O eterno retorno da Arte em Coimbra
A cidade nunca foi pintada ou explorada artisticamente desta forma. Para algo inédito, a adesão massiva desta Bienal pode ser vista até, como um paradoxo tremendo – cerca de 20 mil visitas, segundo números não-oficiais até ao momento. Uma vez mais a cidade foi apenas um esquisso, e como um esquisso nunca é repetível, qual o sentido de erguer uma exposição composta por inúmeros esquissos dentro de um esquisso que é Coimbra? O que vale a exposição se é (só) a segunda edição da mesma? Se não valeu para vivê-la disfrutando-a, que tenha servido pelo menos para “dançar a cidade, dançar com a cidade, e fazer desta dança a sua ativação continuada.” – esta foi o Anozero.
Digo que a cidade nunca foi pintada desta maneira pois Coimbra tem-se mostrado mais propensa a ser cantada: nos poemas de António Nobre, nas prosas de Antero de Quental e no Fado, também ele, de Coimbra, que vários autores, como Carlos Paredes compuseram. Contudo, seria mentira se dissesse que nunca foi pintada nomeadamente por indíviduos que, de uma forma ou d’outra, tornaram os seus esquissos indeléveis.
Um deles foi António Carneiro que realizou para a Universidade de Coimbra inúmeros retratos a óleo, dos seus Reitores sobretudo, e que exemplifica a tradicional promoção das artes que provém da mesma instituição. Outro foi Carlos Augusto Ramos natural de Coimbra (mais propriamente da Lousã) e onde desenvolveu toda a sua atividade, pintou como poucos, a cidade de sua época. Alberto Pinto Hébil, quiçá a mais extravagante figura portuguesa do século XX, a par de Veva de Lima Mayer e Santa-Rita Pintor, nasceu em Arouca mas em Coimbra se fixou, tendo também aberto em Nova Iorque uma galeria de arte chamada Coimbra Gallery of Modern Art. O último destaque vai para Mário Silva, pintor que a cidade perdeu em 2016 e que está exposto em todo o mundo, tendo também apresentado a sua obra em diversas bienais e exposições lá fora. A cidade do Mondego sofreu ainda outra dura perda quando neste ano que findou, 2017, Pedro Olayo (filho) cuja técnica o levou a ser conhecido com “espatulista” (por utilizar uma espátula para desenvolver a sua pintura) deixou de vez os seus quadros e a recém inaugurada sala no Convento de São Francisco com o seu nome, numa homenagem do Município ao próprio.
Mas esta bienal foi uma bienal de afirmação, que, por ser a segunda, confirma o próprio nome que a define. A primeira edição tinha sido em 2015 entitulada “Um lance de dados” inspirada no início do poema de Stephan Mallarmé – “Um lance de dados jamais abolirá o acaso” – e foram precisos 2 anos mais, ou 730 dias, para chegarmos à Anozero – Curar e Reparar. Os organizadores da bienal de Arte Contemporânea – Círculo de Artes Plásticas (CAPC), Câmara Municipal de Coimbra e Universidade de Coimbra, decidiram fazer do neologismo “Anozero” o nome a atribuir a esta ocasião que deseja não começar de novo, mas dar um novo fôlego àquilo que Coimbra é e foi no passado em termos culturais.
Foi a vez de abrir aos visitantes, no dia 11 de Novembro, espaços singulares e nunca antes vistos com estes olhos que compuseram a exposição poli-localizada que se dividiu entre o Mosteiro de Santa-Clara-a-Nova (a coqueluche e o epicentro deste certame), o Museu da Ciência e a Sala da Cidade, entre outros. Até dia 30 de Dezembro foi possível passar pelos locais designados, que contaram com as ilustres presenças do Ministro da Economia Manuel Caldeira Cabral, Secretário-Geral da ONU António Guterres e sua mulher, Catarina Vaz Pinto, vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa e ainda Penelope Curtis, diretora do museu da Gulbenkian e ex-diretora do Tate Britain, que numa entrevista afirmou que esta foi a mais interessante exposição que viu durante todo o ano (!).
