O eu abreviado
Valério Romão, 1974, licenciou-se em Filosofia e é escritor, contista, dramaturgo, tradutor. Seleccionado como Jovem Criador nacional no início do século, tem diversos livros publicados e é um dos nomes sonantes da nova literatura em Portugal. Foi finalista do Prix Femina 2016.
Quando entro no café e peço uma água das pedras e uma bica, a menina que me atende sorri e eu sorrio de volta. Nenhum de nós imiscua no comércio da vida cotidiana aquilo que de mais pesado e verdadeiro transportamos todos os dias no coração como trocos na algibeira. A maior parte das nossas interacções rege-se pela batuta da cordialidade superficial. Aquilo que somos, aquilo que temos de verdadeiramente único, escondemo-lo. Às vezes, à vista de todos; outras, em sítios de que até nós nos esquecemos.
Manda a etiqueta da convivência social que não andemos nus. Não impomos a nossa intimidade física a outrem. É desadequado. É estranho. Há sítios remotos e cercados para onde vão as pessoas que têm vontade de andar em pêlo. Chamam-se colónias de nudistas e praias de nudistas. Com os nossos segredos, é muito assim; não os partilhamos desnecessariamente porque tal seria infringir um código não escrito e, simultaneamente, um sinal de vulnerabilidade e de desequilíbrio. Mas como são esses segredos que, em grande parte, nos definem, o seu radical escondimento acaba por no fundo configurar uma forma de mentira socialmente aceitável: respondemos afirmativamente às perguntas cotidianas sobre o nosso bem-estar, negamos a existência de problemas quando nos chamam a atenção pela nossa ausência, divergimos imediatamente de assunto quando confrontados com a possibilidade de alguém adquirir indevidamente informação que não pretendemos transmitir. E todos fazemos isso. O tempo todo, ou quase.
Estranha forma de vida, esta, e estranhamente bela. Passamos noventa e tal porcento do tempo a fingir o que não somos para termos oportunidade de sermos o que somos para pouquíssimas pessoas por pouquíssimo tempo. É como se a vida fosse uma espécie de mina de baixo rendimento onde é necessário processar dezenas de toneladas para obter um mísero grama de ouro. Uma mina com uma rentabilidade tão negativa como a nossa já teria sido fechada. A maior parte de nós, no entanto, opta manter as portas abertas, a despeito de por vezes ter imagens muito claras do logro enorme que são as relações humanas: uma gigantesca teia de formas que supostamente devemos assumir, de acções que supostamente devemos ter, de respostas que supostamente devemos dar. E nada disto é claro, e nada disto está escrito. O código mais complexo e poderoso de regulação social encontra-se ausente de qualquer manual.
De vez em quando, somos confrontados com pessoas que, em situações extremas, nos deixam nas mãos muito mais do que aquilo que tínhamos pedido. Que nos emprestam, contra a nossa vontade inicial, parte do peso que carregam e que se dispõem a receber da nossa parte a intolerância e a incompreensão ou a radical bondade de querer ajudar a encontrar no peso e na profundidade uma leveza ou um ângulo que facilite o transporte.
A vida que se diz passar à frente dos olhos quando a mente antecipa a morte não corresponde a mais do que meros segundos de experiências vividas. A uma sequência de imagens de que muitas vezes desconhecíamos a importância. O eu tem uma forma de escalonar a grandeza daquilo que vivemos e o cérebro parece ter outra. Ambas correspondem na forma: qualquer vida pode reduzir-se a um filme de 30 segundos. Esses trinta segundos são a sinopse daquilo que de facto nos faz sentir únicos. São os sete ou oito picos de intensidade no sismógrafo existencial que nos definem e definem em grande parte a nossa forma de agir. O resto, o filme em si, é o cotidiano. É a mentira.
(Nota: esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização)