O fim da cultura ou o gene António António

por Pedro Saavedra,    28 Abril, 2021
O fim da cultura ou o gene António António
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Quando António António nasceu, a sua mãe, Dona Irina era já viúva e recentemente costureira profissional em Sacotes, Mem Martins. António pelo lado do pai, falecido num acidente de trabalho nas obras da urbanização do bairro, e novamente António pelo santo que, desde sempre, diziam, nomeava os homens da sua casa. E como homens da casa fazem milagres, lá, mais um António tinha sido posto para a continuação da mesma ideia de sempre: um português ou é António, José, Manuel ou Joaquim. Era assim e ninguém pensava muito nisso no ano de 1976.

Era esse o seu destino ser o homem da casa. Em 76 ninguém questionava o imenso sentido que isso fazia. Viviam-se tempos revolucionários mas os hábitos antigos mantinham-se. As mulheres tratavam da lida da casa e dos filhos e os homens traziam o pão para a mesa da família. Geralmente eram mais bocas para alimentar do que o tamanho do pão mas lá se dava um jeito. O pai de António esteve para emigrar para a Suíça, tinha lá um irmão que lhe dizia mil maravilhas daquilo. Do que se ganhava e sobretudo da vida que se podia ter: uma casa, um carro e um par de filhos doutores. Eram esses os grandes sonhos do momento e tudo o resto parecia apenas coisa para inglês ver.

No mesmo ano, em Inglaterra, o escritor e cientista Richard Dawkins lança “O Gene Egoísta” livro revolucionário na ideia que nós somos mesmo, e até pela visão científica, apenas um grão de areia na praia do universo. Assim, e desde essa altura ficou ainda mais claro que o nosso organismo é apenas um servidor da replicação genética, uma máquina de sobrevivência, um transportador de algo maior e mais antigo do que nós, os genes. Os nossos genes passaram a ser a nossa alma transmigratória entre os nossos pais, nós e os nossos filhos.

António António nunca chegou a ler o livro, não por falta de interesse mas porque ler livros foi coisa que nunca pensou em mostrar ou em ter interesse. Lá em casa, à noite via-se era o que na televisão permitia distrair do dia. Os meus filhos hão-de ler livros e contar-me as histórias deles, é para isso que trabalho! Pensava e dizia mesmo isto enquanto a directora de turma, do seu mais velho, da Escola Secundária de Mem Martins lhe perguntava pelos hábitos de leitura lá de casa.

Se António António o tivesse lido, claro que teria ficado com a sensação de que a teoria de Dawkins é redutora da complexidade da evolução das espécies e até foi acusada de ser uma perigosa antecedente da psicologia evolutiva e do determinismo biológico, ideais desconfortavelmente próximos da eugenia que tão más memórias nos traz do século XX. Mas o mais extraordinário, é que António António descobriria, na sua leitura, que no final do livro, Dawkins fala de um novo tipo de gene, o meme. Que tal como no mundo biológico nos controla no mundo cultural, sendo a unidade de conhecimento que passa à frente e que deixa, em competição, outras para trás.

Será que António António teria de aceitar que Richard Dawkins é que tinha razão: o gene é egoísta e que os memes somos mesmo nós que inseminamos no nosso cérebro?

E há memes à nossa volta muito curiosos. O Pá é o meme lexical português que compete com o Bro mais actual. Mas também temos o universal O.K. de polegar esticado que ganhou ao redondo ligar de polegar com indicador para parecer um zero, em extinção. Mas o meme mais curioso da cultura portuguesa é mesmo o mais ordinário de todos, somos (aparentemente) a única cultura europeia que ao insultar com o dedo médio, flecte em conjunto o indicador e o anelar como que a compor um ramalhete genital. Contava-lhe de outra maneira mais vernacular, o tio suíço, numa patuscada de Verão lá em casa.

Mas a competição continuou, entre o gene de António António e os restantes da sua época. Foi uma época extraordinária porque as normas deixaram de ser aceites unanimemente ou por uma maioria absoluta de cabeças. Ser um homem já não é categorizado como era, ser doutor, mulher, trabalhador ou migrante, e sobretudo a definição do bem e do mal deixou de seguir os cânones anteriores. Sente isso todos os dias, António António quando lê uma história, dos livros do seu tempo, ao filho do seu filho. A cultura mudou, felizmente, para António António e para o seu neto Wilson.

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