O caminho passado e presente da Universidade até ao nosso futuro
Era uma vez a Universidade. A Universidade como polo de conhecimento, como polo de centralidades de ideias, de debates, de diálogos construtivos, de consensos e dissensões. Era, sobretudo, uma pólis de saber, um lugar onde, mais do que procurar ser alguém, se procurava ver o mundo com suporte e com sustento, moldando o seu contexto à realidade que o mundo transmitia. Entre revoluções e evoluções, a Universidade sofreu alterações, como tudo o que é feito de vida, de sentidos e de sentimentos. A vida na Universidade sempre foi composta pela dialética do professor-aluno, não na marrona superfície do decorar, mas na descoberta mútua, no interesse genuíno que se desenvolvia entre ambos.
Hoje em dia, falamos da Universidade como rampa de lançamento para o emprego. Tudo o que interessa é estar empregado e conhecer a prosperidade laboral. Não mais há a sede de conhecer, o interesse verdadeiro pelo que foi dito por aqueles que por lá passaram, há dez ou cem anos atrás, e como tudo mudou. Parece que tudo ficou na mesma, que tudo estagnou. Estagnou, sim, o meio construtivo de pensar, a criticidade no momento de ouvir e de absorver o que era dito pelo emérito professor. Por mais emérito que se apresentasse, a indagação, momento substancial na criação de novo conhecimento, ficou-se por aí. O ambiente investigativo encheu-se de formalidades e de burocracias, de dificuldades de acesso com equipas já profundamente enraizadas e avessas à mudança. Tudo isto ajuda a que o distanciamento se faça sentir, e que a fidelização à Universidade só se represente pelo traje e pelas atividades feitas com ele envergado.
A paixão ao curso já não corresponde àquilo que é o saber, mas aquilo que é representar uma causa, uma academia num desconhecimento da sua história e das suas memórias. A métrica resultadista chega-nos às mãos até ao método criativo das artes e da literatura, das humanidades e das línguas. A criatividade ficou-se e fixou-se nos pergaminhos e os alunos conformaram-se. Não mais se interessaram pelos caudais de conhecimento que perfumam o seu curso, focando-se nas cadeiras, cadeirões, poltronas e divãs que enchem os currículos. Tudo isso ajudou a que o tal distanciamento apagasse a mística da academia, que unia a honra do traje à do conhecimento. Foi sempre neste binómio que residiu a paixão académica em Portugal (no caso do traje, porque o conhecimento é a força motriz de qualquer outra universidade europeízada do século XX), sempre com aquela veia arguta de bater o pé a um regime pouco complacente a derivadas discursivas e de pensamento.
Entre o que se compagina na realidade, ainda sobram aqueles que, na consciência das suas dificuldades, se batem por um ensino superior (um adjetivo que foi conhecendo várias interpretações ao longo do tempo) mais justo, mais igualitário, mais acessível por parte de todos aqueles que desejam aprender e ser formados. O orgulho da formação, da graduação, também se esboroou com tamanha estandardização, com tamanha homogeneização daquilo que é a Universidade. Os estudantes são cada vez mais iguais, cada vez mais formatados para o uso da memória temporária, para marcar pontos e médias elevadas nos exames de aprovação à unidade curricular. A iniciativa foi-se perdendo, dando lugar a que outros mandassem e orientassem a forma como os cursos são estruturados e lecionados, com que vocações e para que pretensões. Perdeu-se a tal criticidade, a tal vontade de saber sobre o mundo, sobre a sociedade, sobre o homem, sobre o pensamento, sobre si.
A elementaridade da vida já não se aprende na faculdade. Aprende-se na vida, nas atribulações profissionais que a precariedade suscita. A Universidade já foi mais da vida, quando se impunha aos interesses de maximizar lucros e de privatizar os seus lemas. Erguia das suas armas mais prósperas, do saber e da oportunidade de contribuir para uma sociedade mais equilibrada e equitativa, e fazia-se valer de um testemunho sólido, singular, crítico. Todos, de proveniências diferentes, de escalões sociais diferentes, tinham uma voz muito particular, interessavam-se pela vida e pelas suas contingências. Faziam-se mostrar na variedade exemplar das suas valências para um fim social, aproveitando as sorridentes oportunidades que a democracia tinha para a sua afirmação.
Tudo isto também se torna inexequível quando a existência de condições de sustentabilidade do estudante universitário são vãs. A propina foi crescendo, crescendo até chegar a um nível que corresponde a mais de 10% de um rendimento anual. O acesso aos ciclos posteriores à licenciatura tornou-se ainda mais dispendioso. A oferta curricular tornou-se filtrada em vagas de inclusão territorial, sem qualquer linha de pensamento coerente com os recursos existentes. Pelo meio, a azáfama da conclusão de um curso, com a entrada de um novo regime curricular, levou a que a sintonização com o meio académico fosse Sol de pouca dura.
O desinteresse generalizou-se. A Universidade silenciou-se. São só uns quantos, que, incessantemente, reinvidicam aqueles que são os direitos básicos de um acesso e de uma estabilização no Ensino Superior. Os outros fixam-se nas aprovações e nas (omissões de) reprovações, em envergar o traje aqui ou ali para fins de folia, enquanto tanto está mal. Em outros tempos, as vozes eclodiriam, como se sucedeu em maio de 1968 e em 1969, no coração de Portugal, em greves que faziam percecionar que algo estava muito mal. Era esse o papel decisivo dos estudantes, perdido na neblina dos tempos, na anarquia silenciosa das redes sociais e dos memes a si associados.
O espírito de ser académico perdeu-se, em total desproporção aos preços dos serviços de ação social e aos regimes de acesso, aos quadros jurídicos e aos interesses envolvidos. O que é feita da academia lúcida, proeminente, pertinente e sabedora, capaz de se impor perante o conservadorismo de herança e o interesse emergente dos empreendedorismos a toque de caixa? Um bem-haja considerável e audível àqueles que, no dia-a-dia, se deparam e se batalham, com valentia e consciência, com tudo aquilo que a academia não devia de ser: um lugar de conformismo, de injeção silenciosa de um saber iterativo, mecanicista, unidimensional. A pluralidade e a diversidade, valores de estima e de bandeira da academia, não se reduzem aos Erasmus mais e menos, mas àquilo que é o funcionamento, a estrutura e a orgânica da Universidade. E isso não é uma questão de a e b, mas de todo o alfabeto constituinte da academia.
As coisas vão menos bem e menos bem ficarão enquanto o silêncio for o maior amigo do estudante bem-sucedido. Quais são os olhos que encaram a realidade? Como está vesga a Universidade.