O dia em que Christopher Nolan inverteu o seu processo criativo
Christopher Nolan gosta de inverter coisas. Já o vimos, por exemplo, inverter o tempo em Tenet (2020) ou o espaço nos sonhos de Inception (2010). Em Dunkirk (2017) inverteu o processo criativo. No melhor livro sobre este Realizador de cinema, “The Nolan Variations: The Movies, Mysteries, and Marvels of Christopher Nolan” (artigo sobre o livro disponível neste link) escrito por Tom Shone em colaboração com o próprio Nolan, ficámos a conhecer mais detalhes sobre dito processo criativo com este épico de guerra, bem como numa entrevista concedida à Film4.
Depois de Interstellar (2014), um filme de uma escala enorme, no ano seguinte fez uma curta metragem Quay (2015), porque queria estar em contacto com a forma muito básica de fazer cinema, muito diferente da experiência com Interstellar, na qual tinha trabalhado com muitas pessoas. Sobre isso disse em colaboração par ao livro citado anteriormente: “Sentia-me muito desligado da essência do cinema e senti o desejo de fazer algo muito, muito íntimo, de fazer eu próprio cada trabalho, e de voltar ao ponto de partida“.
Nolan tem dupla nacionalidade, inglesa e norte americana, com o qual sempre teve uma ligação forte aos dois países. Uma das histórias inglesas que sempre o impressionou muito desde os tempos de escola foi a de Dunkirk durante a segunda guerra mundial. Mais de quatrocentas mil pessoas estavam encurraladas na cidade francesa de Dunkirk, vivendo um impasse entre esperar que os barcos aliados chegassem para os resgatar versus a cada vez mais perigosa aproximação dos inimigos que se encaminhavam para ali para os matar.
Nos seus vinte anos, Nolan fez uma viagem com a sua namorada a Dunkirk e compreendeu como deve ter sido difícil durante esses tempos. Essa viagem plantou na sua cabeça a ideia de um dia fazer o filme.
Fazer um filme sobre um evento histórico como este é muito difícil. Não há forma de arte capaz de captar tudo o que significa uma guerra. Então, decidiu primeiro definir a essência da história: sobrevivência e desespero para chegar a casa. O objetivo seria colocar a audiência naquela praia ao pé dos ingleses, dentro de um avião que combatia pelo ar e dentro de um barco que lutava por sobrevivência. Em suma, fazer de nós mais uma daquelas quatrocentas mil pessoas. Não teve interesse nenhum em mostrar políticos com mapas de guerra a discutir entre si. E como tal, teria que construir o filme do género de suspense que é uma forma de cinema bastante visual e que necessita de pouco diálogo. O seu foco foi mesmo esse: a essência daquela história e os elementos que fazem dela única.
Para isso começou a trabalhar primeiro na música, ao invés de escrever o guião do filme ter ideias dos planos e depois construir uma música que encaixasse. Dunkirk foi concebido numa forma musical, começando pela música, ou seja, pelos sentimentos primordiais da história. Para a componente visual, inspirou-se no fotógrafo alemão Andreas Gursky e em filmes como Foreign Correspondent (1940), Speed (1994), Chariots of Fire (1981), Intolerance (1916), Sunrise: A Song of Two Humans (1927), Greed (1924), Ryan’s Daughter (1970) e The Wages of Fear (1953). Como descreve Nolan no livro citado:
“A música tem sido uma parte cada vez mais e fundamental dos filmes que fiz ao longo dos anos (…) O que fiz com as bandas sonoras dos filmes grandes foi descobrir uma forma de construir a máquina, e depois usar o mecanismo da música para sair de uma forma de construir a máquina, e depois usar o mecanismo da música para obter o coração da mesma, para obter a emoção nessa forma (…) para começar com a emoção, começar com o coração básico da história”.
Nolan enviou a Hans Zimmer, compositor da maioria dos seus filmes, um relógio que ele possuía e que tinha um tiquetaque muito insistente e eles construíram a banda sonora a partir desse som. Quem viu o filme conseguirá facilmente identificar o som do relógio, que dá essa sensação de que cada vez temos menos tempo, num crescendo de tensão por tudo o que está em jogo. Nolan queria aplicar ao filme a estrutura do chamado “shepard tone”, uma ilusão musical, que nos dá sempre uma sensação de tensão cada vez maior sem nunca chegar ao limite. O filme tem três linhas narrativas, a ação que decorre na terra (sobretudo a praia), no mar e no ar. Para obter esse efeito de Shepard tone decidir ir intercalando estas três narrativas sempre com um crescendo de intensidade em cada uma. Assim o filme é superior á soma aritmética das partes de três narrativa, em outras palavras, um mais um mais um igual a quatro. O seu pai era um especialista em música clássica e deu-lhe conselhos. Como Christopher descreveu: “escrevi o guião para encontrar literalmente o equivalente cinematográfico da narrativa do que o Shephard fez musicalmente“. Como nota, diga-se também que Nolan fez algo pouco usual no seu trabalho, utilizou uma música pré-existente, o “Nimrod” de Elgar das Enigma Variations, um verdadeiro clássico que sempre o inspirou:
No final do filme, o som do jornal é o mesmo que o dos folhetos no início, uma “simetria agradável” como descreve o cineasta. Facto curioso o de que a sua mulher, coprodutora da maioria dos sues filmes e fiel braço direito, considerou a obra como um filme de arte que fingia ser mainstream enquanto que Nolan pensava que fosse o oposto. E o Leitor o que pensa?
Em Dunkirk, vimos um dos processos criativos mais interessantes de Christopher Nolan. Hans Zimmer chamou-lhe co-compositor para Dunkirk e isso diz imenso daquilo que foi a criação artística desta obra. O seu foco foi o coração da história, a música e a fotografia como pontos de contacto com esses sentimentos, o diálogo é mínimo já que o filme pretende colocar-nos ao lado dos soldados em lugar de contar-nos a história do que se passou. Como o próprio descreve: “de todos os filmes que fiz, tem a mais estreita fusão de música, som e imagem“.