O jornalismo, a sociedade e as redes sociais. Uma reflexão sobre o caso do Expresso

por Comunidade Cultura e Arte,    31 Julho, 2019
O jornalismo, a sociedade e as redes sociais. Uma reflexão sobre o caso do Expresso
Marta Saraiva (@annehail) / CCA
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“Na confluência da tecnologia com a sociedade, há muitos mitos que parecem realidade, mas carecem de fundamentação científica”.

É com este tweet que a EJO Portugal (Edição Portuguesa do European Journalism Observatory) deu a conhecer a mais recente publicação do jornalista, professor, autor, orador e blogger norte-americano Jeff Jarvis no BuzzMachine.com, o seu blogue.

Jarvis é hoje um dos académicos, e por isso um dos pensadores, mais influentes e conhecidos da esfera mediática, sendo as suas reflexões devidamente partilhadas e debatidas entre muitos colegas de profissão, e mesmo entre estudantes. Não admira, portanto, que o seu nome ecoe nas salas e corredores da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tendo sido dessa forma que chegou aos meus ouvidos.

Como estudante de Ciências da Comunicação, as publicações de Jeff Jarvis são material para, no mínimo, se guardar para uma futura leitura atenta.

Guardado pois, e após a futura leitura referida – mais à frente a ela voltaremos -, num salto ao Facebook detive-me com uma crónica dos Truques da Imprensa Portuguesa.

Aqui, algum contexto prévio é fundamental: no ano de 2008 foi aprovado o Código de Conduta dos jornalistas do Expresso (CCJE), tendo-se recentemente decidido que este carecia de uma atualização “fruto da evolução tecnológica”, justificou o jornal na Nota de Direção posteriormente publicada à aprovação da referida atualização. O artigo alvo de trabalho foi o 12.º (Privacidade), tendo sido acrescentado um 26º relativo à conduta dos jornalistas nas Redes Sociais, tendo sido uma reação ao anexo deste segundo o fator que me trouxe à, julgo eu, relevante reflexão desta crónica.

A votação global do artigo 26.º resultou numa aprovação com apenas 2 votos contra, confirmando uma iniciativa pioneira do Expresso nesta área, que segue o exemplo de reputados meios de comunicação social como a BBC, a Reuters ou o Washington Post no que toca ao uso destas plataformas pelos seus jornalistas.

O artigo desdobra-se num anexo onde se encontram um conjunto de recomendações elaboradas pelo jornal com a intenção de, essencialmente, precaver os seus jornalistas e a própria entidade de hipotéticas situações onde preferências das suas contas – publicações, “gostos”, comentários, partilhas – poderão ser usadas como indicadores de interesses pessoais em determinadas pessoas, grupos, entidades ou tomadas de posição, podendo isso comprometer a sua credibilidade. A meu ver, a esmagadora maioria destas recomendações não passam de indicações gerais para o que parece uma boa conduta nas redes sociais, não sendo tão restritivas como possam parecer a alguns, o que é perfeitamente possível, com o acréscimo ainda de (importantes) adaptações às especificidades da sua profissão, como a objetividade, imparcialidade e responsabilidade social que esta requer.

Na crónica dos “Truques” do passado dia 30 de julho, através da qual entrei em contacto com esta “polémica” (não tenho certezas que chegue a tanto, mesmo não duvidando, como lerão, da importância de plausíveis ramificações), é-nos apresentado um par de tweets da autoria do jornalista do Expresso Filipe Santos Costa, onde anunciava a sua retirada das redes sociais Twitter e Facebook como consequência da aprovação da adenda acima referida, sendo ainda destacado o apoio que lhe foi proporcionado por jornalistas de outros órgãos de comunicação social e alguns políticos face à “intrusão na esfera pessoal e limitação à liberdade dos jornalistas do Expresso”, como escreveu.

Pois bem, é esta reação que me impulsionou para uma reflexão (tão abrangente quanto posso), face à importância do tema em questão.

Os jornalistas, enquanto intermediários e filtros da informação, depois transformada em notícia, e dotados dos conhecimentos e meios para tal, têm a função e responsabilidade social de ultrapassar os inúmeros desafios diários que se colocam entre os seus leitores e cidadãos e uma informação verdadeira, objetiva, isenta e relevante.

Jeff Jarvis em “Evidence, please”, título da última publicação no seu blogue pela qual comecei a crónica, inicia uma reflexão (anunciada para continuar) sobre a ligação que ele quer ver crescer entre o jornalismo e a antropologia, em detrimento de uma enviesada entre o primeiro e as tecnologias. O que é que Jarvis quis dizer com isto? Ele desenvolve.

