O jogo da vida e do teatro de Nelson Rodrigues

por Lucas Brandão,    5 Março, 2023
O jogo da vida e do teatro de Nelson Rodrigues
Nelson Rodrigues / DR

Nelson Rodrigues é um dos mais célebres cronistas e jornalistas brasileiros do século XX. Para além de todos esses predicados, tornou-se um dos mais inspirados e conhecidos dramaturgos do seu país. Nascido no Recife a 23 de agosto de 1912 e falecido a 21 de dezembro de 1980, aos 68 anos, no Rio de Janeiro, mergulhou em vários posicionamentos, dividido entre o seu catolicismo tradicional e reacionário, que o aproximaram da ditadura militar, e a literatura que redigiu livre de preconceitos e de pruridos. Um vulto que mudava de meio-campo com a facilidade de uma bola de futebol, modalidade que tanto apreciou e sobre a qual tanto escreveu.

Recife, capital do estado do Pernambuco. Foi neste que nasceu Nelson Falcão Rodrigues, sendo o quinto de catorze filhos do jornalista brasileiro Mário Rodrigues, que, perseguido pelos seus valores católicos e imperialistas (do Império contra a recém-instalada República), levou a família consigo para o Rio de Janeiro. A sua infância encaixou, assim, nas vivências da classe média no bairro de Aldeia Campista – entre elas os pecados impelidos pela força do desejo e os rituais familiares -, vivências que serviram de inspiração para o seu futuro trabalho literário. Exemplos dessa herança são “Asfalto Selvagem: Engraçadinha, Seus Pecados e Seus Amores” (1959, que inspirou filmes e até uma telenovela) ou “A Dama de Lotação e Outros Contos e Crônicas” (lançado em 1992 e que coleciona uma série de estórias imaginadas e vividas escritas no jornal “Última Hora” na coluna “A Vida Como Ela É” e que também teve uma série de adaptações para o audiovisual).

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Para lá da arguta observação que foi fazendo do que o rodeava, mergulhou na literatura do século XIX, assim como descobriu o futebol, uma modalidade que ainda procurava o seu estatuto na sociedade brasileira e que foi conquistar o seu papel de desporto-rei. O seu pai estava atento às paixões do seu pupilo e, aquando da fundação do jornal “A Manhã”, em 1925, trouxe o seu pequeno, que, então, tinha 13 anos, para escrever nesse periódico. Os tramas passionais sobre os quais escrevia fermentaram ainda mais o seu imaginário, numa fase em que a família passou a viver na ainda não tão célebre Copacabana, fruto da prosperidade do jornal do pai.

Enquanto via o seu pai seguir para o “Crítica”, também fundado por este após uma breve crise profissional, foi de encontro ao futebol e, consigo, levou o seu irmão Mário Filho para as lides jornalísticas da bola. Adepto acérrimo do Fluminense, tornou-se num verdadeiro contador de histórias que fortaleceu o apreço da sociedade pelo clube e até pelo seu rival, o Flamengo. O célebre confronto Fla-Flu tinha, assim, um impulso enorme vindo dos seus textos semi-fictícios que redigia no Jornal dos Sports, onde colocava em ação os fantasminhas Gravatinha e Sobrenatural de Almeida para adensar a mística do futebol. Isto sem esquecer Mário Filho, que seria reconhecido como um dos maiores jornalistas desportivos do país, a quem Nelson apelidava de “criador de multidões” e que deu o nome oficial ao Estádio do Maracanã, onde Fla e Flu disputam, ainda hoje, as suas partidas.

De igual modo, os seus irmãos Mílton e Roberto eram, também, parte da redação do “Crítica”. Roberto distinguia-se por ser um talentoso ilustrador, enquanto Nelson continuava a brilhar nas suas reportagens policiais e até políticas. Porém, a tragédia abater-se-ia no seio daquele jornal, que colocava, desde logo, em evidência a questão da liberdade de impressão. No final do ano de 1929, uma ilustração sobre a separação de um casal e um suposto adultério a esta subjacente levou Sylvia Serafim, uma mulher protegida pelas sufragistas e pela demais imprensa brasileira e que aparece acariciando um médico, a desferir um tiro em Roberto, algo a que Nelson testemunhou aos seus 17 anos. Seria um momento que levaria à morte do seu irmão e, consecutivamente, a do próprio pai, visivelmente abatido com o que se havia deparado.