O nível de alcance e visão por parte do Diretor do CAPC, Carlos Antunes, dos dois curadores Delfim Sardo (Curador-geral) e Luíza Teixeira de Freitas (Curadora-adjunta) e de toda a equipa envolvida teve de ir para lá de dificuldades orçamentais (que a Cultura sofre sobejamente todos os anos, em todo o país) que foram, contrariamente ao esperado, não um obstáculo mas um estímulo ao brilhantismo dos mesmos. Para além das exposições estáticas, o programa do evento estendeu-se a uma extensa lista de programas convergentes com curadorias múltiplas resultantes de propostas individuais de criadores ou estruturas artísticas complementares ao tema da bienal e que se referem aos mundos da arquitectura, música, dança, teatro, literatura, rádio, design de moda, entre muitas outras.
Poder contar com inúmeros artistas internacionais como são o caso de William Kentridge, Louise Bourgeois ou Jimmie Durham entre outros e também o que de melhor por cá (ou lá fora, por motivo de emigração) se produz – Julião Sarmento, Fernanda Fragateiro e Pedro Cabrita Reis – é um motivo de honra e de afirmação, diria eu, para os que a organizaram como para os que a visitaram. Os que o fizeram, seguramente nunca se esquecerão da viagem no tempo que Rubens Mano, artista brasileiro mas que reside na cidade dos “estudantes”, nos levou a fazer. A garagem do Mosteiro tornou-se a mais afamada exposição pois convidava antes de entrar a colocação de umas galochas (quem diria, certo?). Aquando da entrada, percebia-se o porquê das galochas e a locomoção era difícil devido à água que se encontrava a centímetros no chão. Quase no fundo do espaço estavam 5 carros tendo apenas um as luzes ligadas, todos eles do Estado(-Novo) inclusive pertencendo a donos ilustres como um Cadillac de Salazar e um carro que pertencia a Marcello Caetano. A música de fundo sugeria e coadjuvava a realizar a viagem que o autor nos propunha a fazer pelo passado – a viagem pelos c o n f i n s d a m e m ó r i a, sempre tão difícil, lenta, dolorosa, pouco iluminada.
Quer esta quer tantas outras obras (como em grande parte a Arte Contemporânea) podem ter causado estranheza e indefinição. Mas a “estranheza é uma coisa que eu considero importante trazer para o domínio do comum, provocando com isso o interesse, a curiosidade, a interrogação. A arte, felizmente, não é um edifício mental para construir certezas, é um exercício de perguntas e de dúvidas.”, Cabrita Reis explica.
O tema desta edição foi “Curar e Reparar” tendo sido esta a inefável motivação para poderem combater diariamente as dificuldades encontradas com um “indisfarcável entusiasmo”, conta Carlos Antunes. E aqui é encontrada novamente a dimensão da visão de quem enfrentando muitos problemas, conseguiu, de forma “invisível” e em 730 dias, dar argumentos para que um monumento inscrito na lista do Governo para venda, pudesse ser equacionado para um galeria de Arte Contemporânea para desta vez ser inaugurada a Coimbra Gallery of Modern Art de Coimbra, que muito deixaria Hébil e tantos outros, feliz. A mensagem é esta, a cura e a reparação podem dar uma nova vida, vidas à própria Vida, e se não fizerem nada disto, ao menos curam para que se possa dançar.
Dançar como o faz Pina Bausch, no final do filme de Wim Wenders entitulado Pina, quando o fado de Coimbra “Os teus olhos” de Germano Rocha começa a tocar. Como a própria dançarina diz: “Dance, dance, otherwise we’re lost”.
Parece algo natural, mas olhemos com a redobrada atenção com que os organizadores deste Hino a Coimbra e à Arte nos propõem. Esta não foi uma qualquer exposição. O que as mesmas pessoas foram capazes de fazer foi a de criar o que já existia. E criar o que já existe, é um milagre raro, diz-nos George Steiner.
Que tenha sido este o Eterno Retorno não só da Arte a Coimbra mas do princípio que a mim me parece cabal para o florescer de um Portugal consciente – que o que importa é dar espaço à cidade e às pessoas, e a cidade reinventa-se.