Com expressa aversão ao que chama de “Moral Panic” e ao uso de presunções em detrimento de factos demonstráveis e investigação, nomeadamente em temas como a Internet e o Futuro, pede, aliás suplica (“I will beg journalists”), que os jornalistas tomem uma disciplina académica de evidência como base do seu trabalho.

Para demonstrar o que quer dizer com este pedido, Jarvis recorre a uma investigação publicada por Axel Bruns, professor na Queensland University of Technology, na conferência da International Association for Media and Communication Research em Madrid, onde abordou o tema das “filter bubbles” e “echo chambers”, isto é, a ideia de que os algoritmos das redes sociais estão feitos de tal forma que acabam por fechar cada pessoa numa bolha de informação cada vez mais ilusória e simultaneamente pequena, acabando estas por navegar num espaço nunca contraditório às suas crenças e interesses, caracterizado por uma unidimensionalidade que fecha cada um em si mesmo, diminuindo a possibilidade de desenvolver um sentido crítico da realidade, algo prejudicial em e a qualquer sociedade.

De acordo com este estudo, as tecnologias modernas usadas nestas plataformas têm erradamente servido como bode expiatório para um problema muito mais crítico: o crescimento de uma polarização política e social que não tem receio de adotar posições extremas, se necessário. Um problema com causas sociais que não pode, por isso, ser apenas solucionado por via de meios tecnológicos.

A isto alia ainda a volatilidade das definições destes dois fenómenos, possibilitadora de um discurso político e tecnológico que depende por isso da definição usada, deformando assim a “evidência” final, como por exemplo, ver a causa (por vezes tida como única) do extremismo político nas redes sociais, que a meu ver é uma perigosa simplificação do assunto.

Contexto, como sempre, é fundamental. Bruns demonstrou como, antes da Internet, diferentes grupos sociais se informavam em diferentes fontes noticiosas que por sua vez estavam adaptadas aos seus respetivos “interesses, necessidades e literacias”. Para termos um exemplo mais próximo de nós, Portugal não é estranho a esta polarização noticiosa, um país que no início do século XX, segundo os cálculos do jornalista Brito Aranha em “A imprensa na I República Portuguesa: Constantes e Linhas de Força (1910-1926)” (Álvaro Costa de Matos), tinha mais títulos noticiosos por habitante (1 para 6500) do que França e Inglaterra (1 para 23000), onde se incluíam publicações Monárquicas, Republicanas, Eclesiásticas, Operárias entre outras, cada qual com o seu público pré-determinado, característica ajudada por fatores como uma maior dispersão geográfica da população portuguesa e de más ou piores vias de comunicação nacionais e regionais, que dificultavam a venda de títulos em maiores área geográficas.

A ecologia dos próprios Media é também ela complexa, muitas vezes passando parte de uma possível culpa sentida pelo tomar parte na criação de uma expectativa utópica tecnológica (lembram-se?) para outros sujeitos, entre os quais a polarização nas redes sociais e os seus algoritmos, escondendo-se hoje quem tão entusiasticamente anunciava até o “Fim da História” (essa mesmo, com “H” grande).

Jarvis prossegue elencando diversos estudos que demonstram como há poucas provas empíricas que indiquem que se justifique uma possível preocupação com os filter bubbles (pelo menos nos termos em que são tratados em alguns Media e até espaços académicos), se bem que aqui não duvido que ambos os lados possam ter razão, pois sem alertas para fenómenos como este talvez a realidade fosse outra.

Isto é, de acordo com estes estudos, assuntos polarizadores na “vida real”, “offline”- aborto, LGBTQ+, touradas, racismo (nos EUA vacinação e controlo de armas) -, continuam a ser polarizadores nas redes sociais, as quais, e aí sim entram os jornalistas, são uma continuação do espaço social, ou melhor, um outro espaço social, e não um espelho da sociedade como muitos (ainda) acreditam, pois podem e sempre houve espaços onde nem toda a sociedade, e aqui refiro-me a crenças políticas e religiosas, práticas, expressões culturais, posição económico-social e origens étnicas, estivesse neles representada.

Arthur C. Brooks, professor de “Public Leadership” na Harvard Kennedy School e “senior fellow” da Harvard Business School, num recente artigo de opinião no The Washington Post em que abordava as diferenças de perceção (“Perception Gap”) nos EUA entre republicanos e democratas, apresentava a real dimensão que a rede social Twitter tem na sociedade americana, uma vez que é um espaço percecionado como mais propício ao debate político, caracterizada por uma maior presença de políticos e jornalistas e com maiores índices de adesão às chamadas “hard news” ou notícias sérias (política e economia). Segundo um estudo apresentado por Brooks, apenas 22% dos adultos nos EUA têm conta no Twitter, sendo que 80% dos tweets vêm de 10% dessas contas. Isto é, o “opinion making” do Twitter americano é feito, no máximo, por 2,2% da população (pois a este número teríamos ainda de descontar os inúmeros “bots” ou robots que infestam esta rede), o que me leva a questionar, como Brooks, quão representativa é realmente esta rede social.

