofias orientais, tendo até, muitos deles, aderido como monges.
Nos seus últimos anos, procurou aprofundar ainda mais as escrituras hindus, em que a natureza da realidade divina se sustenta na contradição dos opostos como fonte de evolução humana e cósmica, assim como no combate da ignorância fortemente impregnada na mente e no ego. De igual modo, com recurso aos princípios cósmicos, ia explorando caminhos de entrar em contacto com o campo da consciência e da luz. Problematizava, assim, as instituições e os valores da sociedade americana, para além de alertar em relação à importância da paz internacional, da tolerância e da compreensão e aceitação de culturas diferentes. A ecologia era outra das premissas que orientavam os seus pensamentos e as suas comunicações.
Porém, Alan Watts, apesar de fazer uma comunicação exaustiva e consistente sobre outras formas de pensar sobre a vida e sobre como a viver, não tinha uma vida pessoal propriamente estável. Fumava intensamente e sofria com o seu alcoolismo. A sua morte precoce em muito foi provocada por estes seus vícios, apesar de morrer no seu sono. Watts casar-se-ia por três ocasiões, tendo sete filhos das suas relações, sendo até acusado como um mau pai e um marido infiel. Não obstante, os seus filhos procuraram zelar pelo legado do seu pai, contribuindo para a sua divulgação já bem após a sua morte.
Por mais que a sua vida tenha sido conturbada, é inegável que Watts trazia algo de novo para a discussão filosófica e até sociológica. A sua referência moral era direcionada para a sociedade, para a humanidade e para o ambiente, procurando zelar por uma relação harmoniosa entre os governos e os seus cidadãos e entre as culturas distintas em raças e em credos. Ambicionava ser uma ponte entre o antigo e o moderno, entre o Oriente e o Ocidente (tanto que fez visitas guiadas a templos budistas no Japão), entre a cultura e a natureza. Para Watts, o universo era um Eu cósmico a jogar (o conceito lila, do hinduísmo, fala de um jogo criativo do divino) às escondidas, escondendo-se de si mesmo enquanto se tornava em todos os seres vivos e não-vivos e se esquecia do que era. O conceito de maya, usado em diferentes religiões e filosofias orientais, fala dessa ilusão de as coisas não serem aquilo que realmente parecem, escondendo o verdadeiro caráter da realidade espiritual.
O ego é algo que não é mais do que um mito e todas as coisas que aparentam estar separadas não são mais do que aspetos constituintes de um todo, um todo unido e interligado pelos seus constituintes. Toda esta sua mundividência foi mais elogiada que criticada, embora as críticas que lhe foram apontadas seriam ao nível da interpretação das próprias religiões. D.T. Suzuki, já mencionado, criticou a forma como Watts deturpou o entendimento do zazen, algo que requer uma postura específica e estrita, não estando acessível em qualquer altura, de qualquer jeito. A sua própria presença em diferentes esferas de diferentes religiões levantou dedos, que o acusavam de seguir somente os seus próprios interesses e motivações.
Alan Watts foi, assim, um dos mais relevantes pensadores e oradores ocidentais sobre o mundo oriental. Foi ele um dos canais de entrada das religiões e das formas de pensamento a Oriente, nomeadamente do Budismo, que estudou em profundidade durante a sua vida. As suas várias obras são o resultado da sua interpretação muito pessoal, que transformam diferentes noções primárias em alicerces do seu próprio pensamento e da sua mundividência, o que motivou várias críticas e alguma animosidade. Apesar de tudo isso, não se questiona o peso e a relevância de um inglês que procurou sempre, do ser humano, o entendimento e o seu desenvolvimento.