O Homem que Grita Televisão: ‘Last Week Tonight’

por Luís Figueiredo,    14 Março, 2018
O Homem que Grita Televisão: ‘Last Week Tonight’
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A televisão existe há mais ou menos 100 anos. Hoje, é um misto de conteúdos originais e formatos repetitivos, de utilidade e entretenimento, de qualidade e mediocridade. É, de forma geral, um meio banal. No entanto, ao longo da tão rica história foram surgindo obras diversas que se destacaram, que marcaram cultural e socialmente países, épocas, gerações. Sempre que isso aconteceu, sempre que isso acontece, a questão impõe-se: será a televisão uma forma de arte?

Em tom de brincadeira, Jimmy Kimmel e Stephen Colbert falaram recentemente na chatice que é serem nomeados para os Emmys sabendo que vão perder para John Oliver. Na verdade, não estão a brincar.

Geoffrey Baym, director do Departamento de Estudo do Media da Universidade de Temple, é autor do livro “De Cronkite a Colbert: A Evolução das Notícias”, um estudo sobre a História dos noticiários, desde os pivots heróicos do antigamente, até hoje, era em que alguns comediantes tomaram um importante papel na comunicação da informação. Sobre Oliver, o autor afirma ser alguém sem acesso nem credenciais de imprensa, mas que isso não implica que o trabalho que faz – discutir assuntos públicos de uma forma inteligente e interessante, trazendo assuntos relevantes e desconhecidos ao conhecimento das pessoas – não é importante. É!

Se é um facto que “Last Week Tonight”, apresentado na HBO pelo comediante inglês, ganhou os últimos dois Emmys para “Melhor Série de Variedades – Conversa”, e é actualmente o mais marcante “show” do riquíssimo “Late Night” americano, importa rever a lista dos vencedores passados da mesma categoria para perceber a nobre ascendência deste programa.

Ora, desde 2003, o Daily Show, com Jon Stewart, ganhou por onze vezes o prémio, dez das quais seguidas (ainda o prémio chamado “Melhor Série de Variedades”, e continha as actuais categorias “Conversa” e “Sketch”), tornando-se num dos programas mais influentes da História da televisão. Como? Porque Stewart é, sem dúvida, um génio cómico, que se rodeou de outros génios cómicos, à frente e atrás das câmaras, para criar um brilhante programa que encontrou o tom certo, na época certa; porque lançou alguns dos mais notáveis talentos da televisão como Colbert, Carrell, Bee, e, claro, Oliver; porque foi o catalisador de uma evolução no meio e, talvez, o catalisador de uma evolução da comédia.

Com efeito, talvez seja importante perceber o papel da comédia na sociedade. Como não há tempo ou espaço para recuar à Grécia Antiga, ficamos por 2017. Al Franken, antigo humorista e guionista no Saturday Night Live, numa das últimas aparições televisivas como senador, dizia a Colbert que a sátira que o apresentador fazia no seu “Late Show” era muito importante, e que não queria que pensasse, nem por um minuto, que era menos importante do que o que Franken fazia no senado – apesar de ser muito menos importante. Isto resume o papel da comédia na sociedade. Ricardo Araújo Pereira já deu inúmeras vezes a opinião relativamente à influência e força da comédia no que toca a impacto social real – pouca ou nenhuma. Como exemplo, RAP dá o ironicamente o medo que os nazis tinham dos comediantes; aponta também a eleição de Donald Trump, o político mais satirizado de sempre, como demonstração da ineficiência do estilo cómico.

Talvez a comédia tenha tido algum impacto social ao longo dos tempos, mas verdade seja dita não é fácil demonstrá-lo categoricamente. Nem que, caso tenha havido alguma influência, que tenha sido sustentada posteriormente. Talvez isso esteja a mudar. Jon Stewart conta que, durante a cobertura das infames eleições americanas do ano 2000 em que Bush ganhou a Al Gore, a equipa que ele coordenava percebeu como funcionavam as coisas na política. Por exemplo, havia uma reunião antes de qualquer coisa se tornar pública ou ser executada. E, segundo conta, foi aí que percebeu a missão do programa – desconstruir a realidade política. Aquela reunião – a verdadeira realidade política.