Juntando os dados dos estudos apresentados por Brooks, com os exemplos de Jarvis e as cada vez mais importantes ferramentas que são os mecanismos como o “Google Scholar”, um motor de pesquisa da Google onde milhares de estudos académicos das várias áreas de estudo podem ser encontrados, os jornalistas têm a função e dever, como argumenta Jarvis, de apresentar a informação mais recente, colocando-a em contexto, tal como é feito nos círculos académicos, mesmo que ponha em causa notícias passadas – hoje beber vinho (uma determinada quantidade) todos os dias faz mal ou bem? E o número mínimo de passos por dia? Sempre foi noticiado o mesmo número? O que dizem os estudos? As trotinetes são realmente amigas do ambiente ou há alguns sinais preocupantes relativamente ao desperdício material por elas provocado? Num tempo em que muitos de nós tem acesso a estas notícias através do “feed” das redes sociais, devemos esperar ser sempre corretamente atualizados por aqueles que com mais credibilidade e certezas o podem fazer.

Ao contrário da distopia apresentada por Yuval Noah Harari em Homo Deus, onde os algoritmos dominarão e transformarão a Humanidade em algo irreconhecível e expectavelmente pouco “humano”, a utilização de uma abordagem que providencia contexto e nuance, e onde a informação contraditória é enfrentada com factos, podendo mesmo estar correta neste universo não bidimensional (refiro-me à realidade), é no jornalismo enquanto profissão intermediária e filtradora da informação, peça fundamental de uma sociedade liberal que toma (ou aspira sempre a tomar) decisões com base num debate plural, verdadeiro, informado e respeitador, que todos os jornalistas são essenciais em também todos os espaços, incluindo o Facebook e o Twitter.

Na “terra de ninguém” que é a informação em bruto não-verificada, jornalistas e editores devem manter sempre uma postura em conformidade com a responsabilidade que lhes é inerente, não defraudando aqueles que os seguem, mantendo e podendo melhorar dessa forma a sua credibilidade, que tantas vezes é questionada quando o erro de um se reflete mal sobre todos os profissionais, espalhando-se suspeitas infundadas.

E é aqui que, por fim, voltamos a Filipe Santos Costa. Independentemente de até poder ter alguma base legal que justifique a sua posição, creio ser fundamental que seja seriamente abordada e tida em conta qualquer possível discórdia e descontentamento que se tenha mantido no seio do jornal Expresso, pois mesmo através de um processo democrático, como inegavelmente o foi, uma tomada de posição (extrema) como daí resultou, com o abandono de um jornalista das redes sociais, da perda de uma voz que certamente nelas poderia ser amplificada e por nós ouvida, sendo as pessoas livres de seguir, de forma gratuita, quem quiserem, é uma perda para todos.

Precisamos dos jornalistas nas ruas e nos escritórios, em Portugal e no estrangeiro, na educação, na saúde e também na cultura, precisamos da imprensa, da rádio e da televisão, podcasts e blogues, mas também de uma presença resoluta e responsável destes em espaços como o Twitter e o Facebook, com sentido a fomentar, primeiro, um fluxo de informação verdadeiro e objetivo, e segundo, debates que de facto construam algo, promovendo assim a minimização de discursos baseados no ódio e desinformação que mecanismos como as redes socias, não sendo causa, podem sim alimentar. Esta é uma função que é de esperar que siga com os jornalistas para a vida, e não que seja tratada como uma vestimenta deixada à saída da redação por todas as razões que já aqui deixei.

São eles que podem e devem começar por questionar, por procurar evidência, factos, por trazerem novas formas de abordar problemas, não só informando como também passando a dar às pessoas a agência que elas realmente têm, sem desprezar outros fatores que sejam relevantes e que complementem a informação. Agora sou eu que suplico: precisamos do jornalismo na nossa sociedade e em todos os espaços onde esta se encontra, e para isso todos os jornalistas e todos os espaços contam.

Texto de Miguel Mateus
Nascido (com orgulho) no Porto, mas com toda a vida em Évora, estudo Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa. Após um passo em falso em Gestão é este o caminho que agora tomo, fundado numa profunda admiração pelo poder da palavra. Livros, filmes, música, desporto, conhecimentos: às vezes falta tempo para tudo.

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