O caminho imperturbável de Ramalho Eanes
Este artigo faz parte de uma série de textos sobre figuras políticas relevantes da sociedade portuguesa. Álvaro Cunhal, Diogo Freitas do Amaral, Francisco Sá Carneiro, Mário Soares, Miguel Portas e Ramalho Eanes foram as figuras escolhidas.
António Ramalho Eanes é uma das personalidades de referência no período de transição do Estado Novo para a democracia parlamentar que hoje se assiste em Portugal. Foi aquele que, das mais altas patentes do Exército Português, conseguiu consolidar-se como uma figura incontornável do Estado português nos anos que se sucederam à Revolução de 1974. Difícil é traçar-lhe um perfil conotado com alguma das ideologias que começaram a sobressair na pluralidade democrática, procurando manter-se distante das formações partidárias. É essa história que, ainda hoje, se procura traçar com isenção e rigor.
António dos Santos Ramalho Eanes nasceu em Alcains, freguesia de Castelo Branco, a 25 de janeiro de 1935. Após concluir o Ensino Secundário, ingressou no Exército com somente 17 anos, em 1952. Esteve na Escola do Exército até 1956, à qual se sucedeu o curso de Instrução de Operações Especiais e estudos em Psicologia Aplicada. Foi uma formação que quase previu a importância histórica do exército junto da política, no vazio desta e dos seus habituais participantes. Juntou-se à infantaria na fase da Guerra Colonial, cumprindo serviço nas colónias em África e na Ásia, e lá consolidou a sua patente até à Revolução de Abril, que ocorreu quando estava em Angola. De contestação, fica o abaixo-assinado de protesto contra a política colonial do Estado, opondo-se ao que era defendido no Congresso dos Combatentes do Ultramar. Aderiu ao MFA (Movimento das Forças Armadas) e, neste movimento, que assumia o poder provisório do país, acabou por ser mesmo nomeado, em setembro, presidente do conselho de administração da RTP, após dirigir a sua programação.
Como experiência fundamental para o cargo, o trabalho no Serviço de Radiodifusão e Impernsa na Repartição de Assuntos Civis e Acção Psicológica do comando-chefe na Guiné, supervisionado por António de Spínola e acompanhado no seu trabalho por Otelo Saraiva de Carvalho. No entanto, as grandes dissidências que foram ocorrendo no seio do MFA – numa fase em que era considerado spinolista (ou ligado à extrema-direita, embora não se possa confirmar essa ligação, embora tais rumores o tenham feito demitir da direção da RTP) -, nomeadamente a tentativa de um golpe de extrema-esquerda para assumir uma ditadura do proletariado no país, levaram ao então tenente-coronel a coordenar aquilo que seria as operações de contenção desse mesmo golpe, no dia 25 de novembro de 1975. Ramalho Eanes vinha destacando-se como charneira entre aqueles que apelavam ao concretizar da revolução até aos mais conservadores, sem deixar de passar pelos partidos. A única associação que lhe era realmente reconhecida era ao Grupo dos Nove, um grupo do MFA com ideais mais refreados e moderados coordenado por Ernesto Melo Antunes.
Em 1976, e dado o papel preponderante que assumiu na estabilização social e política portuguesa, o já general assume a chefia do Estado-Maior-General das Forças Armadas Portuguesas até 1981, acabando por ser o responsável por estratificar e reorganizar o exército, profundamente fragmentado no período pós-25 de abril. Foi um cargo que aglomerou ao da Presidência da República (o cargo que sucedeu à Presidência do Conselho de Revolução, extinto na revisão constitucional de 1982, e que tinha as funções do atual Tribunal Constitucional) quando a assumiu em 1976, com somente 41 anos, sendo o mais jovem da história. Ganhou no primeiro sufrágio universal presidencial com 61% dos votos perante os 16% do seu camarada mais radical Otelo Saraiva de Carvalho. Foi uma presidência marcada pelo ênfase ao abandono total do PREC (Processo Revolucionário em Curso) que advinha do período imediatamente após o 25 de abril, embora idealizasse um socialismo para Portugal. Congregava, assim, as atenções e os projetos dos mais liberais, ligados às convicções de figuras como Margaret Thatcher, no Reino Unido, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, mas sem se desvincular por completo do percurso efetuado pelo MFA.