Ora, se a premissa inicial era criar notícias cómicas, uma espécie de paródia da actualidade informativa, passar a fazer comédia com a realidade política era uma transformação radical. Ben Karlin, guionista-chefe trazido por Stewart, descreveu a mudança como “apontar o interesse para o poder real em vez do cómico nas notícias.” Stewart e Karlin revelam o momento exacto em que descobriram o tom do que queriam fazer. Foi este:

Embora a conclusão do momento seja propositadamente absurda para efeitos humorísticos, o resultado final foi uma espécie de “Eureka”. Steve Carell, um mestre no improviso e comédia, com a mira calibrada pela equipa do “Daily Show”, acabava de desmascarar politicamente um candidato a Presidente dos Estados Unidos da América. O foco criativo tinha sido alterado, assim como uma parte da comédia americana. A co-criadora do programa, Madeleine Smithberg, conta que, com a desilusão da vitória de Bush, os jovens liberais procuraram conforto em Stewart; com a confusão do processo, os media “sérios” procuravam clarividência em Stewart. Os malucos controlavam o manicómio. Lembremos um momento marcante desta geração – o 11 de Setembro. Umas das vozes fundamentais da cultura americana em 2001 largava o seu trabalho principal de ter graça, para falar do que tinha acontecido:

http://www.cc.com/video-clips/1q93jy/the-daily-show-with-jon-stewart-september-11–2001

As conclusões absurdas foram desaparecendo, o tom tornou-se mais contundente. A questão era válida: Teria Stewart abdicado do papel de comediante, ou teria o papel do comediante evoluído? Será que comédia, por definição parte do contrapoder, deixa de ser comédia quando passa a ter influência verdadeira, ou apenas quando não tem graça? A realidade em que “Last Week Tonight” existe é a rascunhada por Jon Stewart e o programa é um contrapeso ao mundo em que vivemos – do instantâneo, do manipulado, do polarizado. A informação é um espectáculo, a perceção é a realidade e Trump chegou a presidente. O comediante, por incrível que pareça, já não parece ser somente o palhaço, parece também ser o sensato.

O que Oliver e a extraordinária equipa que o acompanha fazem com mestria é juntar a liberdade típica de um comediante, com a precisão quase extinta de um grupo de investigadores. O que resulta é um híbrido cómico-jornalístico inspirador, informativo, hilariante, esclarecedor, equilibrado, honesto. E se Oliver foge, e bem, ao rótulo de jornalista, o trabalho feito pela equipa do “Last Week Tonight” não o faz nem o deve fazer. São feitas perguntas pertinentes e, através de pesquisa e recolha de informação confirmada, tenta-se responder. Ele é o mensageiro, que usa a comédia como um muitíssimo eficiente veículo para entregar informação. Como no caso do segmento que incluí uma entrevista a Edward Snowden, ou um dos primeiros e mais populares segmentos, digno de sequelas – o ataque à FIFA.

A estrutura do programa difere de todos os outros programas do género, e isso dá-lhe uma força distinta. Ao monólogo ou piadas iniciais habituais, Oliver responde com um resumo semanal da actualidade; às peças cómicas e convidados que tão bem conhecemos, Oliver responde com extensos segmentos sobre um só tópico; ao formato diário ou quase diário dos outros, Oliver responde com um programa por semana. É sério sem deixar de ser divertido; é informativo sem deixar de ser criativo; é focado, sem deixar de ser pateta; e até bonito é – o design é brilhante – sem fugir muito da imagem familiar de telejornal.

Quanto aos papéis da comédia e do comediante questionados acima, é algo que o tempo esclarecerá. Conan, com as frequentes viagens pelo mundo, quer cada vez mais mostrar outras culturas e outras figuras; Seth Meyers e Colbert têm o pé nos pescoços do sistema e da actualidade, à lá Daily Show, em formatos que chegam a muito mais gente. No entanto, importa notar que a base desta “nova” comédia é uma só: o comediante. Oliver tem a cara, o sotaque, o estilo e o humor ideais para o programa que apresenta. Sem ele, nada funcionaria – por muito brilhante que fosse a investigação. É Edward R. Murrow, Tom Brokaw ou Mário Crespo, aquelas figuras autoritárias das notícias, os heróis do antigamente? Não. John Oliver não é o herói que merecíamos, mas, em 2018, é com certeza o herói que precisamos.

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