Com isto, o jornal vê a sua existência cessar e a própria família vê o seu sustento a minguar. Depois de anos turbulentos a nível financeiro e de saúde – contrairia tuberculose -, juntou-se aos quadros do jornal “O Globo” e, nessa sua chegada aos 20 anos de idade, depois de debelada a sua doença, dedica-se à secção cultural. Inicialmente imerso no mundo da ópera, dedica-se a idealizar algumas histórias em banda desenhada e a editar o suplemento juvenil e maravilha-se com as potencialidades que o teatro lhe dá para escoar toda a sua criatividade e o seu imenso imaginário. Isto porque, por força de necessidades económicas, Rodrigues sente a necessidade de procurar outros fundos de maneio e, como tal, acaba por encontrar na redação de peças teatrais. É na década de 1940 que consuma esse instinto e vê uma peça sua – “Vestida de Noiva” – subir ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

Para o palco, levou, assim, elementos daquilo que caracterizariam a sua dramaturgia: em muito popular e em muito satírica. Neste caso em específico, a oscilação entre os planos da alucinação, da realidade e da memória após uma mulher ser atropelada. Igualmente importante seria “A Mulher sem Pecado” (1941), uma peça com profundidade psicológica e que se debruça sobre a manipulação emocional feita por um homem que fica paralítico à sua esposa, ficando obcecado de ciúmes em relação a esta e a demais homens.

No ano de 1940, casaria com uma colega de redação, a jornalista Elza Bretanha, e, com ela, teve Joffre e Nelsinho. Posteriormente, depois de divorciado, teria mais algumas relações, entre elas Yolanda dos Santos, mãe de três outros filhos seus: Maria Lucia, Sonia e Paulo César. De igual modo, viria a assumir a paternidade de Daniela, fruto de uma relação extraconjugal, nascida em 1963. Enquanto a sua vida amorosa era pautada pela boémia e pela irregularidade, a sua vertente profissional alinhava pela consistência e pela produtividade. Passando a trabalhar com os Diários Associados, iniciou a redação de folhetins, como o triângulo amoroso de “Meu Destino É Pecar” (1944), no qual usou um pseudónimo, sendo este Suzana Flag, tal como fez em “Núpcias de Fogo (1948, escrito n’”O Jornal” sobre a relação de duas irmãs numa família disfuncional). Um ano depois, em 1946, viu a sua terceira peça, “Álbum de Família” ficar retido na Censura Federal, algo que só deixaria de o ser em 1965. Isto porque retratava a família ideal recheada de pecados para lá das aparências, envoltas em relações incestuosas e em imoralidades.

“Senhora dos Afogados” (1947, que traz referências gregas na inspiração que traz de uma peça do estadounidense Eugene O’Neill) “Anjo Negro” (1948, uma peça que toca na questão da raça e da sexualidade e, como tal, também chegou a ser visada pela Censura) e “Doroteia” (1949) seriam peças que o ajudariam a granjear uma reputação consolidada e próspera como dramaturgo. De igual modo, nota para “Valsa nº 6” (1951, um monólogo de uma jovem de 15 anos que é assassinada), “A Falecida” (1953, a primeira dita “tragédia carioca”, dado que é a primeira que traz o pano de fundo para a sociedade do Rio de Janeiro e as suas peripécias, dentro das quais entra o futebol), “Perdoa-me por Me Traíres” (1957, onde uma jovem órfã começa a prostituir-se) e “Viúva, Porém Honesta” (1957, onde pendura a preocupação do realismo e assume a farsa da peça). Denotam-se, assim, em especial nas tragédias, traços do romance nestas suas peças, embora se encontrem com o realismo e com o forte tom trocista e crítico que chega do século XIX – em força, a influência dos portugueses, como Eça de Queirós ou Ramalho Ortigão -, pilar fundamental do pensamento e do ser artístico do brasileiro. Uma espécie de tragédia grega à maneira brasileira, resgatando o erotismo físico e psicológico para embarcar na desconstrução das vidas do Rio de Janeiro.