Com o avolumar das funções, a verdade é que Eanes acumulou bastante poder perante a Assembleia da República. Tanto que, para além de poder demitir e nomear governos e de dissolver a própria Assembleia, podia vetar as leis que eram aprovadas por esta, para além de chefiar as forças armadas nacionais. No entanto, era uma liderança sustentada pela confiança dada pela população e pelas próprias figuras políticas, que aceitavam a própria iniciativa do Presidente para procurar unir diferentes blocos partidários para governar o país. Não obstante, a sua presença pública, especialmente na crítica e na forma como atuava como “árbitro” da atividade parlamentar e governamental, foi gerando cada vez menos agrado, em especial por parte da Aliança Democrática (a união de forças entre o PSD, o CDS e o PPM, que governou em 1980). Não espanta que várias tenham sido as crises governamentais, que Eanes procurou resolver a partir da sua própria iniciativa, incluindo a apresentação de dois executivos distintos no ano de 1978 e um em 1979, este sob a chefia de Maria de Lourdes Pintassilgo, até hoje a única mulher a exercer o cargo de primeiro/a-ministro/a. A legalidade e a paz eram os grandes motes do seu caráter político, para além de restabelecer a disciplina e a hierarquia política e social, algo que também pautou a sua atuação nas forças armadas. Para fora, estabelecia relações cordiais com quase todos os países da NATO e com as próprias antigas colónias portuguesas, fazendo um esforço em prol da sua normalização. Isto verificou-se, de igual modo, quando procurou sondar a eventualidade da descolonização de Timor-Leste, logo após a sua anexação por parte da Indonésia, no ano de 1978.
Reeleito em 1980, numas eleições bem mais renhidas contra o general Soares Carneiro (56% dos votos contra os 40% deste), seria, contudo, um pólo de grande divergência perante os sucessivos líderes do PS e do PSD, que, porém, acabariam por entrar em acordo na Reforma Constitucional de 1982, que procurou retirar o cariz socialista e militar da Constituição. No entanto, seria algo que o forçaria a perder poderes e preponderância nas relações com o estrangeiro e perante a diminuição de importância do exército, mas também deixaria de poder vetar o que era aprovado em Assembleia, de poder de demitir governos e dissolver a Assembleia e de poder requerer a fiscalização constitucional de diplomas que se tornavam leis. Em substituição do Conselho de Revolução, surgiu o Conselho de Estado, um órgão consultivo da Presidência da República. Eanes seria crítico da revisão constitucional, acusando os partidos de concentração de poderes e assumindo que o seu poder de veto seria usado com ainda mais rigor. A dissolução do executivo de 1983 levou à formação de um governo de Bloco Central, que uniu PS e PSD em torno do primeiro-ministro socialista Mário Soares.
Acabaria por terminar o segundo mandato em 1986, após alguma turbulência de governos – algo que caraterizou grande parte do seu período como presidente – quando Eanes passa a presidir o Partido Renovador Democrático, um partido que procurava recolher o eleitorado que saiu da esfera do PSD aquando da liderança de Aníbal Cavaco Silva, que deslocou-o para a direita diante da anterior visão mais ligada ao centro-esquerda. Depois de uma tentativa frustrada de gerar uma espécie de “geringonça” com o PCP e o PS, em 1987, abandona a política ativa, passando, somente, a participar nesta como membro do Conselho de Estado. Apresentaria, em 2006, a sua tese de doutoramento em Ciência Política em Espanha, de seu título “Sociedade Civil e Poder Político em Portugal”. Continua, ainda hoje, como um interveniente presente em diferentes eventos e em várias discussões sobre a atualidade da sociedade, sempre com o incentivo de uma participação cívica em democracia.
Ramalho Eanes é um dos rostos da República portuguesa, embora nem sempre colhesse a unanimidade dos agentes políticos, nomeadamente dos partidos. Com um forte pendor disciplinar e arbitrário, foi sempre olhado como alguém de postura firme e sóbria, alheia a quaisquer devaneios ou temperamentos. É adepto da poesia de Miguel Torga – um profundo adepto da sua ligação à terra e às origens aldeãs, assim como ao seu país -, de Sophia de Mello Breyner e de Eugénio de Andrade, assim como da literatura de Marguerite Yourcenar e do cinema que, mesmo de guerra, ajuda a olhar para a dimensão valorística que o exército suscita e que faz questão de fazer valer. Não obstante as ambiguidades que caraterizam a sua postura e a sua definição num esquadro político, Eanes fez da sua ideologia as suas ações, por mais que não se possam escrever. E assim foi em todo o seu percurso político, ao ritmo de uma iniciativa militar mas interventiva e personalizada.