Viria a comprar casa em Andaraí, um dos bairros cariocas (de Rio de Janeiro) mais antigo e, novamente, a mudar d e redação, desta feita no jornal “Última Hora”. A colaboração que perdurou durante mais de dez anos neste jornal acabaria em livro, resultado de uma coluna reservada para o autor. Aqui, debruçava-se, de novo, sobre os temas que geravam molho e intriga, como o adultério, o pecado, os desejos e a vertente da moral humana; série esta que teria uma adaptação para radio e telenovela.

A sua ligação com a televisão começaria na década de 1960, quando se juntou aos quadros da TV Globo, movido pela sua paixão por futebol, a partir da qual fez história, visto que fez parte do primeiro programa de comentário futebolístico em “Grande Resenha Esportiv Facit”. O futebol, modalidade que havia transformado numa autêntica tragédia grega ou numa epopeia. Acompanhando de perto os sucessos da seleção brasileira nas décadas de 1950, 60 e 70, emergiam descrições que transformavam o jogo jogado em poesia escrita, em emoções versadas no papel e que entusiasmavam os mais eruditos.

Porém, a sua fértil carreira literária não abrandava, com “Boca de Ouro” (1959, mais uma peça onde a narrativa é contada por uma mulher emocionalmente perturbada e, como tal, ausente de isenção moral nos acontecimentos), “O Beijo no Asfalto” (1960, onde um beijo homossexual no momento da morte de um dos intervenientes acaba por gerar grande frenesim na sociedade a partir dos media) e “Toda Nudez Será Castigada” (1965, onde um viúvo com um filho para criar se apaixona perdidamente por uma prostituta, com quem se casa) a manterem o fulgor do teatro bem presente.

Já nos últimos anos da sua vida, manteve-se ativo na imprensa – escrevia no “Correio da Manhã” – e foi agrupando e publicando várias das suas memórias – em 1977, é publicado “O Reacionário. Memórias e Confissões”. Não obstante, o seu sistema digestivo e o seu aparelho circulatório trairiam Nelson Rodrigues, que se deparava com uma saúde cada vez mais frágil. Corria a década de 1970 e consumava-se o regime militar, a ditadura, um regime com o qual compactuava e se identificava.

A sua presença na imprensa era, deste modo, alinhada com o governo, tecendo rasgadas críticas aos “vermelhos” e a demais oposicionistas. Neste fim de vida, voltou para os braços da sua companheira Elza Bretanha, com quem estava à data do seu falecimento, perto do fim do ano de 1980. Para o fim da sua vida, guarda a publicação de “Anti-Nélson Rodrigues” (1974, uma peça cheia de casos mas acompanhada da maturidade e da aceitação social do autor) e vê várias das suas criações chegarem aos televisores e aos grandes ecrãs. Entre elas, o filme “Os 7 Gatinhos” (1980, de Neville d’Almeida), que não era o primeiro, já que havia “Bonitinha, mas Ordinária” (1963, de J.P. Carvalho, onde o protagonista é o genro de Rodrigues, Jece Valadão) a chegar lá primeiro.

Nelson Rodrigues será sempre alguém que causa pruridos em toda a linha na sociedade brasileira. Embora sempre com um espírito mordaz e audacioso nas críticas que fazia, nunca deixou de ver a sua ética ser questionada, não só pela vida boémia e poliamorosa que levou, mas também pela simpatia que nutria com a ditadura militar. Para a história e para a memória futura, fica por escrito um imenso repertório de peças míticas, psicológicas e de outras tantas “tragédias cariocas”, para lá das crónicas e das recordações. Com a velocidade e a emotividade de um jogo de futebol, Nelson Rodrigues marcou com fartura na rádio, na televisão, no cinema. Com magia, com atrevimento, com rasgo, com entradas a pés juntos e com muitas faltas, Nelson Rodrigues jogou o jogo no palco da vida e do teatro sem se ter dado tão mal assim.

“O velho reapareceu, cinco minutos depois, já recuperado. Pigarreou: — Vamos pôr uma pedra em cima disso, que é mais negócio. O que passou passou. Está na hora de dormir, pessoal. Então,”

A Dama de Lotação e Outros Contos e Crónicas
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